domingo, 14 de abril de 2024

Aristóteles, Física e os tipos de causa


"O conhecimento é o objeto de nossa investigação, e os homens não consideram que conhecem algo a não ser que tenham alcançado o 'porquê' da coisa, o que significa alcançar sua causa primária."

ARISTÓTELES, Física, Livro II, 3, 194b [20]

No Livro II da Física, após distinguir os campos de atuação e os objetos de estudo próprios da Física e da Matemática (https://oleniski.blogspot.com/2024/04/aristoteles-e-diferenca-entre-fisica-e.html), Aristóteles analisa na sequência os tipos de causas (αιτίες) que há no mundo. A ciência busca compreender as causas das coisas, o que a distingue especificamente da mera experiência (ἐμπειρία), entendida como uma prática sem conhecimento dos fundamentos causais, e da arte (τέχνη), o reto raciocínio na produção (ποίησις) de algo.

As causas e os efeitos (αίτια και αιτιατά) são os materiais sobre os quais a ciência se debruça, e, em se tratando da Física, é necessário conhecer os princípios de todos os tipos de mudança nas coisas físicas. A filosofia de Aristóteles sobre esse tema tornou-se célebre e imensamente influente sob o nome de "doutrina das quatro causas". 

Em primeiro lugar, aquilo do qual a coisa vem a ser e na qual persiste é chamado de causa (αιτία). O bronze do qual uma estátua é feita e no qual ela persiste é sua causa na medida em que é o substrato (ὑποκείμενον) que torna possível a estátua existir. Nesse caso, o bronze é a matéria (ὕλη) da coisa, aquilo do qual ela é feita, e que, embora necessária para a sua existência, não é de modo algum suficiente para explicá-la. Na tradição filosófica, principalmente medieval, essa causa ficou conhecida como causa material. 

O bronze, porém, é igualmente constituído de outros materiais. No ser humano, a sua matéria se constitui de seus ossos, carne, sangue, fluidos, etc. Estes, por seu turno, são feitos de outros elementos, e estes de outros, assim por diante até que se chegue (somente pelo pensamento, nunca pela experiência) até à matéria prima (πρώτη ὕλη), a pura potencialidade de se tornar algo. Em outro sentido, a matéria também pode ser o gênero (γένος) que reúne e dá origem (γένεσις, gênesis) às coisas. Por exemplo, o metal que é o gênero do qual a prata e o bronze são espécies.

Em segundo lugar, alguns filósofos anteriores a Sócrates consideraram que o substrato define suficientemente o que é uma  coisa (a postulação primária de todo materialismo). Para Aristóteles, isso está longe de ser verdade, pois a pergunta "o que é isso?" não é respondida adequadamente pela constituição material de uma coisa. A estátua é uma estátua não por ser de bronze, mas por se uma escultura com uma determinada forma. O ser humano é humano não por possuir sangue, ossos, e tecidos, como tantos animais possuem, mas sim por possuir algo que o diferencia especificamente de todos os outros seres vivos.

A questão "o que é isso?" refere-se ao tipo de ser que a coisa é, àquilo que a define enquanto tal coisa e a distingue de todas as outras. A pergunta quer saber, segundo a linguagem aristotélica, qual é a Forma (εἶδος) ou o Paradigma (παραδειγμα, modelo, tipo) da coisa, a declaração ou definição (λόγος) da essência (οὐσία) de um ser determinado. Essa é a causa mais fundamental de qualquer ente, é o seu padrão, a ordem intrínseca na qual um ser consistentemente se apresenta, e que possibilita a sua verbalização na forma de uma definição.

Aristóteles explica o que é a Forma utilizando-se de um exemplo tirado da Música, na qual a oitava é constituída pela relação de duas notas na proporção de 2:1. Isto é, a oitava não é outra coisa senão a disposição de duas notas segundo uma razão determinada. Analogamente, a definição de um ente é a expressão verbal de uma razão que governa as suas partes. Se definirmos o ser humano como "animal racional", as suas partes constituintes, "animal" e "racional", tem de estar em uma relação que reflita adequadamente a relação na qual essas potências estão ordenadas no ser humano concreto.

Todavia, "animal" e "racional" não devem estar somente na relação correta em que estão essas potências no ser humano concreto. Tomadas em conjunto na definição "animal racional", elas devem ser necessárias e suficientes para refletir o que de fato é o ser humano. Este realmente tem de ser animal e racional, e estas potências, naquela relação dada na definição, têm que ser as causas fundamentais a partir das quais são explicadas todas as características e potencialidades que o ser humano apresenta.

A animalidade, por exemplo, explica o crescimento, a nutrição, o apetite, a locomoção, enquanto a racionalidade explica a captação de conceitos abstratos, a capacidade de formulação de juízos, o raciocínio, etc. Se todas as capacidades humanas puderem ser derivadas propriamente dessas duas potências, então a definição "animal racional" corresponderá ao que realmente é a Forma do ser humano. Ao longo da história da filosofia, ela ficou conhecida como causa formal.

O terceiro tipo de causa é a fonte de onde se originam a mudança e o repouso. Tanto o homem que dá um conselho quanto o pai que gera um filho são a origem de mudanças. O primeiro age sobre aquele que o ouve, o segundo torna real algo que era somente uma possibilidade. Aristóteles fala aqui daquilo ou daquele que faz aquilo que é feito, que muda aquilo que é mudado. O responsável por alguma mudança é a sua causa eficiente ou agente.  

Dentre as quatro causas, talvez essa seja a mais reconhecida e a mais evidente de todas. Corresponde à noção mais difundida de causalidade, a produção de um efeito diferente de sua causa. A ação de impor alguma mudança a outro (ou a si mesmo) é, sem dúvida, um dos aspectos fundamentais da realidade física, posto que  esta se caracteriza essencialmente pelo fenômeno da mudança.

O último tipo de causa é o fim (τέλος) ou "aquilo por conta do qual algo é feito". A saúde é a razão ou fim almejado por quem faz caminhada. Os instrumentos ou os passos intermediários de um procedimento só possuem sentido enquanto meios para a realização de algum fim. Embora tenha sido incompreendida e rejeitada pela ciência moderna, a teleologia é um aspecto inextrincável do mundo físico, uma vez que a ordem, seja natural ou artificial, é sempre a submissão das partes às exigências da realização do Todo. 

Qualquer ente que seja ordenado é caracterizado pela relação de-para, ou seja, só é possível compreender a ordem quando passamos da consideração de seus constituintes para a consideração do Todo, que é exatamente o fim que concede sentido à disposição das suas partes. A finalidade pode ser intrínseca, como nos seres naturais (a realização plena da própria natureza), ou extrínseca, como nos artefatos (a casa é o fim que guia o trabalho de seu construtor).  

Causa, adverte Aristóteles, possui vários sentidos, e a mesma coisa tem diversas causas. A estátua é causada tanto pela arte (técnica) do escultor quanto pelo bronze, mas não do mesmo modo. A arte é causa na medida em que é o conhecimento prático do escultor que traz a escultura à realidade. O bronze é causa porque sem uma matéria subjacente o escultor não poderia esculpir a ideia que possui na mente.

É verdade também que duas coisas podem ser causa uma da outra. O trabalho duro causa boa condição física, e vice-versa. Só trabalha duramente quem tem boa condição física, e o trabalho duro acaba sustentando ou aumentando a boa condição física. Causas idênticas são capazes de produzir efeitos contrários, como no caso do piloto que é a causa da navegação segura e o responsável pelo afundamento de sua nave.

Todas as causas caem em algum dos tipos acima assinalados, afirma o filósofo. As letras são a causa material das sílabas, assim como premissas com relação à conclusão, e as partes com relação ao Todo, no sentido em que são a matéria na qual a ordem subsiste. Visto por outro ângulo, o Todo é causa formal e final da disposição das partes, como as sílabas o são com relação às letras. A semente, o médico, o conselheiro, o produtor são todos causa eficiente da mudança que realizam. As causas finais das coisas, no entanto, são o seu bem, aquilo na direção da qual as coisas encontram o seu melhor.

Algo pode ser causa incidental de outra. "Policleto" e "escultor" são ambos causa de uma estátua, já que Policleto é escultor. "Policleto" é causa incidental da estátua porque o nome "Policleto" se encontra em muitos homens que não são escultores, mas, por coincidência, há um "Policleto" que é também escultor. É por ser escultor que Policleto esculpe a estátua e não por ter o nome "Policleto". Do mesmo modo, poderíamos afirmar que a estátua foi causada por "um homem" ou por "um ser vivo". Nesses casos, a atribuição causal se refere a qualidades incidentais que estão no escultor, mas que não são as responsáveis diretamente pelo seu poder de produção artística. 

Em todas as causas é possível distinguir aquelas que estão em ato e aquelas que estão em potência. A casa que está sendo erguida tem como causa o "construtor" ou o "construtor construindo". A diferença está em que o "construtor" pode estar construindo neste momento, o que o torna um "construtor" em ato (exercendo sua arte de construção), ou ele pode não estar construindo neste momento, o que o torna um "construtor" apenas em potência (possui a arte da construção sem a aplicar). 

As causas que estão exercendo (ἐνέργεια) a sua causalidade, cessam de ser causas quando o efeito foi realizado. O "construtor construindo" (o construtor em ato), só existe até o momento em que o seu efeito (a casa que está sendo erguida) atingir o seu fim (a casa pronta). A ação causal é simultânea ao processo de realização do efeito, e cessa quando este já se encontra realizado. 

Porém, na investigação das causas, deve-se buscar aquela que é a mais fundamental. O homem pode ou não ser um construtor. Se é um construtor, é porque aprendeu a arte de construir, e agora a possui em ato como uma capacidade adquirida. É certo que a casa precisa do homem para ser erguida, mas somente por aquele que fosse também um construtor. E o construtor só existe na medida em que sabe como construir. A capacidade técnica, a arte da construção, é a causa prioritária da casa construída.

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terça-feira, 2 de abril de 2024

Aristóteles e a diferença entre a Física e a Matemática


"O próximo tópico a considerar é como o matemático difere do físico. Obviamente, os corpos físicos contém superfícies, volumes, linhas e pontos, e estes são os objetos da Matemática."

ARISTÓTELES, Física, Livro II, 2, 193b [20]

Após haver determinado o que é a natureza (Νεκρομαντεῖον: Aristóteles, Física e o conceito de natureza (oleniski.blogspot.com), Aristóteles prossegue seus estudos no Livro II de sua Física investigando agora o que diferencia a Física e a Matemática. Os corpos físicos possuem volume e superfície, bem como linhas e pontos, objetos próprios da Matemática (nesse caso em particular, da Geometria). Não obstante, se essas ciências não são consideradas idênticas, o que as diferencia?

Ora, o matemático, embora trate desses objetos como volume, linhas e pontos, não os trata como limites de corpos físicos, e nem os considera como atributos desses corpos. Em vez de pensá-los como aspectos pertencendo aos corpos, o matemático os separa dos corpos e os trata como se fossem entidades independentes. É óbvio que, por exemplo, nosso corpo possui limites, e nesse sentido podemos afirmar que os corpos possuem propriedades matemático-geométricas. 

Considere-se a altura. Podemos ser mais altos ou mais baixos que outras pessoas, mas o fato mesmo de que temos uma altura, isto é, um limite mensurável, demonstra que podemos tratar esse aspecto de nossa pessoa em termos puramente matemáticos. Se tenho 1,80m, essa medida pertence ao meu corpo como algo que determina um dos limites que constitui o que sou. Evidentemente, essa medida não diz o que sou, mas diz quanto meço com referência à minha altura.

Enquanto o investigador permanece nesse âmbito, ele ainda está tratando essa medida no corpo, tomando-a como uma propriedade de um ente material. Quando, porém, o investigador separa essa medida do corpo que a possui e a estuda como se ela fosse independente, ele a trata matematicamente. Aristóteles fala aqui da operação intelectual conhecida como abstração (ἀφαίρεσις, aphairesis, no grego/abstractio, no Latim), que significa, grosso modo, "separar", "destacar". O que o matemático faz é abstrair, separar, os aspectos mensuráveis dos corpos físicos e estudá-los como se fossem entidades independentes. 

Ao realizar essa operação abstrativa, o matemático, diz Aristóteles, separa intelectualmente esses aspectos do movimento. A mudança é uma característica definidora dos seres naturais, como visto anteriormente. A matemática, ao contrário, é imutável. O matemático, ao tomar os aspectos mensuráveis de um corpo como se fossem independentes, retira-os do âmbito da mudança. Nenhuma falsidade se segue disso, isto é, não há erro em realizar essa operação intelectual e em estudar as medidas de forma separada dos corpos.

É perfeitamente possível estudar os números e as suas relações independentemente de qualquer referência às coisas materiais. No que tange estritamente ao âmbito do mensurável e do calculável, a Matemática, por definição, não faz referência aos entes físicos. A validade das afirmações matemáticas reside na cogência das ligações lógicas encontradas entre os números ou entre as figuras geométricas. Se o matemático se limitar àquilo que pode ser mensurado ou calculado de forma independente dos corpos, nenhuma falsidade será encontrada nos seus estudos.

A distinção defendida por Aristóteles parece implicar não haver nenhuma aplicação da Matemática à Física. Se assim fosse, o filósofo macedônio estaria em franca contradição com o método que tornou a Ciência Moderna tão prolífica a partir do século XVII graças aos estudos de Galileu, Descartes e Newton, entre outros. De fato, os cientistas modernos frequentemente acusaram Aristóteles (ou melhor, o aristotelismo de seu tempo) de haver construído uma ciência falsa e estéril justamente por não reconhecer que o "Livro da Natureza está escrito em caracteres matemáticos". 

A justiça ou a injustiça dessas acusações por parte dos modernos não pode ser respondida facilmente e sem longo estudo. O que, no entanto, o próprio texto aristotélico mostra inequivocamente é que o filósofo e cientista macedônio estava longe de negar a possibilidade de aplicação da Matemática às coisa naturais. Se é verdade que a Física é uma ciência independente da ciência da Matemática (seja por seus princípios, seja por seus objetos de estudo), é igualmente verdade que existem ciências que combinam aspectos importantes das duas.

A Astronomia, a Ótica, a Harmonia (e a Mecânica, embora não seja mencionada no texto) são ciências que, segundo Aristóteles, pertencem ao "ramo mais físico das Matemáticas". De certo modo, elas são o inverso da Geometria, pois enquanto esta estuda as linhas físicas como se elas não fossem físicas, aquelas ciências (chamadas posteriormente de "ciências médias") estudam as linhas físicas sem separá-las dos corpos físicos. 

O astrônomo, por exemplo, estuda os corpos celestes como objetos físicos de determinadas magnitudes que se deslocam espacialmente no céu visível. Não importa ao astrônomo estudar as dimensões de um planeta ou a sua trajetória no céu como objetos puramente geométricos, tal qual um geômetra investiga as propriedades da circunferência independentemente da existência ou não de coisas esféricas no mundo físico. Tampouco interessa ao astrônomo estudar um planeta como um objeto físico somente, buscando saber qual a sua natureza (no sentido da Física de Aristóteles).

O físico se pergunta o que é e do que é feito um determinado ente material, e o geômetra investiga as propriedades matemáticas desse ente material de forma completamente separada e independente. O que a Astronomia, a Harmonia e a Ótica (posteriormente chamadas de "ciências médias") estudam é o objeto físico considerado somente nos seus aspectos mensuráveis, matemático-geométricos, sem separá-los do objeto físico.

A fim de descrever o deslocamento de um planeta, a Astronomia não precisa teorizar sobre a sua constituição material. Para determinar o ângulo de incidência de um raio de luz sobre uma superfície, a Ótica não precisa conhecer a natureza da luz. A Harmonia não necessita de uma teoria sobre a natureza dos sons para realizar seus estudos. Em todos esses casos, não importa saber o que a coisa é, mas tão somente considerar e investigar o que é mensurável nos objetos materiais (altura, largura, comprimento, deslocamento espacial, ângulo, figura, etc.).

Na Física, a natureza dos objetos tem dois sentidos: um é a Forma (o que a coisa é) e o outro é a Matéria (do que a coisa é feita). Por essa razão, as coisas físicas não são independentes da matéria, tampouco são definidas somente pela matéria. Aristóteles ressalta que os filósofos naturais anteriores a ele geralmente estavam mais interessados no lado material das coisas. Mas mesmo o construtor não pode considerar somente a matéria com a qual vai construir uma casa deixando de lado a sua Forma (nesse caso, seu projeto, sua ideia). 

Se a arte de construir imita a Natureza, então o físico deverá estudar tanto o aspecto formal quanto o aspecto material nos objetos deste mundo. Os meios para realizar algo fazem parte do mesmo tipo de conhecimento que o fim que se deseja realizar. No caso do construtor, os meios são os materiais que ele vai utilizar (que devem de ser adequados ao fim que ele almeja) para erguer a casa. No caso das coisas naturais, o fim (o objetivo ou finalidade) é a própria natureza, ou o estágio final para o qual tende a mudança do ser natural.

O timoneiro conhece e prescreve qual o tipo de remo que se deve utilizar (possui a arte do uso adequado da coisa), e o fazedor de remos sabe qual tipo de madeira adequada para aquele tipo de remo (possui a arte diretiva da produção). Na arte, o produtor cria o material ou o utiliza para seus fins. Nas coisas naturais, por contraste, a matéria já está presente de modo indissolúvel desde o início. O físico deve conhecer a matéria como o médico conhece o tendão e o ferreiro conhece o bronze, isto é, deve entender o seu propósito, ou, em outros termos, a adequação do tipo de matéria à natureza de cada coisa.

A analogia de Aristóteles salienta uma semelhança fundamental entre a arte (a produção de algo) e a ciência física: em ambas, é necessário que se conheça tanto a Forma quanto a matéria. O construtor precisa conhecer tanto a Forma (ter no intelecto a casa que deseja construir) quanto o material adequado a esse fim. Em certo sentido, é a Forma da casa que dirige as ações do construtor sobre a matéria. Contudo, se o material não for adequado, a casa não poderá ser erguida. 

Analogamente, na Natureza há elementos formais e materiais. A diferença é que não há um construtor que imprime uma Forma na matéria preexistente. Na coisa natural, Forma e matéria vêm sempre juntos, são aspectos concomitantes da sua constituição. O físico, diferentemente do construtor, não deseja produzir ou construir algo. Mas mesmo assim, ele precisa, como o construtor, conhecer tanto o aspecto formal quanto o aspecto material daquilo que ele estuda. 

Pois o ente natural não é somente Forma e nem somente matéria. Embora esta deva ser estudada na medida em que se presta à realização da Forma concretamente. Por exemplo, conhecendo a natureza de um animal, o biólogo pode entender por qual razão ele possui um determinado tipo de estrutura óssea. Ou seja, a matéria está submetida à Forma, e não o contrário. O físico, portanto, se interessa pelas coisas cujas Formas são separáveis (abstração) pelo intelecto, mas que não existem no mundo separadas da matéria.

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quinta-feira, 28 de março de 2024

Mário Ferreira dos Santos e a "A Sabedoria da Unidade" (capítulo III)

"Mateticamente, podemos expressar que a 'unidade é a propriedade que resulta da completude em si da entidade de alguma coisa'."

MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS, A Sabedoria da Unidade, p. 14

No terceiro capítulo de A Sabedoria da Unidade, o filósofo brasileiro Mário Ferreira dos Santos trata dos temas da unidade e da divisão. Se a unidade inclui a negação da divisão, pois tudo o que é unidade é indiviso, o sentido dessa negação não é o da inexistência da multiplicidade. Tudo o que é múltiplo é constituído de unidades que, em si mesmas, são indivisíveis. A unidade não é uma privação de multiplicidade, mas, ao contrário, o seu fundamento.

A unidade é, mateticamente, a completude em si da entidade de alguma coisa, isto é, a coisa é completa em seu ser, em sua própria entidade. A unidade per se é aquela na qual as partes nascem em torno da realização do Todo, tal qual uma célula viva. A unidade per accidens é aquela na qual as partes são unidades que estão organizadas segundo um plano que é imposto do exterior, tal qual uma cadeira que resulta da imposição de uma ordem extrínseca a materiais preexistentes e independentes entre si.

A unidade per accidens, como a expressão latina indica, é uma unidade por acidente, ou seja, a sua completude é dada de fora para dentro, na junção de partes independentes (as verdadeiras unidades per se) segundo uma ordem imposta extrinsecamente, e que, por isso, nunca formam uma unidade real, substancial, ou, em outros termos, nunca formam um Todo de verdade. É apenas uma conjunção, uma união de entes reais, uma multiplicidade reunida artificialmente sob uma unidade.

Mário Ferreira toca aqui em uma questão tradicional da filosofia: o que torna um ente uma substância real? A coisa que se constitui em um Todo real é aquela na qual a sua unidade é natural, nasce de si mesma, e não de uma junção acidental de partes independentes. Seres humanos, por exemplo, são seres naturais, reais unidades. Um exército, embora formado de humanos, não pode ser uma real unidade, dado que é a junção de partes independentes entre si, e que não necessariamente estariam unidas não fosse, nesse caso, um objetivo externo comum, a defesa e o ataque em conjunto.

Não há uma unidade real onde as partes que compõem um Todo são elementos que existem de forma independente uns dos outros, e que são reunidos por uma força ordenadora externa ou por um fim externo às próprias partes. No artefato, as partes são unidas de fora para dentro como no caso de um relógio que é montado pelo relojoeiro com peças preexistentes. No organismo, as "partes" nascem em conjunto dentro do Todo, por diferenciações internas que nunca as tornam completamente independentes entre si.

Tudo quanto é, é um, afirma Mário Ferreira. Tudo o que tem ser é unidade. Ao afirmar a si mesmo, isto é, ao ser aquilo que ele é, o ente afirma a sua própria unidade. Portanto, ser e unidade são intercambiáveis. O princípio de não-contradição postula que não se pode afirmar e negar, ao mesmo tempo e no mesmo sentido, o mesmo atributo com relação a um mesmo objeto. No fundo, esse modo de expressão lógico-formal é meramente negativo, só nega que algo possa ser e não ser o que é ao mesmo tempo. 

Assim, afirmar que "João é pedreiro e João não é pedreiro" é contraditório, pois João não pode ser pedreiro ao mesmo tempo em que não é pedreiro (ao menos enquanto "pedreiro" tenha o mesmo significado nos dois casos). O princípio de não-contradição somente adverte que a afirmação e a negação realizadas simultaneamente ferem algo de absolutamente fundamental na estrutura da realidade. 

O que é isso de fundamental na estrutura da realidade que é ferido pela afirmação e pela negação simultâneas de um mesmo atributo a um mesmo objeto? É o fato primordial de que um ente, ao ser X, nega todas as outras possibilidades de ser não-X. Há, antes de tudo, uma afirmação em todo ente que existe: "sou X", e essa afirmação, essa positividade, é seu simples ato de ser aquilo que ele é. Qualquer coisa, sendo o que é, afirma a si mesma, e, por conseguinte, nega ser qualquer outra coisa. 

O princípio de não-contradição é apenas uma forma negativa de expressar uma verdade muito mais fundamental. Se não é possível afirmar e negar ao mesmo tempo e no mesmo sentido o mesmo atributo com relação a algo, isso se deve ao fato mais fundamental de que tudo o que existe, ao existir, coloca somente a si mesmo na realidade, e esse colocar-se na realidade já é uma limitação que, consequentemente, exclui tudo o que não é ele mesmo. 

Na verdade, é a afirmação de si que todo ente faz ao existir que exclui as outras possibilidades de ser. E ao afirmar a si, cada ente afirma a sua própria unidade, a sua integridade e completude. A indivisibilidade (conceito que é meramente negativo, isto é, que nega a divisão no seio de um ente), é derivada da unidade do ente que, ao existir, só afirma a ele mesmo. O fato verdadeiramente fundamental é que uma coisa, um ente, sendo o que é, afirma a sua unidade (e, portanto, seus limites próprios), o que implica necessariamente a negação de todas as outras possibilidades que ele não é.

Mário Ferreira mostra que uma unidade, qualquer que ela seja, afirma uma positividade, um ser que, pelo simples ato de se aquilo que ele é, possui a aptidão de distinguir-se de qualquer outro. O ser não precisa de outro para afirmar-se. Que algo seja distinto de outro não constitui a essência do ser e da unidade. 

Alguns esclarecimentos se fazem necessários. A distinção que diferencia um ente de outro não corresponde propriamente à essência da unidade no sentido de que a distinção não é primária, mas decorre do fato de que o ente é uma unidade. O fato fundamental é a unidade, que se constitui em uma completude que contém em si tudo o que a coisa é. A distinção deste ente com relação aos outros entes se segue necessariamente da unidade, e não o contrário. 

Não é a distinção que funda a unidade. Ao ser algo, o ente afirma a si mesmo, e, concomitantemente, se distingue de todo e qualquer outro ente. Então, não é a distinção que torna as coisas o que elas são. É a unidade, o ser da coisa, que torna um ente distinto de outro. Tampouco se pode dizer que primeiro o ente é uma unidade, e depois ele se torna distinto dos outros entes. Não. O fato mesmo de o ente ser o que é o torna necessariamente distinto de tudo aquilo que ele não é. 

A distinção é uma relação que se estabelece entre os entes por causa da unidade que cada um deles é. A melhor maneira, e a mais segura, de conceber a unidade é concebê-la como uma completude em si mesma. Dessa forma, o que caracteriza a unidade está contido no próprio ente, e não em uma possível relação de distinção com qualquer outro ente. É certo que quando se trata de seres limitados, a unidade é também limitada, afirmando positividades que se distinguem das positividades de outros seres.

A lei do Ser, o logos do Ser, é a afirmação de sua unidade, diz Mário Ferreira. Poderíamos resumir, cremos, a tese do filósofo brasileiro dizendo que um ente, qualquer que ele seja, pelo simples fato de ser, afirma a unidade. Ser já é afirmar uma completude que, pelo menos aptitudinalmente, e, portanto, secundariamente, se distingue de qualquer outro ser. 

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quinta-feira, 7 de março de 2024

Dionísio Areopagita e a teologia negativa em "Os Nomes Divinos" (Livro IV, sobre o Bem)


"No primeiro princípio das coisas a simples existência é ela mesma a bondade primordial e absoluta em si. Assim como o Sol, luminoso em sua essência, e o fogo, quente por essência, não necessitam de qualquer auxílio para agir além de seu próprio ser (e cada um ilumina e esquenta por meio de seu ser), assim também o Bem em si, cuja natureza é a absoluta bondade (bonitas), não carece, para além dessa bondade, de nenhuma deliberação ou escolha por auxílio da qual pudesse transmitir suas bênçãos."

MARSILIO FICINO, Comentário aos Nomes Divinos, capítulo LXXIX

O quarto livro de Os Nomes Divinos, de Dionísio Areopagita, trata do Bem e do Mal. O Princípio último de todas as coisas para o platonismo é o Bem, como apontavam Platão na República e Plotino nas Enéadas. Tudo o que há, houve ou pode haver é uma manifestação (imitação ou participação) do Bem eterno cuja natureza é indizível e incognoscível. O Bem, por ser o Princípio de tudo, não está submetido a qualquer uma das limitações das coisas. 

Dionísio afirma que o Bem, pelo simples fato de sua existência, traz todas as coisas à realidade, tal como o Sol, sem nenhuma escolha ou deliberação, ilumina todos aqueles que são capazes de serem iluminados. O poder do Princípio se manifesta não por uma decisão ou uma deliberação de criar as coisas. O ser humano precisa deliberar e decidir se fará ou não algo, se tomará ou não determinado curso. Esse aspecto calculativo e discursivo da vida humana é um sinal de sua natureza limitada. 

Precisamos escolher este ou aquele curso de ação. Cogitamos, imaginamos e discursamos sobre as possibilidades à nossa disposição a fim de termos uma maior certeza do que faremos. As limitações desse gênero estão ausentes do Princípio último de todas as coisas. Seria errôneo imaginar que Deus estivesse em algum momento em dúvida acerca da criação das coisas. 

Dionísio repete nesse início de capítulo um tema já enunciado por Plotino: o Princípio gera os entes por sua simples presença ou existência. O que existe no mundo é fruto direto do Princípio como (utilizando o exemplo de Plotino) o fogo gera o calor. Onde há fogo, há calor. Não por uma deliberação do fogo, mas simplesmente por conta da sua essência. Quando se acende o fogo, a emanação do calor é imediata e persiste enquanto o fogo estiver presente. 

O Sol é um símbolo platônico do Princípio. Ele ilumina todas as coisas capazes de receber a sua luz. Em termos metafísicos, o Princípio traz à existência tudo aquilo que é capaz de existir. Cada um dos entes deste mundo possui uma essência por conta da qual pertence a um determinado tipo de ser. Essa é a sua limitação ou determinação primeira e fundamental. Nesse sentido, ninguém escolhe ser o que é. As coisas simplesmente são o que elas são. Não há, e nunca haverá, um momento anterior à existência em que haja a escolha de ser isso ou aquilo.

Marsilio Ficino, comentando Dionísio, afirma que "em todas as coisas posteriores ao primeiro, essência é uma coisa e a bondade outra". O Bem é o fundamento de todas as coisas. Entretanto, cada coisa é diferente da outra por sua essência. Dito de outro modo, é a essência que diferencia e que limita as coisas tornando-as isso ou aquilo. O Bem é a fonte e o fundamento de todas essas diferenciações, e, exatamente por isso, está acima de qualquer limitação essencial.

Obviamente, o Bem não gera as coisas como um ser limitado gera ou age. O ser humano age segundo a sua vontade e a sua razão, que são potências diferentes e nem sempre em concordância. Porém, nenhuma diferença existe entre a vontade e a razão em Deus, pois não há diferenciações no Princípio. O Sol, imagem visível de Deus, simboliza a ação criadora do Princípio justamente por iluminar todos os seres imediatamente, sem necessidade da deliberação que caracteriza o modo humano de criar e de agir.

"Deus, como o Bem, cria por Sua própria existência pura, isto é, por Sua bondade, enquanto outras coisas realizam o que elas realizam por participação nesse Bem", ensina Ficino. O Bem, então, não é pensado aqui no sentido moral, mas é tomado no sentido ontológico. O bem moral se segue do Bem ontológico, fundamento de tudo. O Bem é a realidade quando encarada como algo desejável. E nada pode ser mais desejável do que o Princípio último de todas as coisas desejáveis. 

Como dito acima, o Bem é a fonte de todas as coisas e, por isso, consequentemente, está acima de todas elas e não possui quaisquer das limitações que caracterizam as coisas. Nesse sentido, é possível dizer que o Bem é Não-Ser, e que é Não-Mente. Então, o Bem não existe e não pensa? Para compreender esse ponto, é preciso retornar ao princípio do discurso apofático, isto é, afirmar a perfeição para negar a imperfeição, e negar a perfeição para não afirmar a imperfeição.

Ao tratar do Princípio Absoluto de todas as coisas, a linguagem utilizada não deve afirmar alguma imperfeição, como dizer que o Princípio Absoluto é inexistente. Alternativamente, tampouco é adequado afirmar que o Princípio Absoluto é existente. No primeiro caso, atribui-se uma falta, uma privação. No segundo, afirma-se uma perfeição. Porém, é uma perfeição limitada. Se é errado dizer que o Bem é inexistente (por se tratar de uma privação), por outro lado, é inadequado dizer que o Bem é existente (na medida limitada em que, por exemplo, uma maçã é existente).

Então, quando se afirma que o Bem é Não-Ser, o que se deseja expressar é a absoluta transcendência do Bem, e não a sua inexistência. Decerto o Bem existe, mas em uma razão tão transcendente que, de certo modo, seria mais correto dizer que o Bem é Não-Ser, a fim de que as limitações próprias dos seres não lhe sejam atribuídas. A negação aqui não tem o papel de indicar uma insuficiência ou uma ausência, mas, ao contrário, indica a absoluta transcendência com relação a todas as coisas, quaisquer que elas sejam.

O Bem dá origem a tudo e abraça tudo, das mais sublimes realidades até às mais humildes, como o Sol ilumina tudo o que alcança. Todos os entes existem por causa do Bem e, cada um a seu modo, deseja e busca o Bem. Os seres intelectuais, buscam por meio do intelecto, os seres irracionais buscam por sua vida, os seres inanimados buscam por sua mera existência. Em todos os casos, os entes existem por causa do Bem e permanecem na existência na medida em que estão "voltados" ao Bem.

Não é necessário entender isso em termos literais, como se uma pedra tivesse desejo tal qual um ser humano deseja algo. A pedra tem a sua existência graças ao Bem. De certa forma, ela "sai" do Bem para a existência. Mas a pedra não se torna ontologicamente autônoma, como se pudesse existir sem mais nenhuma relação com o Bem. Ela precisa estar continuamente sustentada na realidade pelo Bem, o que, em certo sentido, significa que a pedra está sempre "voltada" para o Bem. 

Analogamente, um objeto amarrado a uma corda presa no teto permanece suspenso somente pelo tempo em que a corda o sustenta. Ele está dependurado (pendendo de), isto é, dependendo da corda para permanecer suspenso. Nesse sentido, a dependência tem duas "direções": ela "desce" do teto até o objeto pela corda, e "sobe" do objeto até o teto pela corda. O teto sustenta o objeto de cima para baixo, mas o objeto precisa estar ligado ao teto pela corda para que esteja suspenso. Trata-se de um só e mesmo fenômeno enxergado de dois modos diferentes. 

No fundo, o que Dionísio deseja expressar é a absoluta dependência ontológica das coisas com relação ao Bem. Há como um circuito, a "saída" e o "retorno" simultâneos das coisas ao Bem. A existência das coisas jamais significa uma separação absoluta do Bem, uma vez que sua permanência na existência só pode se dar pela ação contínua do Bem. Semelhante ao movimento circular de um objeto que, embora distanciado do seu centro, jamais se separa totalmente do centro adquirindo uma trajetória independente.

O Bem é igualmente chamado de Beleza. O que poderia ser mais belo do que o Princípio de onde todos os entes provêm? Platão, no Timeu, afirma que tudo o que é um artista deriva de um modelo consistente é belo. A beleza do cosmos indica, então, a sua imitação de um modelo que é eternamente consistente. O Demiurgo, autor da ordenação do Cosmos, imita as Formas eternas, e dá existência às coisas. O Bem é o modelo ao qual todos os entes imitam, cada um na sua medida.

Ao fim e ao cabo, diz Dionísio, é o Bem, enquanto Belo, que "causa as harmonias, as simpatias e as comunidades de todas as coisas". O Belo reúne e ordena, mantém os entes na existência, é o fim (telos, τέλος) de tudo o que há e pode haver. Ele é paradigmático (πᾰρᾰδειγμᾰτῐκόν), o modelo de onde todas as coisas adquirem seus limites próprios. Dionísio ousadamente afirma que mesmo o Não-Ser é belo, quando se refere ao Bem enquanto princípio absolutamente transcendente.

O Belo é o poder harmonizador de todas as coisas, realiza a coordenação universal, reúne por ligações eternas as misturas dos elementos. Proclo, comentando o Timeu, afirma que Atena possui um aspecto filosófico e um aspecto filopolêmico. Pelo aspecto filosófico, a deusa realiza a virtude, que está na ordem do formal. Pelo aspecto filopolêmico, ela realiza a harmonia entre os contrários no mundo. A polêmica (polemos, πόλεμος) é a guerra, a oposição sem conciliação. O Belo, tal qual Atena filopolêmica, é a conciliação daquilo que não estava unido e que não se manteria unido não fosse por sua ação.

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Leia também: Νεκρομαντεῖον: Dionísio Areopagita (oleniski.blogspot.com)

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

Mário Ferreira dos Santos e a "A Sabedoria da Unidade" (capítulo II)

"Onde há propriedades de alguma coisa, há alguma coisa, onde há unidade há ser, onde há ser há unidade. Um ser, sem unidade, seria um ser que não é o que é. Nesse caso, seria nada."

MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS, "A Sabedoria da Unidade", p. 11

O filósofo brasileiro Mário Ferreira dos Santos, no início do capítulo II de sua obra matética "A Sabedoria da Unidade", retoma o que foi dito no capítulo precedente (Νεκρομαντεῖον: Mário Ferreira dos Santos e a "A Sabedoria da Unidade" (capítulo I) (oleniski.blogspot.com), afirmando que não se pode confundir os diversos logoi da unidade. O logos da unidade em geral (de toda e qualquer unidade) não pode ser confundido com o logos desta unidade (uma maçã, por exemplo), que é um composto (synolon, σύνολο) de uma estrutura eidética (eidos, εἶδος, Forma) e de uma estrutura hilética (hylé, ὕλη, matéria), e nem confundido com a tensão como esforço de coerência entre as partes de um Todo.

Logos da unidade ≠ Logos desta unidade (composto de estrutura eidética e estrutura hilética)  Logos tensional (esforço real de coerência)

Todos esses logoi residem no Ser, e este é a atualidade (Ato, aquilo que é) sem deficiência, o Ser Supremo. Não pode haver outro princípio supremo que o Ser, pois tudo o que é, foi ou pode ser reside e tem sua origem no ato de Ser. O Ser é a absoluta simplicidade, dado que tudo o que é múltiplo tem ser, tem realidade. Mas o múltiplo pode se dissociar e se decompor, contudo permanecendo as partes que o compunham como entes no Ser. Assim, para que multiplicidade exista, é preciso que as partes, estando associadas ou dissociadas, tenham realidade, façam parte do Ser.

O Ser não se multiplica, como se fosse cortado como um bolo em que os pedaços cortados diminuem a quantidade do bolo restante. Ao contrário, a presença do Ser não é quantitativa. Todo o ser que existe, que possui alguma realidade, possui em si mesmo o Ser na sua integralidade como seu fundamento. Da mesma forma, se o Ser está presente em tudo de modo absoluto e simples, não divisões internas no Ser, nem passagem temporal. Ao contrário, são as coisas, ao durarem, ao permanecerem no Ser, que estão no tempo.

O Ser não sofre mutações ou mudanças, pois como mudaria para algo que não fosse o próprio Ser? Mudaria para o Nada? Mas, o Nada não existe, e nem pode existir, uma vez que o Nada é a absoluta ausência de Ser, seja potencial ou atual.*

Os logoi são reais, não são invenções da mente humana. Contrariamente aos nominalistas, que restringem os universais à representações mentais, o realismo moderado, que Mário Ferreira esposa, afirma que há um fundamento in re (nas coisas) para os conceitos que concebemos. Se não houvesse esse fundamento, os conceitos seriam meras ficções. E se os conceitos possuem fundamento in re, apontam para alguma positividade, para algo que é um alius (outro), para uma presença que, por conseguinte, nega a ausência de realidade.

A unidade, diz Mário Ferreira, é clusa (do latim, claudo, tapar, fechar, encerrar), pois ela fecha algo, inclui nela o que é a coisa e exclui aquilo que não é (inclusão e exclusão). Em outros termos, a unidade fecha em si mesma tudo aquilo que é real sobre algo, e, consequentemente, expulsa de si, como o outro (aliud), tudo o que não pertence à sua clausura. Aquilo que a unidade inclui pertence à ela in se, o que implica que não haja divisão interna à unidade.

O que a unidade inclui é idêntico (idem, no latim; autos, no grego) à ela mesma, e é outro (alter, no latim; allós, no grego) para tudo aquilo que lhe for diferente. Toda unidade, com relação a uma unidade diferente dela, é outra que outra, isto é, não pode ser idêntica a qualquer outra, sendo por isso sempre a outra de uma outra unidade.

Tudo aquilo que possui alguma positividade, tem algum ser, tem alguma realidade. E, sendo algo positivo, pelo ato mesmo de ser algo real, exclui de si todas as outras possibilidades de ser. Algo que é X, no ato mesmo de ser X, nega todas as possibilidades de Não-X, sejam elas A, B, C, D, etc. Tudo o que não seja X, será diferente de X, será outro que X. 

Só se pode captar aquilo que possui alguma realidade, alguma positividade. A ausência de uma positividade é o não-ser, e este não pode ser captado, dado que não possui em si nenhuma positividade. Quando tratamos de uma ausência, não captamos algo, só fazemos referência à falta de algo. Assim, é somente por referência ao positivo que podemos nos referir ao não-positivo, ao negativo, ao que não é, ao que não existe.

A divisão ocorre justamente quando há ausência de uma positividade em que está presente em Y. Por exemplo, basta que percebamos que uma maçã é colorida para sabermos que ela é diferente de um conceito, que não possui cor. Ambos possuem positividade, cada um a seu modo, mas o que está presente em um e ausente no outro é o que os torna diferentes. Só posso distinguir as coisas se encontro nelas alguma diferença, alguma positividade que está presente em uma e não na outra.

"O que é um é outro que outro, e o mesmo que si mesmo", afirma o filósofo brasileiro. É preciso ver na fraseologia de Mário Ferreira, que parece somente reafirmar coisas que são óbvias, o esforço de esclarecer, dentro do âmbito da linguagem, o que está no fundamento da própria linguagem. Não à toa, por ser um esforço de reconhecer e de apresentar os fundamentos da realidade, a linguagem parece dar voltas em torno de si, tentando morder a própria cauda como uma serpente.

Em certo sentido, a identidade é indizível, e todo esforço de dizê-la esbarra em dificuldades imensas. A identidade é tão fundamental que não conseguimos representá-la a não ser pela linguagem do múltiplo. Representamos a identidade pela fórmula lógica A=A. Ocorre que, ao igualarmos um A a outro A, querendo representar a identidade, fazemos uso da diferença. Não obstante, ninguém consegue realmente negar a realidade fundamental da identidade, isto é, o ser isso que se é e não outra coisa.

Como a linguagem depende do Ser e o Ser é unidade, não é de se surpreender que aquilo que é derivado seja, em alguma medida, incapaz de expressar o seu próprio fundamento. Mário Ferreira quer expressar aqui o caráter absolutamente fundamental da unidade. Não é o um que nasce do múltiplo. É o múltiplo que, ontológica e logicamente, é subordinado ao um. 

A unidade é também uma estrutura, ou, como Mário Ferreira denomina, uma tectônica. A razão disso já foi exposta anteriormente. A unidade pode ser composta interiormente, isto é, compreender em si um conjunto de positividades, ou pode ser absolutamente simples. A unidade absolutamente simples corresponde ao Ser, cuja simplicidade decorre do fato de que nada há que seja oposto ao Ser, ou diferente dele, enquanto fundamento de tudo o que é e pode ser.

A unidade é composta interiormente quando reúne em si as positividades essenciais de um certo ente. Toda maçã possui as mesmas características (cor, cheiro, tamanho, sabor, etc.) que, embora sejam diferentes entre si, compõem uma unidade que é mais do que a soma dessas características, e se constitui em um Todo. Embora múltiplo internamente, o Todo é Um, uma unidade indivisa, invariável e coerente. 

Mário Ferreira mostra que há aqui cinco esquemas fundamentais:

1) Ser, que é positividade, afirmação positiva;

2) Não-ser, recusa de positividade, negação;

3) Unidade, que é indiviso in se e divido ab alio, isto é, indiviso em si e distinto de outro;

4) Divisão idem et alter, o si mesmo e o outro;

5) Multiplicidade, que é o outro que outro.

Note-se como esses esquemas se encadeiam do fundamental até o fundamentado. Em primeiro lugar, há que haver a positividade. Algo deve ter presença, ou, de acordo com o que o princípio da Filosofia Concreta afirma, algo há. A primeira evidência insofismável é que alguma coisa existe. Seja o que for essa coisa que existe, ao existir, afirma-se a si mesma, e, por isso mesmo, nega tudo o que não é ela ou poderia não ser ela. Desse modo, ao ser X, exclui-se ontológica e logicamente tudo o que é não ser X.

Não ser X é negar a positividade de X, ou seja, significa não possuir em si mesmo todas as positividades que caracterizam X. Nada impede que haja coincidência parcial, que um não-X possua algumas das positividades de X. Mas pelo próprio fato de que não há coincidência total, algo está ausente em não-X que está presente em X. 

Havendo X, afirma-se uma unidade, e é enquanto unidade que X se distingue de não-X. Considerado como um Todo, X é indiviso em si. Sendo indiviso como uma unidade de composição, X necessariamente está dividido (é diferente) de toda outra unidade de composição que não seja X. Ele é idem para si e alter para outro. A multiplicidade, portanto, só pode ter o seu fundamento na unidade, dado que aquilo que é positivo em uma unidade e que está ausente em outra é que determina a divisão.

Toda divisão está ligada ao não-ser relativo, ou seja, ao fato de que toda ausência é relativa a uma positividade. A unidade, contudo, pode ser absoluta, uma vez que o Ser é a unidade simples que reúne em si toda e qualquer positividade sem nenhuma diferença.

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* Para uma discussão mais detalhada da unidade absoluta do Ser, recomenda-se a leitura das obras "Filosofia Concreta" e "Filosofia da Crise". 

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Νεκρομαντεῖον: Mário Ferreira dos Santos (oleniski.blogspot.com)

sábado, 10 de fevereiro de 2024

Aristóteles, Física e o conceito de natureza

"Seria absurdo tentar provar que a natureza existe, pois é evidente que há muitas coisas desse gênero. E provar o que é evidente por meio do inevidente é a marca do homem incapaz de distinguir o que é certo daquilo que é incerto."

ARISTÓTELES, Física, livro II, parte 1, 193a

No âmbito da Física, das coisas que existem, algumas existem por natureza e algumas por outras causas. Aristóteles, já no início do livro II, apresenta sua distinção fundamental entre aquilo que é natural e aquilo que é artificial. Entes que existem por natureza, são, por exemplo, os animais as plantas e os corpos simples (terra, fogo, ar e água). O que reúne todos esses entes é o fato de eles possuem "dentro de si" o princípio de suas mudanças e de seu repouso (local, de crescimento, decréscimo ou alteração).

O animal move a si mesmo, a planta cresce por si mesma, o fogo se dirige para o alto, assim como a terra se dirige para baixo. Em todos esses casos, não há nenhuma interferência externa para que essas operações aconteçam. Elas nascem, por assim dizer, "de dentro" desses entes sem que nenhuma ajuda exterior seja necessária. Isso significa que as operações de um ser natural se devem exclusivamente a tendências intrínsecas àquele ser, e que variam segundo o tipo de ser que ele é.

As chamas do fogo, não havendo obstáculos, sempre sobem. Uma pedra, se retirada do chão e depois deixada a si mesma, desce na direção do solo. As plantas crescem e se nutrem. O animal, além de crescer e se nutrir, também se locomove e possui apetite. Todas essas operações acontecem como manifestação de uma tendência que é interior a esses entes. Nenhuma delas é produto da ação causal de um ser externo agindo sobre eles.

O traço definidor daquilo que é natural é justamente esse caráter intrínseco das operações típicas dos entes naturais. Em outro sentido, a natureza de um ser define o conjunto de potencialidades que ele possui simplesmente por ser aquele tipo de ser. A planta possui um conjunto definido de características que lhe pertencem simplesmente por ser planta. Ela só pode realizar aquilo que está contido na sua natureza. A planta pode crescer, mas não pode voar.

A natureza, então, é "a fonte ou a causa de ser movido e de estar em repouso naquilo que pertence a ele primariamente, em virtude de si mesmo e não em virtude de um atributo concomitante". O ente natural tem em si mesmo, não em outro, o poder de mudar. Uma mesa, au contraire, não possui o poder de mudar por si mesma. Aliás, o seu próprio vir a ser, isto é, sua vinda à realidade, se dá justamente pela ação transitiva de uma causa que lhe é externa, o carpinteiro, que junta partes materiais independentes segundo um plano ou uma ideia que é externa e sem relação com o material empregado. 

Obviamente, as coisas naturais também possuem causas externas. Um animal só vem à realidade pela ação causal de seus progenitores. O fogo tem que ser aceso por alguém ou por algo. O ponto de distinção entre o natural e o artificial reside na espontaneidade intrínseca e regular da mudanças que o ser natural apresenta. A distinção não está em ter ou não uma causa para a sua existência, mas, sim, no tipo de ser que o ente natural é.

Aristóteles acrescenta que o ser natural é uma substância (οὐσία), aquilo que, groso modo, existe por si mesmo e não em outro. O ser natural possui nele mesmo o seu "princípio ordenador", que define o tipo de ser que ele é. A natureza, consequentemente, além de ser um princípio intrínseco, define o que é a coisa. Por isso, perguntar sobre a natureza de algo é perguntar o que é a coisa. Saber o que é uma coisa é saber um conjunto essencial de características fixas que são intrínsecas a essa coisa e que permitem identificar ou antecipar as capacidades e as incapacidades que se seguem desse conjunto.

Em seguida, o filósofo macedônio afirma que o termo "de acordo com a natureza" é aplicado a todas as coisas e atributos que pertençam a elas em virtude do que elas são. Por exemplo, a propriedade das chamas do fogo de subir em direção ao céu é algo de acordo com a natureza, pois é intrínseca ao fogo, sendo uma de suas características típicas. 

Note-se que uma cadeira também é definida por um determinado "princípio ordenador" que a define como uma cadeira. O ponto é que, antes de ser uma cadeira, havia uma matéria (seja ela qual for) que, por si mesma, não tinha a característica de ser cadeira. Um pedaço de madeira, sendo algo natural, tem as propriedades típicas de toda e qualquer porção de madeira. Mas nenhum pedaço de madeira tem a capacidade de se tornar uma cadeira exclusivamente por seus meios

Enquanto madeira, tornar-se uma cadeira por si mesma não está entre as suas capacidades naturais. Decerto, a madeira possui a potencialidade de ser moldada como uma cadeira. Existe nela uma moldabilidade natural que permite que certas mudanças (algumas, não todas) sejam realizadas nela por um agente externo. Mas ela, sozinha, espontaneamente e de forma regular, jamais se torna uma cadeira. O ato de ser uma cadeira é imposto na madeira por um agente externo, fazendo-a assumir uma forma que ela jamais assumiria por sua própria capacidade.

Um embrião humano, apesar de ter tido causas externas (seus pais), desenvolve-se completamente independente de seus progenitores na direção fixa e regular de um ser humano completo. As mudanças que sofre são internas, são diferenciações que acontecem dentro do organismo segundo um princípio ordenador que lhe é intrínseco, e que manifesta o tipo de ser que ele é. O desenvolvimento de um feto humano difere do de um feto de pato. 

Em ambos os casos, contudo, o que se está formando não é fruto da imposição externa de uma forma à uma matéria que, por si mesma, não teria aquela forma imposta de fora. A cadeira é o produto da junção de partes materiais já existentes e que são unidas segundo o plano de um agente exterior. O embrião se desenvolve pela diferenciação interna dos órgãos que se formam espontaneamente segundo um plano que é intrínseco ao próprio embrião, e que manifesta assim a sua natureza.

É inegável que existam naturezas, afirma Aristóteles. Seria absurdo tentar provar o que é evidente, e quem exige uma prova desse tipo de coisa não sabe distinguir entre o que é evidente e o que não é. Um homem cego pode muito bem falar sobre cores como quem fala sobre palavras sem conhecer o seu significado. Ninguém pode consistentemente negar a existência de naturezas. Basta olhar para o mundo para se ter a certeza de que há coisas naturais.

Alguns pontos podem ser salientados nesse ponto. O primeiro e óbvio é que Aristóteles não está afirmando que tudo é natural. Basta que haja alguma coisa natural para que a sua afirmação seja verdadeira. O segundo ponto é que, para o físico, cujo objeto de estudo é o natural, não pode haver dúvida de que existem entes naturais. Uma ciência, qualquer que ela seja, tem como primeira exigência a identificação da existência de seu objeto de estudo. Se não houvesse natureza, não haveria Física como uma ciência.

O terceiro é que a existência de naturezas é evidente pela experiência (ἐμπειρία, empeiria), isto é, é um fato empírico. Negar as naturezas seria negar a experiência direta do mundo e de nós mesmos. Ninguém em sã consciência espera que a água na panela congele sob o fogo ou que do embrião humano resulte uma girafa. É fato que os resultados esperados naturalmente nem sempre acontecem por conta da ação de fatores intervenientes. O embrião de um gato, por diversos motivos, pode se desenvolver insuficientemente ou defeituosamente.

Perceba-se, no entanto, que só conhecemos o insuficiente, o defeituoso, o imperfeito e a exceção graças ao conhecimento prévio do comportamento regular. Em si mesma, a exceção não pode ser conhecida a não ser pelo conhecimento prévio da regra, isto é, ela supõe a regra. 

O fundamento primeiro da Física como ciência (e de todas as ciências naturais), é a existência daquilo que é natural, que, como Aristóteles aponta, "acontece sempre ou na maior parte das vezes". Negar a existência da natureza é negar a possibilidade da própria ciência. Como pode haver ciência deste mundo sensível e empírico se não houver a mínima ordem, a mínima previsibilidade? A existência das naturezas não é uma descoberta da ciência, mas é seu pressuposto mais básico. 

Recordando a definição de Aristóteles, ciência (epistēmē, ἐπιστήμη), é tudo aquilo que se deriva a partir de princípios (que não são, eles mesmos, derivados de outros princípios). Cada ciência tem seu objeto de estudo, e, portanto, tem seus princípios próprios correspondentes a seu objeto. Contudo, o princípio de toda e qualquer ciência empírica é o reconhecimento da existência das naturezas. Uma ciência não pode provar a existência de seu objeto de estudo, ela reconhece como evidente a sua existência.

Um físico não pode provar, com os meios da Física, que as coisas têm naturezas. Seria como alguém querendo sair da água puxando os próprios cabelos. A Física só pode se instalar como ciência no reconhecimento prévio da existência de seu objeto de estudo: a natureza. Precedendo o trabalho científico está a evidência empírica direta e inegável do seu objeto. 

Portanto, a regularidade natural é o princípio indemonstrável a partir do qual toda a ciência física vai ser erigida. "Indemonstrável", no presente contexto, significa aquilo que não necessita de demonstração ou de prova por ser sabidamente verdadeiro ou autoevidente. Negar a natureza seria negar a previsibilidade dentro do mundo. Não somente das coisas exteriores, mas também de nós mesmos. 

Imaginar que as maçãs podem amanhã não ser mais doces não parece ser tão problemático. Outra coisa bem diferente é imaginar que todos os comportamentos regulares de todas as coisas naturais podem amanhã mudar, e depois disso mudar de novo incessantemente. Negar a regularidade natural é negar qualquer previsibilidade, inclusive a de nosso corpo. Se não há regularidade, então nada impede que no próximo segundo meu próprio cérebro deixe de funcionar como tem funcionado até hoje.

Eis um ponto interessante, pois a conditio sine qua non das ciências naturais, quaisquer que elas sejam, é o reconhecimento da existência daquilo que é extra-científico, isto é, do que está fora do âmbito da própria ciência. Nenhum cientista pode provar, com os dados e os métodos de sua ciência, que haverá sempre uma regularidade natural. Ou bem isso é assumido como verdadeiro ou bem não há ciência empírica. 

Se a existência de naturezas for assumida como uma hipótese, então, logicamente, tudo o que a ciência diz sobre o mundo será meramente hipotético. Entretanto, dessa forma, seria impossível explicar por qual razão as coisas naturais se comportam de modo regular. Se não há nada que seja intrinsecamente regular, nenhuma explicação será possível para nada no mundo, dado que explicar algo cientificamente é identificar as suas causas. E causas irregulares não explicam cientificamente nada.

Mesmo David Hume, do alto de seu ceticismo acerca da regularidade natural, foi incapaz de encontrar outra explicação para a nossa tendência de esperar regularidade no comportamento das coisas que não fosse algo também regular, a saber, o hábito. Se é o hábito que explica que nós sempre esperamos regularidade no comportamento das coisas, então essa explicação repousa sobre a suposição do efeito regular do próprio hábito como uma tendência natural de formar certas convicções. A explicação supõe exatamente aquilo que ela deveria explicar.

Aristóteles segue a sua exposição asseverando que alguns identificaram a natureza ou a substância de um ente natural com o seu constituinte imediato. Por exemplo, o bronze seria a natureza da estátua e a madeira a natureza da cama. A favor dessa visão, Antífon observava que se alguém enterrasse uma cama de madeira, e se algo dela viesse a nascer, seria uma árvore e não uma cama. O que mostraria que o arranjo feito pelo artista seria meramente acidental, enquanto a madeira, a sua natureza, seria o elemento permanente.

Dessa forma, alguns defenderam que o constituinte material é a natureza da coisa. Os primeiros físicos identificaram a natureza com a matéria da qual todas as coisas seriam feitas. Aristóteles refere-se à tradição pré-socrática de identificar a physis, a natureza, com algum elemento primordial (terra, água, ar, átomos, etc.) e encarar todas as coisas que se apresentam aos nossos sentidos como modificações e estados desse elemento primordial.

Poderíamos denominar esse gênero de explicação de materialismo, uma vez que toda a diversidade e todas as operações das coisas dentro do mundo seriam derivadas da matéria da qual elas são feitas. O que equivale a dizer, o fim e ao cabo, que todas as coisas que testemunhamos (e nós mesmos) não são nada mais do que o material do qual são constituídas (seja esse material qual for). 

Não é difícil reconhecer aqui uma tendência bastante presente na ciência moderna, qual seja, a tentativa de explicar a realidade física pela mera interação das porções de matéria de acordo com suas propriedades básicas. A concepção do que é a matéria pode variar (corpúsculos, pura extensão, etc.), mas a ideia geral é a mesma: tudo o que se pode conhecer e tudo o que é necessário para explicar os fenômenos naturais reside nas propriedades básicas da matéria.

A questão, contudo, é saber o que é mais primordial para a coisa ser o que ela é. O que faz com que uma coisa seja uma cadeira? Acaso é o fato de ser feita de madeira? Fosse assim, não haveria distinção real entre um armário, uma mesa e uma cadeira feitos de madeira. Que isso é absurdo ninguém duvida. Uma cadeira é realmente distinta de uma mesa, ainda que ambas sejam feitas de madeira. Mais do que isso, aquilo que explica o que é uma cadeira não é o seu material, pois é fato que ela pode ser feita de vários materiais: plástico, metal, etc.

A distinção entre uma mesa e uma cadeira não está em nenhuma qualidade ou propriedade da madeira, do plástico ou do metal do qual elas são feitas. Assim como a estátua não pode ser explicada por qualquer característica do bronze do qual ela é feita. Um Apolo não pode ser reduzido a quaisquer das propriedades do bronze do qual foi feito. É claro que o material pode ser adequado ou inadequado para produzir a estátua, mas isso explicaria somente a razão pela qual foi utilizado este material e não aquele para a sua produção.

Vê-se que, ainda que se trate de artefatos (objetos que devem sua existência ao desígnio de um artífice), o elemento que determina o que a coisa é não reside na matéria da qual ela é feita. O que distingue uma cadeira de uma mesa é o tipo de coisa que ela é, e não aquilo do qual é constituída. Isso não significa que o elemento material seja desimportante ou dispensável. Significa apenas que aquilo que torna uma coisa o que ela é, a sua substância, não se encontra na matéria.

A tentação de explicar tudo pela matéria constituinte das coisas decorre da percepção errônea daquilo que são as coisas primordialmente. Se é inegável que a matéria é um elemento indispensável para a explicação de diversos aspectos das coisas deste mundo, é igualmente verdade que ela é incapaz de explicar tudo o que essas coisas são. Ou melhor, a matéria é insuficiente para explicar o que são essas coisas. A pergunta "o que é isso?" não é respondida pela indicação do material do qual as coisas são constituídas.

Então, qual é o elemento que explica o que são as coisas? Se tomamos uma cadeira, o que explica o fato de que se trata de uma cadeira é o seu princípio de ordenação que foi imposto à matéria por um artífice consciente. É o elemento formal, isto é, a Forma (εἶδος, eidos, em grego) que torna a coisa o que ela é. Uma cadeira tem uma Forma diferente de uma mesa, apesar de ambas serem feitas de madeira. É bom que se diga que Forma não se refere somente ao formato exterior da coisa, mas, primordialmente, à ordenação da coisa segundo uma regra.

No caso dos artefatos, a ordenação vem de fora, é extrínseca. Nos entes naturais, a ordenação vem de dentro, é intrínseca. Um cavalo, um ser humano e um pinguim são todos, no fim das contas, constituídos pelo mesmo tipo de matéria fundamental (ossos, músculos, sangue, ou algo ainda mais fundamental, seja o que for), mas o que os diferencia é o tipo de ser que cada um é. A distinção se encontra no âmbito formal, e é isso que determina a natureza de cada um deles.

Aristóteles conclui que a natureza está antes na Forma do que na matéria. O homem nasce do homem, mas a cama não nasce da cama. Isso se deve ao fato de que a cama é construída de fora por um artífice. A sua Forma não lhe é intrínseca, ela é imposta, implantada em uma matéria já existente. Já no ser humano, a Forma determina o que é o ser humano desde o seu início, intrinsecamente, de modo que a matéria e a Forma vêm unidas indissoluvelmente em uma única substância.

A natureza se manifesta no crescimento do ente natural. Aristóteles usa um exemplo curioso para distinguir esse desenvolvimento natural daquilo que é artificial. A arte da medicina conduz não a ela mesma, mas à saúde. Isto é, a arte da medicina, como qualquer arte, conduz a um objetivo distinto dela mesma. O médico não trata o paciente para alcançar a arte da medicina. O médico utiliza a medicina como meio para um fim outro, a saber, a reconstituição da saúde do paciente.

A arte se define como um raciocínio reto na produção de algo, um meio para alcançar um fim. A natureza, por outro lado, não persegue objetivos externos à ela mesma. O crescimento, ou desenvolvimento, de algo natural não tem um fim externo. O ente natural se desenvolve, por assim dizer, para se tornar o que ele é. Ou seja, ao se desenvolver, ou ao operar, o ente natural manifesta exatamente aquilo que ele é. 

O ato de desenvolvimento não se dá na direção da qual ele iniciou, mas sim na direção à qual a coisa tende. A planta, por exemplo, cresce e se desenvolve para se tornar plenamente uma planta. Todas as potencialidades que ela vai atualizando realizam o que significa ser uma planta. O objetivo final, se assim podemos dizer, é a própria planta, e não a produção de algo externo à ela (como na arte). A natureza constitui o que é a coisa, e por isso rege o seu desenvolvimento e as suas operações. A coisa natural tende a realizar a sua regra interna.

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terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

Huang Po, budismo, o ordinário e o extraordinário


"Ordinário e extraordinário são indistintos. Tudo é perfeito!"

SENGZHAO (384/414 D.C.)

O grande mestre budista Ch'an chinês do século IX D.C., Huang Po, exortava seus discípulos a distinguir o que era o espírito ordinário e o que era o espírito extraordinário. Vendo, porém, que estes não compreendiam suas palavras e que, com isso, tornavam o vazio algo concreto, o sábio insistia sobre o fato de que no momento que eles não tivessem mais "sentimentos ordinários sobre o extraordinário" não haveria mais Buddha a não ser em seus espíritos.

O problema era que os discípulos se apegavam aos conceitos mesmos de ordinário e de extraordinário, e, assim, afastavam-se cada vez mais do espírito. Em um só instante em que prevalecesse uma emoção, cairia o discípulo em um outro destino. Os aprendizes insistem querendo saber o princípio pelo qual desde sempre o espírito é o Buddha. E o mestre responde que não é nada que, ao buscá-lo, o buscador se distinga dele.

Mas, se não há distinção, por que o mestre usa a cópula "é"? Huang Po responde que se os discípulos não discriminam entre o ordinário e o extraordinário, quem usa a cópula? Quando tiverem os discípulos esquecido tudo o que concerne ao espírito, onde eles ainda o buscarão?

Huang Po parece brincar com o conceito de distinção do extraordinário e do ordinário, ora exortando os discípulos a realizarem essa distinção, ora criticando-os por realizarem essa distinção. O discurso do mestre, contudo, se encontra em dois níveis. No nível humano, ou melhor, no nível da realidade fenomênica, há diferença entre a experiência ordinária e a experiência extraordinária do Boddhisattva. Ninguém negaria que a experiência do Buddha Sakyamuni difere daquela do homem comum, submetido como está ao ciclo do Saṃsāra.

Não obstante, do "ponto de vista" do espírito puro (que não é um ponto de vista, posto que é absoluto), as distinções mesmas de ordinário e extraordinário perdem o seu sentido. Todavia, o apego a essas formas duais de pensamento, por válidas que sejam no plano fenomênico da experiência comum, entravam a verdadeira compreensão do espírito puro (que é o próprio Buddha, para além de toda e qualquer distinção). 

O espírito puro, nesse sentido, não é dizível dentro do vocabulário dual do mundo fenomênico. Sim, o espírito puro não é uma experiência ordinária, e, portanto, se distingue dela pelo seu caráter extraordinário. Mas ao chamar o espírito puro de "extraordinário", arriscamo-nos a torná-lo algo cuja estranheza depende dos parâmetros da experiência ordinária. Ou seja, se o ordinário é o mundo das coisas, o extraordinário será o mundo das coisas fora do comum, mas ainda assim no âmbito das coisas.

Por isso Huang Po acusa os discípulos de transformarem o vazio em "algo concreto", isto é, algo encontrável, semelhante a qualquer coisa da experiência ordinária. Os termos "ordinário" e "extraordinário" são inadequados para descrever o espírito puro justamente porque pertencem à experiência fenomênica. O "ordinário" é o comum, o que sempre acontece da mesma forma. O "extraordinário" é aquilo que foge à regra, o incomum, o que não acontece de modo regular.

O espírito puro, porém, não é "algo" e nem uma "coisa", seja ela comum ou incomum, ordinária ou extraordinária. Chamar o espírito puro de "extraordinário" é diminuí-lo, é transformá-lo em uma coisa entre outras coisas. Em uma linguagem filosófica, isso significa hipostasiar o que não é um ente de fato. Comumente, o ser humano hipostasia aquilo que não é realmente uma coisa. Por exemplo, quando trata como coisas conceitos abstratos (Nação, Estado, etc.). Nesses casos, dá-se substancialidade àquilo que não é substancial ou àquilo que só existe na dependência de algo substancial.

O problema é que o espírito puro não é algo que não seja real ou que dependa de algo real. Ao contrário, são as coisas reais que dele têm a sua existência. Desse modo, o espírito puro não pode ser considerado algo por estar abaixo da linha da realidade, mas, sim, por transcender infinitamente todas as coisas do mundo fenomênico. O Princípio não pode apresentar as limitações próprias daquilo do qual ele é o princípio.

No momento em que os discípulos tivessem abandonado todo "sentimento ordinário sobre o extraordinário", não haveria mais Buddha a não ser em seus espíritos, dizia Huang Po. No momento em que os discípulos ultrapassassem as dualidades do tipo ordinário/extraordinário, não haveria mais diferenças entre o Buddha e eles mesmos. Em outros termos, saberiam que, desde sempre e para sempre, sempre foram o Buddha, pois o Buddha é o espírito.

Ultrapassar o estado das distinções é realizar o estado búdico do qual estamos "separados" somente por ignorância. É realizar a absoluta equanimidade diante de todas as coisas. No entanto, sem apego, sem desprezo e sem negação. Nada é obstáculo se o espírito é livre. Por um lado, tudo é reunido no Buddha sem distinções de qualquer tipo. Por outro lado, nada se destaca como objeto de desejo ou de aversão. A mesma equanimidade do espírito puro que reúne em si todas as coisas distintas. também torna-as todas um vazio indistinto.

Se em um só instante alguma emoção prevalecesse, diz Huang Po, o discípulo cairia em outro destino. Se uma só coisa se tornasse objeto de atenção especial, de desejo ou de aversão, o discípulo sairia do espírito búdico da unidade absoluta e retornaria ao mundo fenomênico da distinção e das dualidades. Não são duas realidades (o espírito búdico de um lado e o mundo fenomênico do outro), mas uma só e idêntica realidade que só se manifesta em termos de separação por conta da ignorância que nasce do apego a este ou àquele ente ou estado de espírito.

No limite, até os meios de transmissão e de ensino empregados pelos mestres podem se converter em obstáculos à iluminação. As respostas de Huang Po, do modo como são filtradas pelos anseios e apegos dos discípulos, longe de esclarecerem o caminho, tornam-se fins em si mesmos, ocasiões para a mente se entreter como novos objetos de atenção. Tal qual um prisioneiro que, de posse da chave da porta de sua cela, em vez de abrí-la, se dedica a estudar a chave e suas relações com a fechadura.

O espírito puro não é algo que, ao buscá-lo, o buscador dele se distinga, ensina Huang Po. Aquele que busca algo é diferente daquilo que ele busca. A unidade fundamental do Buddha não pode ser algo que se busca. Não há, tampouco, qualquer relação "X é Y", na qual X é diferente de Y. Portanto, mesmo o uso da cópula "é" se deve aos limites intrínsecos de nossa linguagem. Se Huang Po usa a linguagem dual do mundo fenomênico, ele o faz somente para indicar aos discípulos a Via (道). 

É preciso que o discípulo não se apegue às limitações da linguagem, e enxergue a realidade suprema para além dos meios usuais de expressão. É a Lua que importa, não o dedo que para ela aponta. Fora do mundo fenomênico das distinções e das dualidades, não resta quem use a linguagem dual. Se os discípulos houvessem ultrapassado a distinção entre o ordinário e o extraordinário, não haveria sequer o mestre a quem fazer suas questões.

Aliás, não faria sentido sequer formular questões. Não há pergunta onde não há o "outro" que se desconhece. Só há o "mesmo", eternamente sem diferenças. Quando o discípulo esquecer do próprio espírito (com suas agitações, desejos e aversões), nada restará a ser buscado. Tudo estará ali porque tudo é desde sempre reunido no espírito búdico indiferenciadamente. E, ao fim, nada terá sido encontrado.

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sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

Aristóteles, Física e o conceito de mudança


"Podemos definir a mudança como a atualização do móvel enquanto móvel, sendo a sua causa o contato com aquilo que pode mover."

ARISTÓTELES, Física, Livro  III, 202a [5]

No Livro III de sua Física, Aristóteles almeja elucidar o conceito capital de mudança (κίνησις). O objeto próprio da ciência física são os móveis, isto é, os entes capazes de mudança. Alguns desses entes são naturais, enquanto outros são artificiais. Os entes naturais são aqueles que possuem uma natureza, definida como "princípio de mudança e de repouso". Eles possuem intrinsecamente uma regra de mudança que determina o tipo de ser que eles são. O gato, por exemplo, é um ser natural porque tem em si mesmo um princípio que o diferencia de todos os outros seres, e que se manifesta no desenvolvimento típico do gato, com todas as suas potencialidades características, sejam ativas ou passivas. 

A natureza do gato, nesse sentido, é aquilo que ele é, e, por isso mesmo, não é algo que venha a ele de fora, como se fosse imposto por um ser externo e diferente dele. Ao contrário, o artefato, aquilo que é resultado da produção (ποίησις) e da arte (τέχνη), recebe do artista (extrinsecamente) a sua forma, aquilo que o define. A mesa não nasce naturalmente da madeira. O carpinteiro impõe a forma da mesa na madeira, tornando real uma das suas inúmeras potencialidades. 

Há quatro tipos de mudança: substancial (geração ou corrupção), quantitativa (aumento ou diminuição), qualitativa (perda ou aquisição de uma qualidade) e local (deslocamento de um lugar a outro). Por exemplo, João foi concebido por seus pais (geração substancial), cresceu até 1,70m (quantidade), tornou-se adulto (qualidade), mudou-se do Rio para São Paulo (mudança local) e faleceu (corrupção substancial). Todos esses tipos de mudanças podem acontecer em um mesmo ente material.

Diferentemente da física do século XVII, Aristóteles admite mais tipos de mudança do que somente o movimento local. Galileu, Descartes (principalmente) e, em certa medida, Newton, definiram a nova física que se circunscreve a descrever matematicamente aquilo que pode ser mensurado nos corpos, em especial as suas características geométricas. Por essa razão, como mostra o filósofo, físico, matemático e historiador da ciência Pierre Duhem, em seu texto L'Évolution des Théories Physiques, um conjunto amplo de fenômenos restou fora do âmbito das explicações físicas:

"O geômetra não conhece nos corpos senão uma única espécie de modificações, a mudança de figura e de posição no espaço, o movimento local. O físico concebe e analisa um movimento infinitamente mais geral que abraça, em suas diversas formas, toda sorte de mudança na substância e as qualidades dos corpos. Movimento, o movimento local pelo qual os corpos mudam de figura e de posição, mas também o movimento enquanto o ato pelo qual uma qualidade se torna mais ou menos intensa (...), o movimento como a operação pela qual as qualidades se transformam umas nas outras (..), o movimento como aparição e desaparição de uma qualidade (...), o movimento como a combinação que une os elementos simples para formar os mistos." * 

Ao reconhecer esses tipos de mudança, Aristóteles afirma que há algo em comum em todos eles. Resta agora definir o que é a mudança. A mudança só pode ser compreendida a partir de um par de conceitos que se referem a dois modos de toda a realidade: ενέργεια, "energia" (traduzido em Latim como actus, ato) e δύναμις, "dínamis" (traduzido em Latim como potentia, potência). A "energia" (en ergon, "em trabalho", "em exercício") é a realidade primordial, enquanto a "dínamis" só existe na "energia".

No mundo, ensina Aristóteles, existe aquilo que está efetivado (o que já está pronto, realizado), aquilo que está em potência (o que pode ou não se efetivar) e aquilo que existe como potencial e também como efetivo. É fácil compreender que existem coisas que já estão, por assim dizer, prontas. Por exemplo, um vaso que foi moldado pelo oleiro, quando finalizado, é um ente efetivo, e, por isso mesmo, já pode ser usado (pode operar) como um vaso. Do mesmo modo, um órgão no corpo de um animal (por exemplo, o coração), quando chega ao fim de sua formação, já pode operar e cumprir sua função dentro da estrutura do organismo. 

Por outro lado, é igualmente compreensível que há no mundo aquilo que é meramente potencial. O vaso, antes do oleiro moldar a massa, não é mais do que uma potencialidade daquela matéria. O órgão que ainda não se formou é apenas uma potencialidade dentro do organismo. Nada garante que necessariamente o vaso e o órgão efetivar-se-ão na realidade, mas eles só podem se efetivar justamente porque são potencialidades reais.

A mudança, entretanto, parece ser uma natureza intermediária, não estando totalmente nem do lado do realizado e nem do lado do potencial. Por definição, qualquer mudança tem o caráter de algo que está incompleto. Se alguém está indo de um ponto A ao ponto B, necessariamente ainda não está no ponto B. Porém, é igualmente verdade que, ao sair de A na direção de B, alguma extensão já foi percorrida. A mudança tem o caráter intermediário de algo que já alcançou alguma realidade, mas que ainda não se encerrou. 

Nesse sentido, o modo de existência das coisas deste mundo é sempre o de continuidade, ou seja, um interregno entre um início e um fim. Esse meio-termo entre o que é potencial e o que é efetivo mostra que, simultaneamente, há nas coisas algo que se realizou e algo que está por ser realizado. A mudança não é somente uma potencialidade e nem somente uma efetividade, é uma mescla entre esses dois pólos. A criança que se tornará um adulto passará por um processo de amadurecimento dentro do qual haverá um intervalo onde ela não será mais uma criança e nem será ainda um adulto. **

Portanto, a definição de mudança terá que expressar corretamente esse caráter de continuidade e de incompletude. Ninguém diz que algo que permanece o mesmo está em mudança, assim como ninguém diz que algo que chegou ao seu termo está em mudança. Alguém que permanece no ponto A não está em movimento. Alguém que chegou ao ponto B partindo de A não está em movimento. Só está em movimento quem já ultrapassou A e não chegou ainda em B. 

Aristóteles define a mudança como "a realização daquilo que existe potencialmente enquanto existe potencialmente". O aristotelismo medieval definirá a mudança como a "redução da potência ao ato enquanto potência". Descartes, no século XVII, sinceramente ou não, protestava contra a alegada obscuridade e incompreensibilidade dessa definição de mudança. No entanto, a obscuridade é aparente e se desfaz tão logo pensemos sobre a nossa experiência da mudança.

Segundo dito acima, a mudança não é inteiramente nem potência e nem ato, para utilizar a terminologia escolástica. O potencial não é ainda realidade, não é ser. O que é ato, aquilo que é efetivo e realizado, já é ser, uma realidade. A mudança está a meio caminho do não-ser e do ser. Parece algo fantasmagórico ou mesmo contraditório. Como algo pode a um só tempo existir e não existir? A resposta reside na identificação daquilo que na mudança existe e daquilo que nela não existe ainda. 

Obviamente, a mesma coisa não pode existir e não existir ao mesmo tempo e em um mesmo sentido. Ninguém pode estar e não estar no ponto A simultaneamente. Se algo sai do ponto A na direção do ponto B, não está mais em A, mas isso não significa que não esteja em lugar nenhum. Está em algum ponto entre A e B. Qualquer que seja esse ponto, ele é real, embora não seja B. Se o objetivo é chegar em B, então qualquer ponto diferente de A na direção de B será uma distância já percorrida. 

Como o objetivo é B, qualquer distância percorrida antes de B deixa uma outra distância ainda a ser percorrida. Então, existe uma extensão percorrida e uma extensão a percorrer. O que foi percorrido já é uma realidade, o que ainda será percorrido é uma potencialidade. Quando B tiver sido alcançado, não haverá mais mudança. Assim, a mudança é sempre uma potencialidade não completamente realizada, efetivada. 

Voltando à definição de Aristóteles, a mudança é "a realização daquilo que existe potencialmente enquanto existe potencialmente". Isto é, a mudança é uma potencialidade cuja realização não exauriu  a potencialidade. É uma potencialidade inesgotada, mas em vias de esgotar-se. Disso se segue que o término de uma mudança é o exaurimento de uma potencialidade. No ponto B, a mudança de A para B está encerrada. No ponto A, a mudança de A para B é apenas uma potencialidade. Em qualquer ponto entre A e B, a mudança é uma potencialidade ainda não completamente realizada.

Tomás de Aquino, comentando o texto aristotélico, refere-se à mudança como um "ato imperfeito" na medida em que ainda possui uma ordenação a um ato ulterior. Daí, "a mudança não é a potência daquilo que está em potência, nem o ato daquilo que existe em ato. Antes, a mudança é o ato daquilo que está em potência, tal que a sua ordenação à sua potência anterior é designada pelo que é chamado 'ato', e sua ordenação a um ato ulterior é designado pelo que é chamado de 'existindo em potência'". 

Note-se que a mudança, em certo sentido, já é uma realização, uma efetivação, um ato, daquilo que somente estava em potência. O termo "realização" traduz aqui ἐντελέχεια, "enteléquia", o termo utilizado por Aristóteles no texto original grego no sentido geral de algo que alcançou seu termo. Contudo, a mudança só é chamada "realização" (por Aristóteles) ou "ato" (por Tomás) para indicar que a mudança tem realidade somente com referência a um fim que ainda não foi alcançado. É por isso que Tomás pode falar de um "ato imperfeito".

A mudança é ato na medida em que algum estágio ou ponto já foi alcançado, e é imperfeita na medida em que o fim último ainda não foi realizado. A referência da mudança não é simplesmente o afastamento com relação a um ponto inicial. É preciso que esse afastamento seja considerado sob a ótica do fim ainda inalcançado. Certamente, esse fim não precisa necessariamente ser consciente e nem voluntário como é nos seres humanos e, em certa medida, nos outros animais. 

Processos naturais não são conscientes, mas exibem uma constância que manifesta uma tendência intrínseca ou inclinação a certos efeitos. O processo de crescimento de um filhote não é consciente, e mesmo assim exibe uma direção, um sentido, que é inegável. O crescimento das plantas é outro exemplo. Mesmo seres inanimados exibem tendências ou comportamentos constantes. O fogo sobe, queima, esquenta outros seres, etc. A teleologia é um aspecto essencial da ordem, e, em particular, da ordem natural. 

A mudança só é identificada na sua essência quando a realização de uma potencialidade não está completa. Será bom esclarecer que, em muitos casos, a potencialidade não é exaurida ou extinta. Se alguém pode sair do ponto A ao ponto B, nada impede que, chegando a B, retorne e refaça o mesmo caminho muitas vezes. Inúmeros outros processos, deliberados ou não, exibem esse padrão. 

Um ponto importante é que a mudança possui uma tendência a ir além do ponto já alcançado. Essa tendência é expressada na definição de Aristóteles justamente na ideia da realização da potencialidade enquanto ainda é potencialidade. Não se trata somente de uma potencialidade que ainda tem potencialidade a ser efetivada no sentido em que uma pessoa que sai do ponto A e estaciona no ponto B pode muito bem prosseguir posteriormente para o ponto C. Nesse caso, porém, são dois movimentos diferentes, duas potencialidades distintas que foram realizadas.

Testemunhar uma mudança na experiência concreta é perceber que o distanciamento de um marco inicial continua com o ganho de mais e mais posições ou estágios em sequência sem que se tenha alcançado algo que se possa identificar como um ponto chegada ou de repouso, seja ele predeterminado ou não. Em processos naturais regulares e em atos deliberados, o término ou o fim do movimento está decidido de início. Em outros casos, o término da mudança é dado por fatores externos e circunstanciais (p.ex. uma pedra cujo rolamento é parado pelos acidentes de um terreno). 

Aristóteles, em seguida, propõe que a mudança é a realização daquilo que é potencial naquilo que já é totalmente real, e não opera como ele mesmo, mas como móvel. De novo, a definição pode parecer obscura, mas o exemplo dado pelo filósofo esclarece seu sentido. O bronze tem como uma de suas potencialidades se tornar uma estátua. Contudo, a mudança não é a realização do bronze enquanto bronze. Isto é, o bronze é o material no qual pode se dar a mudança que tornará real uma estátua.

Assim, como diz a definição, a mudança será a realização (atualização, efetivação) daquilo que é potencial (a estátua) naquilo que já é real (o bronze), e que não opera como ele mesmo (como bronze), mas como móvel (como um ente capaz de mudança). Não é o bronze tomado como bronze, mas, sim, o bronze tomado como móvel, como algo moldável, que será o material no qual vai acontecer a atualização da potencialidade de se tornar uma estátua.

A distinção aristotélica é sutil e aponta para a diferença que há entre ser algo e ser uma potencialidade. O bronze é o que ele é, tem uma natureza que lhe é própria. A realização do bronze, o ser do bronze é ser plenamente o que ele é. Nisso não há mudança. Aquilo que é X, pelo fato de ser X, exibe as características essenciais de X, quaisquer que elas sejam. Não há diferença entre ser X e possuir a natureza daquilo que é X. 

Não obstante, existe diferença entre ser bronze e ser uma determinada potencialidade. Se o bronze possui um conjunto definido de características que o tornam bronze, isso não significa que essas características sejam idênticas a ser bronze. Por exemplo, faz parte da natureza do bronze ser maleável o suficiente para ser moldado. Mas ser moldável não é a mesma coisa que ser bronze, ainda que para ser bronze a coisa deva ser moldável. É fácil perceber a diferença quando lembramos que vários outros materiais são moldáveis sem serem bronze (madeira, por exemplo).

Então, a mudança não é a atualização do ser bronze, mas a atualização do moldável no bronze. Não faz sentido que o bronze mude para se tornar bronze, pois ele já é bronze. Não faz sentido atualizar aquilo que já está atualizado. Só é possível atualizar aquilo que é uma potencialidade. A mudança, portanto, não é a atualização do bronze, dado que ele já é bronze. É a atualização do moldável enquanto uma potencialidade presente no bronze.

O mesmo vale para "cor" e "visível". A cor possui visibilidade, mas visibilidade não é a mesma coisa que cor. Aristóteles afirma, então, que a mudança é a realização da potencialidade enquanto potencialidade. A atualização daquilo que é moldável não é a estátua já moldada. A atualização do moldável é o moldável enquanto está sendo moldado. A estátua moldada não é mais moldável. A estátua sendo moldada é a realização do moldável enquanto potencialidade. 

Aristóteles admite a dificuldade de se conceituar a mudança. Ela não é uma simples atualidade e nem uma simples potencialidade. Seria impossível negar a sua realidade, contudo. A questão é saber que realidade possui a mudança. Não é a realidade de algo já constituído, pronto, realizado, substancial. Tampouco é a realidade tênue da potência como mera capacidade para fazer ou para ser algo. A mudança está entre o potencial e o atual como uma atualização imperfeita. É a atualização progressiva de uma potencialidade.

Ora, a mudança só se dá pela ação do motor, isto é, daquilo ou daquele que possui a potencialidade de mover. Assim, quando o motor age e faz o móvel se mover, ao mesmo tempo, a potencialidade do motor e a potencialidade do móvel são igualmente atualizadas. O agente da mudança, ao agir, atualiza tanto a sua própria potencialidade de ação quanto a potencialidade de receber a ação da coisa sobre a qual ele age.

Por exemplo, o oleiro que molda a massa para fazer um vaso está atualizando a sua capacidade de oleiro agindo sobre a massa, e, ao mesmo tempo, atualizando a potencialidade da massa de ser moldada. Não são dois eventos o oleiro agindo e o vaso sendo feito. É um só e mesmo evento visto de dois ângulos diferentes, porém complementares. O agente só pode agir naquilo que tem a potencialidade de sofrer a sua ação. Aquilo que pode sofrer ação só pode atualizar essa sua potencialidade pela ação de um ente que tenha a capacidade de agir. 

A mudança, então, é uma atualização dupla. O agente atualiza a sua capacidade de agir enquanto atualiza a potencialidade passiva daquilo que sofre a sua ação. Nada há de absurdo nisso. O professor ensina, e a atualização de sua capacidade de ensinar se dá justamente em outro, a saber, o aluno que recebe a lição ministrada. O aluno, por seu turno, tem a potencialidade de aprender, e só aprende quando o professor ensina, ou seja, quando o professor atualiza a sua capacidade de ensinar. 

Enquanto está ensinando, o professor atualiza concomitantemente a sua potencialidade e a de seu aluno. A mudança se dá tanto no professor quanto no aluno, embora sob ângulos diferentes. Percebe-se que o mundo da Física é o mundo do encontro de capacidades e de potencialidades. Nada pode agir a não ser que tenha a capacidade prévia de agir. Nada pode sofrer ação se não possuir previamente a potencialidade de receber a ação. A todo agente que age corresponde um paciente que sofre a sua ação. 

Dito de outro modo, nem sempre existe em outro ente a passividade sobre a qual o agente possa agir, mas toda vez que o agente age, ele o faz sobre um ente capaz de receber a ação. O fogo só pode queimar aquilo que é queimável. O professor não pode ensinar nada aos muros da escola, somente aos alunos. O pássaro que pousa sobre um galho o faz se inclinar para baixo com seu peso porque o galho tem essa potencialidade. 

Ensinar não é o mesmo que aprender, porém há uma só e mesma mudança na qual as duas potencialidades se realizam. Todavia, a "atualização de X em Y" não é a mesma coisa que a "atualização de Y por meio da ação de X". Elas diferem em definição, pois em um caso há ação e no outro há passividade. A mudança reúne esses dois aspectos necessários e complementares em um único processo.

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*A tese de Duhem é que esses aspectos qualitativos do mundo físico, após as tentativas mecanicistas e dinamistas, são finalmente reconhecidos e estudados pela física moderna na termodinâmica. 

** É desnecessário apontar os limites exatos onde termina a infância e onde começa a vida adulta. Aristóteles dizia, com razão, que não é preciso buscar exatidão naquilo que não é exato. 

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