segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

Matese, Aristóteles, Tomás de Aquino e Duns Scotus na "Sabedoria dos Princípios" (capítulos VIII e IX)

"O que a Matese estuda não é algo que pudesse ser o ente, propriamente, das coisas, que são genericamente distintas, mas, sim, dos princípios arquetípicos, que não têm materialidade nem consistência desse ser, e que são as leis que regem as coisas." (itálico no original, pag. 47)

"A Matese não se dedica ao estudo das causas; quer dizer, não se dedica precipuamente, ao estudo das causas, senão enquanto estas são princípios; as causas, propriamente, pertencem à Metafísica, e a Matese estuda os princípios enquanto princípios, e as causas enquanto princípios, e o ser enquanto princípio, e tudo mais enquanto princípio." (pag. 50)

MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS, Sabedoria dos Princípios

O filósofo brasileiro Mário Ferreira dos Santos, em sua obra Sabedoria dos Princípios, após tratar dos logoi próprios da Mathesis (doravante Matese), empreende uma longa investigação sobre os princípios matéticos nas obras de Aristóteles, Tomás de Aquino, São Boaventura e Suarez. Alguns pontos dessa discussão merecem ser destacados. Mário admite que Aristóteles parece negar a possibilidade de qualquer ciência acima da Metafísica, pois esta seria a terceira e mais alta das ciências teoréticas, e trataria do ente enquanto ente.

Cumpre aqui fazer um digressão breve sobre os graus das ciências teoréticas em Aristóteles. O filósofo macedônio afirmava que havia três níveis de ciência: a Física, a Matemática e a Metafísica ou Filosofia Primeira. A Física trata dos entes móveis, isto é, dos entes do mundo que sofrem mudança. A Matemática trata dos aspectos quantitativos dos entes como se esses aspectos fossem separados dos entes. A Metafísica trata do que é o Ser em si mesmo, isto é, o que é a substância (οὐσία). Em todos os três níveis, iniciando na Física, passando pela Matemática , e chegando à Metafísica, há um só e mesmo método: a abstração (ἀφαίρεσις) crescente sempre partindo da experiência sensível até alcançar o puramente inteligível.

Segundo a interpretação de Mário das declarações de Aristóteles, este teria negado a possibilidade da Matese por conta de seu abstratismo. Sendo todas as ciências provenientes do método de abstração a partir da experiência, não poderia haver uma ciência daquilo que não pudesse ser alcançado pela abstração. Contudo, diz o filósofo brasileiro, o próprio Aristóteles admite um princípio, o princípio de não-contradição, que não pode ser abstraído a partir da experiência, mas é capaz de ser captado por uma intuição intelectual direta de sua obviedade e de sua absoluta certeza.

Assim, para Mário Ferreira, Aristóteles foi incapaz de formular a ciência última dos princípios, a Matese, por causa de seu modo de filosofar, procedendo a partir da experiência e tomando seus aspectos mais gerais até alcançar os gêneros supremos e irredutíveis. Mas se isso é verdadeiro, então a Matese é mais alta, e, por conseguinte, mais fundamental e mais abrangente, do que a Metafísica. A Matese seria a filosofia da Metafísica, o discurso que trata dos princípios do próprio Ser. Como a Metafísica abrange a Física e vai além desta, do mesmo modo a Matese abrange e vai além da Metafísica. Seu objeto são são entes eternos, os arquétipos e as idéias eternas, isto é, os principia

Cabem alguns comentários sobre a tese de Mário Ferreira. Sem entrar no mérito da interpretação que o filósofo brasileiro faz de Aristóteles, a sua afirmação é que o estagirita não teria aceitado nenhuma ciência maior do que a Metafísica por causa de seu abstratismo, embora admitisse o princípio de não-contradição, que supostamente não pode ser abstraído da experiência. Deixando de lado a análise de se o referido princípio pode ou não ser apreendido pela abstração, o que Mário quer dizer, cremos, é que o abstratismo só é capaz de conduzir até a Metafísica, acima dela sendo necessária a intuição intelectual direta.

Esse é um ponto crucial. Se os objetos da Matese realmente são captados por intuição, então aqui se encontra uma limitação intransponível do modo de filosofar aristotélico. Aristóteles só pode admitir conhecimento inteligível extraído da experiência sensível pela abstração intelectual. Estando Mário correto, Aristóteles chegou a um princípio não alcançado por meio da abstração (o princípio de não-contradição), e não reconheceu que a Metafísica não poderia ser a mais alta ciência. Seria, então, uma evidência de que os platônicos estavam corretos, dado que, segundo o próprio Mário assevera, eles utilizavam a abstração, mas não se restringiam a ela.

A intuição intelectual dos objetos da Matese, tal como defendida por Mário Ferreira, estaria em contradição frontal com a teoria do conhecimento de Aristóteles na medida em que este não admite conhecimento científico que não tenha sido haurido em um processo abstrativo a partir dos sentidos. Para o filósofo macedônio, a ciência (ἐπιστήμη) seria a explicação a partir das causas dos entes, daquilo que acontece sempre ou na maior parte das vezes, com caráter necessário. 

O que é precisamente científico é aquilo que, em uma demonstração, decorre necessariamente das premissas evidentes ou sabidamente verdadeiras hauridas na experiência (εμπειρία). As premissas não são demonstráveis (ou são inferidas de premissas indemonstráveis) justamente porque a demonstração propriamente dita é uma técnica de inferência que permite explicitar os vínculos necessários entre as premissas, que refletem verdades da realidade provenientes da experiência, e a conclusão, que não é nada mais do que a explicitação final do conteúdo informativo das premissas. O silogismo científico, portanto, não é um método de descoberta, mas um método de explicitação dos vínculos necessários dos entes na realidade.

A Matese, como foi dito, não chega a seus objetos por abstração. Seus objetos são indemonstráveis, posto que eles são as realidades mais fundamentais possíveis, e a sua verdade é obvia (se nota per se). Não obstante, a Matese não trata de causas, mas sim de princípios. Toda causa é um princípio, embora nem todo princípio seja causa. Mário Ferreira declara expressamente que a Matese só trata de causa enquanto princípio. Mais à frente, o filósofo dirá que a sabedoria, enquanto versa sobre as conclusões, é ciência, mas quando versa sobre princípios é Matese.

O próprio Mário Ferreira declara que a Metafísica, tal como Aristóteles a concebia, como uma ciência teórica de terceiro grau de abstração, não pode ser a ciência dos princípios e dos princípios primeiros como o pretendia o estagirita. A Metafísica é abstrativa, a Matese não o é. Os arquétipos últimos não são alcançados a não ser por uma intuição apofântica. Esse é o ponto crucial de discordância entre os aristotélicos e os platônicos. Por conseguinte, é também o ponto onde Mário Ferreira se separa de Aristóteles e segue Platão.

Uma segunda ordem de comentários pode ser realizada sobre esse tema. Algum leitor de Mário Ferreira dos Santos poderia se perguntar se o seu projeto não era, no fim das contas, uma superação da Metafísica. A resposta seria, cremos, sim e não. Iniciando pela negação, a superação da Metafísica foi um projeto corrente no século XX que engajou diversos filósofos. Talvez o exemplo mais famoso dessa tendência seja o Wiener Kreiss (Círculo de Viena), liderado por Moritz Schlick e Rudolf Carnap, que pretendia eliminar todo discurso metafísico pela concepção segundo a qual somente as sentenças verificáveis pela experiência possuiriam real sentido.

Mário nada tem a ver com o projeto do positivismo lógico, contra o qual, aliás, levantou muitas objeções em diversas de suas obras. Em outros termos, se há uma superação da Metafísica na Matese, ela não tem o sentido de eliminação. Porém, é inegável que a Matese pretende superar a Metafísica no sentido daquilo que ultrapassa algo abarcando-o em uma síntese superior. Mário Ferreira não nega a abstração própria da Metafísica, só a considera insuficiente para dar conta dos princípios mais altos e mais fundamentais de toda a realidade.

Por outro lado, a tese de que há uma dimensão mais alta que a esfera do Ser não é nova. O neoplatônico Plotino, por exemplo, afirma que acima do Ser (Intelecto, νοῦς), o cosmos noético, há o fundamento de toda a realidade, o Uno (ἓν), para além de toda multiplicidade. Ocorre que esse Princípio último é indizível e impossível de ser descrito com conceitos provenientes dos seres limitados. Do mesmo modo, o neoplatônico cristão Dionísio, o Areopagita, afirma em seu tratado sobre os nomes divinos que Deus, a realidade supraessencial, está para além do próprio Ser.

A Matese é a ciência suprema que tem como objetos, afirma Mário Ferreira, inclusive o Ser enquanto Ser e o Nada enquanto Nada (o que não significa dar alguma realidade ao Nada). Mas do fato de que a abstração Metafísica é incapaz de captar os objetos da Matese, não se segue que o homem já os possua de forma inata. O homem possui os esquemas eidético-noéticos somente virtualmente, como uma capacidade para conhecer. O conhecimento necessita da cooperação de fatores internos e externos. Essa é a posição verdadeira de Platão, segundo o filósofo brasileiro.

Ocorre, entretanto, que quando o homem capta uma idéia eterna, há algo aí que não é da ordem do contingente. Se o ser humano é capaz de apreender idéias eternas, ele só pode fazê-lo se houver nele alguma participação no eterno que antecede e fundamenta essa apreensão. Um ente não pode atuar ou realizar ações determinadas a não ser se possui previamente a capacidade de atuar daquele modo ou realizar aquele tipo de ação. Citando Tomás de Aquino, Mário Ferreira assevera que a sabedoria é uma participação da sabedoria divina, por meio da qual alcançados juízos necessários e eternos.

Intuímos as verdades eternas por conta da presença da graça divina, e o fazemos dentro da medida limitada de nossa capacidade. Participação na sabedoria divina não significa identidade com a sabedoria divina. Aquele que participa de algo, tem parte daquele algo, mas não é idêntico àquele algo. O que determina o grau de participação é justamente a natureza daquele que participa. 

Mário Ferreira cita São Boaventura, que afirmava que toda sabedoria é "ciência enquanto versa nas conclusões, mas difere das outras ciências enquanto gira acerca dos princípios", para dizer que essa é a característica sui generis da Matese. O saber, quando trata das conclusões, é ciência. Quando trata dos princípios, é Matese. Ela procura os princípios e não as causas das coisas, que são os objetos próprios da Ontologia. 

Mais adiante, o filósofo brasileiro invoca a tese de John Duns Scotus de que há dois tipos de indução, uma que tem sua origem nos sentidos, e que vai dos singulares ao universal, e outra que induz a uma ciência necessária. O primeiro tipo é a indução aristotélica (epagogé, ἐπᾰγωγή) e o segundo é a indução que nos faz intuir a verdade imediata de um princípio como "o todo é maior que a parte", e que não depende dos singulares. E mais: ainda que não houvesse nenhum singular, ainda seria verdadeiro que o "todo é maior que as partes". A verdade desse princípio é notada pelo significado dos próprios termos. O conhecimento imediato desses princípios é o que dá base a todas as ciências, quaisquer que elas sejam.

Comentando a Metafísica de Aristóteles, Scotus afirma que esses princípios são alcançados graças à luz do intelecto natural, e isso constitui-se em um hábito dos princípios. Scotus ensina que nosso intelecto, no que tange ao conhecimento dos princípios das coisas, é dividido no conhecimento referente aos princípios, no conhecimento das conclusões e, por fim, no conhecimento das verdades contingentes. Aquilo que é princípio só é captado graças à sapiência, e é indemonstrável (no sentido daquilo que não se demonstra por ser evidente per se). É graças aos princípios que o conhecimento das conclusões e das verdades contingentes é realizado.

Como dito anteriormente nesta série de postagens, ciência, segundo Aristóteles, refere-se precipuamente às conclusões inferidas a partir de premissas que são elas mesmas indemonstráveis, pois não se demonstra algo a não ser partindo daquilo que não é necessário demonstrar porque é sabidamente verdadeiro.¹ Scotus, citado por Mário, ensinava que à sabedoria pertence a cognição das coisas eternas, enquanto à ciência cabe a cognição das coisas temporais.

Segundo Mário Ferreira, aqui se introduziu uma confusão segundo a qual não seria possível alcançar o conhecimento das coisas eternas, pois o máximo que o homem poderia conseguir seria a cognição das coisas temporais por meio da experiência e da indução. Scotus defende que que à ciência pertence o hábito das conclusões e à sabedoria o hábito dos princípios. E que os sentidos não são propriamente a causa desses conhecimentos, mas somente uma ocasião, isto é, uma oportunidade, pois o intelecto não pode abstrair tal gênero de conhecimento da experiência.

O conhecimento de que "o todo é sempre maior que suas partes" não é haurido pela abstração a partir dos sentidos, mas de uma intuição intelectual. É por meio de uma participação ou iluminação divina que temos acesso a esses conteúdos que não poderia ser abstraídos a partir dos fantasmas (φάντασμα, imagem) das coisas sensíveis. Mister se faz a intervenção de uma iluminação, não de uma aphairesis como querem Aristóteles e aqueles que defendem que o intelecto meramente abstrai os universais contidos nos singulares sensíveis. Como nota final do capítulo, Mário Ferreira reafirma que não nega a abstração, só a considera incapaz de alcançar os conteúdos eternos da Matese.

Tentaremos agora tecer alguns comentários a fim de interpretar o sentido desses últimas afirmações de Mário Ferreira dos Santos. A observação será sobre o caráter das verdades como "o todo é maior que as suas partes". Ninguém duvida que seja uma afirmação evidente. Mas, por qual razão ela não seria obtida pela abstração agindo sobre os conteúdos fornecidos pelos sentidos? 

Em primeiro lugar, pela sua absoluta obviedade. Em tese, não seria preciso observar nenhum ente para entender ou abstrair dele a verdade de que o todo sempre é maior que as partes. Para definir o que é um cavalo, temos que observar cavalos singulares para, a partir daí, abstrairmos a universalidade presente em todos os cavalos, a cavalidade. Mas a cavalidade, em si mesma, nada tem de óbvia. Sem o conhecimento dos sentidos, jamais saberíamos o que é um cavalo, e mesmo sabendo definir o que é a cavalidade dos cavalos, a verdade dessa cavalidade não é compreensível só pela mera inspeção do sentido de seus termos.

Digamos que a definição de homem seja animal racional. Chegamos a esse definição observando os homens sensíveis, concretos e singulares, e dali abstraímos a universalidade presente em todos os homens, a humanidade. Agora sabemos o que é o homem: um animal racional. Mas a verdade dessa definição não se percebe imediatamente só pela consideração de seus termos. É óbvio que tenho que saber o que é animal e o que é racional para entender o que é um animal racional. Mas os meros termos não me dizem que homem é realmente um animal racional. Nada nos termos empregados na definição me obriga a aceitar a verdade de que homem é animal racional.

O mesmo não se dá, contudo, com a afirmação "o todo sempre é maior do que suas partes". Sabemos que ela é verdadeira não por causa das informações dos sentidos, mas por causa do significado mesmo de todo e de parte. Tenho certeza imediata de sua verdade meramente pela inspeção do significado de seus termos. Que o homem seja animal racional não é certo de forma imediata, pela simpes consideração do significado de seus termos. Tanto é assim que muitos negam que homem seja animal racional, mas ninguém nega que o todo é maior do que as suas partes.

Mas, então, não seria o caso de que estamos diante de uma definição meramente verbal e sem nenhum conteúdo intrínseco? Uma mera convenção a partir do significado igualmente convencional de seus termos? É porque definimos todo dessa maneira que sabemos que ele é sempre maior que suas partes, pois assim as definimos. Tudo isso não seria mais que um jogo de palavras. Mas, mesmo que não fosse um jogo de palavras, o que difere a afirmação de que o todo é sempre maior do que suas partes da definição de homem ou de cavalo?

Começando pela última questão, a primeira diferença é a obviedade da verdade da afirmação de que o todo é sempre maior do que suas partes, o que não acontece com cavalo ou com a definição de homem. Em segundo lugar, a sua universalidade, pois a definição de cavalo serve somente aos cavalos, assim como a definição de homem serve somente aos homens. Porém, a verdade de que o todo é sempre maior do que as partes é verdade tanto para homens como para cavalos. Na realidade, sua universalidade é absoluta, pois serve a todos os entes. 

A última observação nos conduz ao terceiro aspecto: as definições de cavalo e de homem são abstrações realizadas a partir de entes ambos contingentes. Daí que podemos dizer que elas são contingentes. Nada obriga que haja homens e cavalos no mundo. Obviamente, há homens e cavalos no mundo, mas nada obriga logicamente que o mundo tenha necessariamente que possuir homens e cavalos. Todavia, não pode haver mundo sem haver todos e partes.

Se recordarmos o que Mário Ferreira dos Santos afirma sobre a anterioridade e a posterioridade, perceberemos que mundo inclui esses dois princípios, e que mesmo que nunca houvesse um mundo, a verdade desses princípios permaneceria inalterada por que, de novo, qualquer mundo possível incluiria necessariamente esses dois princípios. O mesmo se daria com a afirmação de que o todo é sempre maior do que suas partes. Este princípio é verdadeiro neste mundo que há, e mesmo que não houvesse mundo, ele seria igualmente verdadeiro, pois qualquer mundo possível seria obrigado necessariamente a conter tal princípio.

As considerações acima mostrariam, cremos, que para Mário Ferreira esse princípio de que o todo é sempre maior do que as suas partes é absolutamente verdadeiro e que não pode ser uma simples definição verbal e convencional. Ao contrário, ele teria o máximo alcance ontológico, sendo um dos princípios eternos da realidade. E por não tratar da definição de entes contingentes como o homem e o cavalo, mas de realidade principial eterna, não poderia ser obtido pelo intelecto humano via abstração. Seria objeto somente de uma intuição apofântica.

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¹ Sobre a demonstração e a ciência em Aristóteles:

Νεκρομαντεῖον: Aristóteles, experiência, não-contradição e demonstração (oleniski.blogspot.com)

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Laia também:

http://oleniski.blogspot.com/2020/12/mathesis-megisthe-na-sabedoria-dos.html

http://oleniski.blogspot.com/2021/01/os-logoi-na-sabedoria-dos-principios.html

https://oleniski.blogspot.com/2019/04/mario-ferreira-dos-santos-eudorus-de.html

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