terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Homenagem ao filósofo Sérgio L. de C. Fernandes

 

"Mas se Somos nossa Experiência, se essa é nossa verdadeira natureza, e se tudo é instantâneo, fora do tempo, que é, no plano da Existência, uma conjuração da Mente, do Pensamento e da Linguagem, então vivemos na Eternidade, e nossa verdadeira natureza é eterna." 

SÉRGIO L. DE C. FERNANDES, Deus: a experiência de ser humano, p. 491

Até o último ano de minha graduação em filosofia na UERJ, minha formação havia sido basicamente Kant, idealismo alemão, Marx, algum Foucault, Nietzsche e muito Bachelard. Como praticamente todo aluno de filosofia, tive um período (curto, confesso) no qual professei o marxismo. Todavia, graças à leitura de Bertrand Russell, de Moritz Schlick, de Ludwig Wittgenstein e, principalmente, de Karl Popper, logo me afastei de Marx e de suas pretensões científicas e passei a estudar exclusivamente lógica, filosofia da ciência e epistemologia. 

Quando se apresentou o momento de escolher o tema para o mestrado, fiquei dividido entre a questão da ciência no Tractatus Logico-Philosophicus de Wittgenstein e a questão da influência da biologia de Darwin na epistemologia tardia de Popper. Optei pelo último e ingressei no programa de pós-graduação em filosofia da PUC-Rio, sob a orientação do afável e saudoso professor Carlos Alberto Gomes dos Santos.

A PUC me causou enorme impressão desde o primeiro dia de aula. A estrutura, as salas, a biblioteca, o rio com a ponte, tudo ali era um choque para alguém que vinha da universidade pública e, sobretudo, do subúrbio pobre do Rio de Janeiro. Ainda me recordo com saudade das tardes que eu passava lendo na biblioteca, tranquilamente aproveitando ao máximo o acervo disponível naquelas estantes mágicas. Não tenho como mensurar tudo o que a PUC me proporcionou naquela época e que ainda me proporciona, agora como membro de seu corpo de professores.

Não recordo como foi meu primeiro contato com o professor Sérgio L. de C. Fernandes. Creio que deve ter sido em Antropologia Filosófica, disciplina pela qual ele tinha especial apreço. Mais à frente ficará clara a razão desse seu apreço. Não recordo também qual foi a impressão que ele me causou na primeira aula ou nas aulas imediatamente subsequentes. Lembro somente que, aos poucos, algo naquele professor chamou a minha atenção. 

Primeiro, creio, porque eu sabia que ele havia estudado na London School of Economics sob a orientação de John Watkins, discípulo direto de Karl Popper, à época professor de lógica e método científico naquela instituição. Eu sabia também que a tese do professor Sérgio Fernandes, Foundations of Objective Knowledge, publicada em livro, era uma comparação entre as epistemologias de Kant e de Popper.

A minha curiosidade inicial era saber se ele havia tido aulas com Popper e como eram essas aulas. Para um anglófilo assumido como eu, o universo das universidades britânicas tinha uma aura especial, na qual se misturavam cachimbos, nobreza, fleuma, sotaque e esquetes do Monty Python. Para a minha decepção, Sérgio nunca falou muita coisa de seus tempos em Londres.

A segunda coisa que me chamou a atenção era o fato de que ele não dava aula de Antropologia Filosófica. Explico. As aulas não eram baseadas em alguma ementa tradicional, apresentando as concepções antropológicas de diversos autores da tradição ou de algum autor em particular, como seria o esperado. Bem, para dizer a verdade, é inexato dizer que as aulas não eram sobre as concepções antropológicas de um autor específico. Eram, de fato. Só que as concepções antropológicas que o professor Fernandes apresentava eram as suas próprias. As aulas discutiam a sua filosofia, e não a filosofia de algum figurão consagrado pelo cânone.

Sei bem a impressão que isso dá. Todo universitário teve a experiência de professores que usavam seus livros como base de seus cursos, e, para ser sincero, quase sempre fica a suspeita de que esses professores garantem na sala de aula os únicos leitores/compradores que seus livros teriam. Público cativo, se assim posso dizer. Ocorre que o caso de Fernandes não se encaixava nessa categoria. Não que ele fosse um sucesso de vendas. Que eu saiba, não era e não é até hoje. Provavelmente, éramos seus únicos leitores.

O que diferenciava Fernandes era a originalidade de seu trabalho filosófico e, mais importante, a fonte de onde esse trabalho brotava. Diante de nós estava alguém que realmente havia lutado existencialmente com os problemas filosóficos que o intrigavam e que chegara a respostas que eram não somente defendidas teoricamente, mas vividas e sofridas nos mais fundamentais estratos de seu ser. Sérgio Fernandes era a sua filosofia. O drama antropológico do esquecimento do Ser e da sua lembrança na Presença de Espírito, aspectos fundamentais de seu pensamento, era vivido em cada movimento e em cada palavra daquele professor magro, elegante e perpetuamente escondido atrás de óculos escuros.

Sérgio Fernandes era um filósofo. Isso resume tudo. Era também um acadêmico competente, sem dúvida. Possuía um enorme conhecimento, como testemunham os seus livros. Mas ele costumava dizer que havia lido muito pouco de filosofia. Cascata. Afirmava isso para criar um charme wittgensteiniano em torno de sua obra, creio. Apesar de sua inegável competência, Fernandes não tinha o perfil de um professor universitário usual. 

Quando o conheci, salvo engano, já não escrevia ou publicava artigos em revistas acadêmicas e, portanto, não possuía a famigerada “produção acadêmica”. Seu último artigo publicado era a sua palavra final sobre filosofia da ciência, o que marcava ao mesmo tempo a sua despedida dessa área da filosofia a que se dedicara por tanto tempo.

Isso me conduz à terceira coisa que me chamou a atenção em Fernandes. O que trouxe um filósofo da ciência à antropologia filosófica? E mais, como se deu a passagem da filosofia da ciência à mística francamente religiosa que ele professava em suas aulas e em seus livros? Não estou dizendo que sua filosofia era menos rigorosa por ter um caráter religioso. Qualquer um que ler os livros de Fernandes estará diante de argumentos, debates com a tradição filosófica e originalidade conceitual. Tudo o que se espera de um bom livro de filosofia.

A meu juízo, a filosofia de Fernandes é, sem dúvida, uma mística racional. Se alguém se espantar com essa junção aparentemente contraditória, é só recordar o papel preponderante da mística no pensamento de filósofos tão diferentes como Plotino e Wittgenstein. Na obra de Fernandes, a filosofia e a razão conduzem a uma dimensão que é supra-filosófica, indizível e, em certa medida, objeto de uma experiência. Os rigores argumentativos da filosofia são os pequenos mistérios que antecedem a iniciação nos grandes mistérios da epopteia e do arrheton.

O componente místico-religioso do pensamento de Fernandes é oriental em sua essência, um cruzamento entre o Vedanta, o Zen e o Tao. Talvez o modo mais adequado de expressar o que penso acerca desse aspecto central da sua filosofia seria dizer que Fernandes encontrou um caminho filosófico-ocidental para fundamentar e traduzir uma experiência oriental da realidade última.

Não é, portanto, coincidência que ele tenha me apresentado a Robert Charles Zaehner, o grande estudioso da mística ocidental e da mística oriental, tradutor dos Upanisads e sucessor de Sarvepalli Radhakrishnan na cadeira de Ética e Religiões Orientais de Oxford. Fernandes também me emprestou uma cópia xerocada de Nonduality, de David R. Loy, e me apresentou formalmente às obras do mestre vedantino Adi Sankaracarya. 

Aliás, nessa mesma época, se não me falha a memória, eu começava a me aventurar na leitura de René Guénon, o que me ajudou a compreender muito do que o Sérgio dizia. Curiosamente, não há menções a Guénon nos livros de Fernandes, apesar de ele haver me revelado a existência, no Centro do Rio, da então tradicional (hoje extinta) livraria esotérica de Francisco Laissue, simpático argentino vegetariano versado em todos os tipos de esoterismos. Todos esses autores (e muitos outros) permanecem importantes até hoje na minha vida intelectual e espiritual.

Nietzsche chamava pejorativamente Kant de “o chinês de Königsberg”, e creio que não seria injusto chamar Fernandes (não de forma pejorativa, é claro) de “o hindu da PUC”. Uma de suas teses principais era justamente como no Ocidente o esquecimento do Ser havia trocado a sabedoria pela mera “amizade à sabedoria”, algo que, segundo Sérgio, jamais acontecera no mundo oriental.

Não seria aqui o espaço adequado para apresentar a filosofia de Sérgio Fernandes em todos os seus complexos aspectos. Mas é preciso dizer que, segundo a interpreto, a sua filosofia está em consonância com a afirmação upanishádica tat tvan asi (tu és isto), ou seja, Atman é Brahman, do “ponto de vista” absoluto são a mesma realidade. Em termos ocidentais, os seres e o Ser são a mesma realidade, os seres sendo reais somente quando encarados pelo ângulo da multiplicidade, mas sendo irreais, pura unidade do Ser, quando encarados a partir de seu Princípio Último.

No seu artigo Deus: a experiência de ser humano, Sérgio Fernandes assim escreve:

Pense o leitor em uma moeda. Ela tem duas faces distintas e inseparáveis. É como se o Ser enquanto tal estivesse de um lado, o existir, do outro. Ser o Ser enquanto tal é não ser coisa alguma em particular. Existir é ser algo determinado. E tudo o que há tem os dois lados, como a moeda. Por um lado “é”, apenas “é”; por outro lado, é alguma coisa em particular, ou seja, não “é” apenas, mas “existe”, ou seja, é um ente.

Creio que essa passagem resume toda a sua filosofia. No esquecimento do Ser, achamos que somos o que parecemos ser, entes limitados. Na “Presença de Espírito”, como denomina Fernandes, sabemos que somos o Ser enquanto tal. Todo o esquecimento é crer que somos limitados, existentes, quando, na realidade, somos o Ser em sua ilimitação pura. Atman é Brahman. Não temos experiências, somos Experiência, eis outra tese capital de Fernandes. A Experiência é a autolimitação divina. Ser Humano é ser uma Experiência divina.

Daí decorrem várias consequências. A primeira delas é que há dois sentidos distintos de conhecimento. Em um, conhecimento significa adquirir algo que nos falta. No outro, é retirar algo que nos impede de lembrar o que sabíamos. O primeiro é criação da MPL (Mente, Pensamento e Linguagem) e tem função adaptativa. O segundo significa não chegar a lugar algum, pois sempre estivemos onde estivemos. Como dizia Sankara acerca de Moksa, a libertação do véu de Maya é comparável à simples retirada de um adorno do pescoço. Ou ainda, é comparável a reconhecer uma corda onde antes se viu uma serpente. A corda sempre foi corda, mas a tomávamos como serpente.

Samsara é Nirvana e Nirvana é Samsara. Isto é, no fundo, não há dualidade. Não há “outro mundo”, mas este mesmo mundo encarado corretamente como manifestação (Prādurbhāva) do imanifestado. A Consciência, diz Sérgio, não é esta consciência limitada criada pela MPL (Maya), mas sim Consciência no nível ontológico. Satcitananda. Consciência é Ser e Ser é Consciência. Quando em Presença de Espírito, sabemos que somos aquilo que é, o Ser enquanto tal. O esquecimento do Ser não é outra coisa que não a redução do Ser ao existir.

Como consequência, diz Sérgio, nascem as ociosas discussões acerca da existência e da inexistência de Deus. Tanto faz dizer que Ele existe ou dizer que Ele não existe, pois a categoria de “existência” não pertence a Deus. Em certo sentido, não existe Deus. Em outro sentido, há Deus. O que conhecemos são as máscaras de Deus. Desse erro fundamental vieram as muitas antropormorfizações e personificações de Deus. Este, então, foi encarado em termos morais, como “bom” ou como “mau”. Mas o ponto é que Deus ultrapassa essas dimensões de opostos. Culpa, pecado, inferno e outras mazelas são o resultado da antropomorfização divina.

Mas cabe aqui uma crítica. Sérgio parece ignorar (em algum dos dois sentidos da palavra) que, mesmo no âmbito das religiões abraâmicas, que concebem um Deus pessoal e agente no mundo, é preservada a consciência de que Deus, no fundo, é incognoscível e está para além de todas as categorias humanas. Testemunho disso são, por exemplo, as obras de Fílon de Alexandria, Dionísio Areopagita e Ibn Sina. E mesmo no Hinduísmo, a bhakti exige o suporte meditativo e devocional de um Deus pessoal, seja Vishnu, Krishna, Shiva ou mesmo alguma deusa (Durga, Kali, etc.).

Outra crítica possível refere-se à afirmação de Sérgio de que o esquecimento do Ser gera a idéia de uma criação das coisas no tempo. Isso também é inexato. Qualquer um que tenha lido Fílon de Alexandria, Agostinho ou Tomás de Aquino, sabe que tais autores não consideram a criação como um evento temporal. Talvez Sérgio estivesse mais próximo desses autores do que ele mesmo percebia ou desejava.

De todo modo, as concepções filosóficas de Sérgio Fernandes tiveram enorme influência em minha vida e em meu pensamento filosófico. Embora não leve à frente seu pensamento como um continuador de sua “escola”, creio que eu seja um discípulo espiritual de Sérgio Fernandes. No fundo, concordo com o fundo de sua filosofia, sem concordar talvez com o caminho trilhado. Como disse anteriormente, não há espaço aqui para uma exposição detalhada de seu pensamento e para identificar com clareza minhas discordâncias pontuais.

Minha intenção era somente prestar uma homenagem a um mestre, um guru, que abriu caminhos e portas em minha vida. Sem ele, certamente não seria o que sou hoje. Devo muito a ele do que sou. Sérgio Fernandes foi um de meus mestres e devo a ele a devoção que ora expresso com este artigo. Que ele viva no Ser, em Presença de Espírito, para toda a eternidade. Om, Shanti, Shanti, Shanti

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Leia também: Νεκρομαντεῖον: Homenagem ao professor Sérgio Luiz de Castilho Fernandes (oleniski.blogspot.com)

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Livros do prof. Sérgio Fernandes:

Foundations of Objective Knowledge, Ed. Reidel;

Filosofia e Consciência, Ed. Areté;

SER HUMANO – Um Ensaio em Antropologia Filosófica, Ed. Mukharajj

Um comentário:

elton disse...

sem tempo não tem criaturas e coisas...