terça-feira, 20 de dezembro de 2022

Deus, ordem e milagres no 'Discurso de Metafísica' de G. W. Leibniz

"Idem velle et idem nolle vera amicitia est. Creio que é difícil bem amar Deus quando não se está na disposição de querer aquilo que Ele quer, quando se teria o poder de mudá-lo. Com efeito, aqueles que não estão satisfeitos com aquilo que Ele fez parecem-me semelhantes àqueles sujeitos descontentes cuja intenção não é muito diferente daquela dos rebeldes." (tradução minha)

G.W. LEIBNIZ, Discours de Mètaphysique, IV

As primeiras proposições da obra Discours de Métaphysique (1686), do filósofo, físico e matemático alemão Gottfried Wilhelm Leibniz, são dedicadas a teses acerca da natureza de Deus. Logo de início, Leibniz explica a noção de Deus como a de um Ser absolutamente perfeito, em quem residem, em grau soberano e simultaneamente, todas as muitas perfeições que há na Natureza. 

As perfeições são aquelas que não implicam contradição quando elevadas a seu grau máximo. As naturezas dos números e das formas geométricas não podem ser perfeições, pois seria contraditório afirmar a existência de um número maior que todos ou uma figura maior que todas. A ciência e a onipotência em grau soberano, contudo, não implicam nenhuma contradição. Se Deus possui o poder e o saber infinitos, segue-se que Ele age sempre da forma mais perfeita moral e metafisicamente.

A segunda proposição se dedica a afirmar a bondade intrínseca de tudo o que Deus realiza. O ponto é que Leibniz deseja se distinguir daqueles que, como Descartes, pensam que as obras divinas são provenientes somente da vontade divina, de tal modo que o que é bom neste mundo é bom somente porque Deus quis que elas fossem do jeito que são. O que implicaria dizer que não há uma razão pela qual as coisas sejam boas a não ser pela livre vontade de Deus.

Se assim fosse, Deus poderia ter feito as coisas de tal modo que aquilo que é bem fosse mal e o que o que é mal fosse bem. Aqui se insinua uma distinção entre a vontade divina e a razão divina. Dado que a vontade é absolutamente livre, não há nenhuma necessidade racional intrínseca pela qual as coisas sejam do modo que são. Deus poderia muito bem ter feito o oposto de tudo o que fez sem que houvesse nenhuma contradição. As verdades eternas seriam essas que são e não outras por simples vontade divina e não por refletirem a razão divina.

Ora, afirma Leibniz, se em Deus não houvesse a colaboração da razão, as coisas não seriam boas intrinsecamente. E se as coisas não são boas, não haveria razão para louvar o Criador pela bondade e beleza da Criação, já que ela poderia ser o contrário daquilo que é. Deus seria como um tirano cuja vontade arbitrária é lei. Por outro lado, quem opta só pode optar na medida em que tem alguma razão que antecede sua vontade. As verdades eternas da metafísica, da geometria, do bem, da justiça e da perfeição não podem ser frutos só da vontade, mas sim do entendimento divino que precede a Sua vontade.

A terceira proposição afirma que estão errados os modernos que, por ignorância dos antigos, afirmam que Deus poderia ter feito um mundo melhor do que Ele o fez. Essa visão baseia-se no parco conhecimento que temos da harmonia geral do universo e das razões ocultas que Deus possui para fazer as coisas como as fez. Todas as ações de Deus são soberanamente boas e guiadas por Sua razão. Se diante das possibilidades A e de B, Ele escolhe A sem nenhuma razão para não escolher B, essa escolha não seria digna de louvor. E todas as ações divinas são louváveis.

Na quarta proposição, Leibniz assevera que a razão pela qual devemos a Deus o amor sobre todas as coisas reside justamente no conhecimento de que Ele sempre faz o melhor e o mais perfeito. Aquele que ama busca a sua satisfação na perfeição do ente amado. Não seria possível amar a Deus plenamente questionando-se se Ele poderia fazer algo mais perfeito do que efetivamente fez. Por esse motivo, não basta apenas ter uma paciência forçada, mas amar tudo aquilo que nos acontece segundo a Sua vontade.

Essa aquiescência refere-se ao passado. Quanto ao futuro, nada há que nos conduza ao quietismo. Ao contrário, devemos fazer de tudo a nosso alcance para contribuir ao bem geral. Embora os fatos não se dêem segundo a direção de nossos esforços, não se segue que Deus não quisesse que agíssemos como agimos. Como bom mestre, Ele não nos pede nada além da reta intenção, e é a Ele que pertence saber o momento propício para a realização dos anseios humanos.

A quinta proposição inicia afirmando que basta a nós ter confiança de que Deus sempre faz tudo da maneira mais excelente, mesmo que nosso intelecto finito não seja capaz de entender as razões divinas para fazer as coisas como as fez. Não obstante, podemos comparar Deus com um excelente geômetra, um bom arquiteto, um bom pai de família, um bom mecânico ou um bom sábio. Todos estes dispõem seus materiais de forma bela e conveniente.

Os seres mais mais perfeitos são justamente os espíritos, cuja perfeição é a virtude. Não se pode duvidar que a felicidade dos espíritos é o objetivo de Deus tanto quanto ela seja possível dentro da harmonia geral. As vias de Deus manifestam a Sua simplicidade, pois elas são poucas e, no entanto, seus efeitos são muitos. Há uma analogia entre o modo como o filósofo postula seus princípios e como Deus cria o mundo. Tanto um como o outro fazem uso de poucos postulados independentes entre si e a partir de eles constroem seus mundos. A diferença reside em que Deus decreta e o mundo existe. 

Leibniz prossegue seu discurso na sexta proposição distinguindo entre as ações ordinárias e as ações extraordinárias de Deus. O filósofo adverte, entretanto, que Deus jamais age sem ordem. O que concebemos como extraordinário o é somente com relação a uma ordem particular estabelecida pelas criaturas. Na ordem geral, nada há de irregular. 

A prova de que no mundo nada há de absolutamente irregular é que se alguém fizesse em um papel um conjunto aleatório de pontos, haveria uma linha geométrica cuja noção constante e uniforme passaria por todos esses mesmos pontos. Quando um movimento é muito composto, agora em uma direção e em seguida em outra, ele acaba passando por irregular. Deriva-se daí que qualquer que fossem as vias pelas quais Deus criasse o mundo, ele sempre seria regular e com uma ordem geral. 

Como dito acima, Deus criou o mundo do modo mais perfeito, com poucos princípios dos quais as consequências são muitas e diversas. Leibniz diz que se serve de comparações imperfeitas para dar alguma idéia da criação divina. O mistério de como realmente Deus criou o mundo permanece intocado.

Aqui cabem alguns comentários. Leibniz, ao afirmar que nada há no mundo que seja realmente irregular, poderia ser interpretado em pelo menos dois sentidos. No primeiro, a regularidade seria evidência de que tudo é perfeitamente regulado de antemão por Deus, o que configuraria um tipo de determinismo cuja consequência lógica seria a obliteração da liberdade humana. 

No outro sentido, Leibniz estaria afirmando somente que dada qualquer forma ou movimento, por mais irregular que possa parecer num primeiro momento, sempre haveria como descrever esse movimento ou forma de modo a encontrar ali certa expressão matemático-geométrica. Nesse caso, não estaria se afirmando que essa regularidade é imposta de antemão, como um determinismo, mas sim como uma evidência de que tudo no mundo pode se tornar regular.

Quando se pensa em regularidade, há sempre a suposição da repetibilidade, ou seja, aquilo que é regular se dá efetivamente em muitos entes ou situações ou pode se dar em muitos entes ou situações. Se descrevo o movimento regular de um corpo, tenho a convicção de que todos os corpos na mesma situação apresentaram, apresentam e apresentarão o mesmo padrão dadas as mesmas condições. É o princípio da regularidade da Natureza.

Isto é, extraí intelectualmente dos exemplos que observei uma regularidade que efetivamente já existe e que rege o comportamento daqueles entes em condições determinadas. Outra coisa seria criar uma forma e, tomando-a como um padrão, afirmar que ela poderia (no sentido de mera possibilidade) se tornar repetível. No primeiro caso, afirmo a existência de uma regularidade que efetivamente rege o comportamento de uma classe determinada de entes. No segundo, tudo o que se diz é que um movimento qualquer pode se tornar um padrão a ser repetido.

Há nesses dois casos uma diferença crucial: em um trata-se da intelecção de um comportamento universal (dentro de um grupo determinado) e no outro trata-se de um movimento singular (único e irrepetível) que poderia em tese se tornar universal. O problema está precisamente no conceito de regularidade. Seria suficiente para se falar em regularidade dizer que em um movimento ou em uma forma qualquer, a despeito de sua irregularidade aparente, seria sempre possível encontrar uma expressão matemático-geométrica que o descrevesse com exatidão? 

A princípio, parece não ser suficiente. Talvez seja possível afirmar somente que qualquer movimento ou forma irregular pode ser sempre traduzido em termos matemáticos, operação que tornaria esse movimento ou forma singular passível de ser encarado como uma regra mesmo sem ser uma regra. Sendo assim, Leibniz estaria tratando não da impossibilidade de irregularidade, mas da simples possibilidade da tradução do irregular em termos matemáticos-geométricos. O que, aliás, não implica nenhuma forma de determinismo.

A sétima proposição segue tratando dos milagres. Tudo está dentro da ordem, mesmo os milagres que parecem contradizer as máximas subalternas que chamamos de natureza das coisas. Estas não são mais do que costumes de Deus que podem ser interrompidos por razões mais altas. Deus, na sua vontade geral, visa sempre a mais perfeita ordem universal. Mas isso não impede que Deus tenha vontades particulares que são exatamente as exceções às máximas subalternas. As leis mais gerais da ordem universal, no entanto, permanecem sem exceção.

Leibniz concebe então que as naturezas das coisas expressam ações costumeiras de Deus, e que essas ações podem ser mudadas segundo a necessidade de satisfação de leis mais fundamentais. Ele acrescenta que Deus sempre quer tudo o que é objeto de sua vontade particular. Quando se trata dos objetos de Sua vontade geral, é necessário fazer uma distinção. Aquilo que os seres racionais fazem de bom, Deus quer e manda fazer, ainda que não seja feito. Quando as ações dos seres racionais são más, Deus não as quer ou comanda, mas somente as permite, pois extrai delas um bem maior do que aquele que haveria sem a ação má.

Nessa distinção reside uma sutileza na compreensão do desejo divino. Deus sempre quer o bem, mas os seres racionais nem sempre fazem o que é certo. No caso em que fazem o bem, Deus quis o bem e mandou que fosse feito. Em outros termos, Deus quer o bem, e insta os seres humanos, por meio de Seus mandamentos, a conhecer e fazer o bem. Nesse sentido, Deus quis o bem na forma de um mandamento endereçado aos seres racionais que podem ou não obedecê-Lo.

A vontade de Deus com relação ao bem não muda mesmo quando o bem que ele ordena pelo mandamento não é realizado pelos seres racionais. E quando o mal é praticado, algo que Deus não deseja e nem ordena em um mandamento, ainda assim esse mal se torna um bem acidentalmente, pois Deus sempre tira um bem maior daquilo que é mal. 

...

Leia também:

Νεκρομαντεῖον: Leibniz (oleniski.blogspot.com)

domingo, 11 de dezembro de 2022

Tomás de Aquino e o modo do conhecimento divino


"O conhecimento se dá de acordo com o modo daquele que conhece, pois a coisa conhecida está no conhecedor de acordo com o modo do conhecedor. Dado que o modo da divina essência é mais alto do que o das criaturas, o conhecimento divino não existe em Deus de acordo com o modo do conhecimento criado, tal sendo universal ou particular, habitual, potencial ou existindo de acordo com qualquer desses modos."

TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, Questão XIV, artigo 1

Tomás de Aquino, na Questão XIV da Suma Teológica, discute o conhecimento de Deus. A primeira pergunta é saber se Deus possui conhecimento. Se Deus é onisciente, pareceria ocioso se perguntar se Ele possui conhecimento. O ponto é que Tomás deseja provar racionalmente a onisciência divina e não somente tomá-la como certa a partir da fé. 

O conhecimento humano é adventício, parte da ignorância ao saber, exige tempo e esforço, e, no fim das contas, não está assegurado o sucesso das tentativas de conhecer as coisas. Nesse sentido, o conhecimento é um hábito, o que na linguagem filosófica medieval significa uma disposição adquirida para algo. Nosso saber é habitual no sentido de que temos de adquiri-lo, o que é uma mudança temporal, e, já o tendo adquirido, ele permanece em nós como uma potencialidade a ser atualizada a qualquer momento. Por exemplo, o estudante não sabe álgebra, leva tempo para aprender, e, tendo aprendido, aquele saber fica à sua disposição para ser utilizado no momento em que desejar.

Obviamente, o conhecimento divino não pode ser desse gênero, dado que implicaria que em algum momento Deus foi ignorante, e, pior, que as coisas de algum modo antecedem a Deus. Para responder a essa dificuldade, Tomás inicia distinguindo os seres cognoscentes dos seres não-cognoscentes. O que os distingue é o fato de que os seres não-cognoscentes (os que não possuem capacidade de conhecer) só têm neles mesmos a sua Forma, enquanto que os seres cognoscentes podem abrigar outras Formas.

O que Tomás está dizendo é que o ser que conhece é capaz de receber em si mesmo, de alguma forma, as informações provenientes dos entes que o cercam. Por exemplo, nós percebemos as coisas a nosso redor, e nossa percepção é um ato de receber certas informações enviadas pelo objeto que percebemos. Se vejo uma cadeira, recebo em mim as imagens de seu formato, tamanho, cor, etc. Mas em nenhum momento eu posso dizer que essas informações sejam a própria cadeira que fisicamente se transfere para a minha cabeça. Isso seria absurdo.

Então, o que percebemos são aquilo que os medievais chamavam de espécies, as informações sensíveis das coisas que percebemos pelos sentidos. Essas espécies não são as coisas fisicamente. A cadeira não vem para a minha cabeça quando a vejo. Se ela viesse, ocuparia espaço, e não caberia na extensão da minha cabeça. Mais ainda, se a cadeira viesse à minha cabeça, ela se deslocaria no espaço e não poderia ser percebido por ninguém mais. O que ocorre, no entanto, é que a mesma cadeira é vista por muitos ao mesmo tempo.

Se muitos a vêem ao mesmo tempo, isso mostra que não é a cadeira que vem à minha cabeça como um ser físico, mas que algo é transmitido da cadeira ao observador, e que o que é transmitido não é físico, dado que não ocupa espaço. Isso que é transmitido são as espécies sensíveis da coisa física que percebemos pelos sentidos. Todo o conhecimento dos seres cognoscentes inicia justamente pelos sentidos. 

Os sentidos nunca percebem tudo o que há ao mesmo tempo. Não posso perceber pela visão todos os seres sensíveis que existem na realidade. Só percebo aqueles que estão a uma determinada proximidade. Quando estou na rua, não vejo mais a minha casa. Estando no Brasil, não posso ver a Torre Eiffel. Segue-se que nunca posso perceber todas as coisas perceptíveis ao mesmo tempo. A razão é que eu sou material, portanto ocupo espaço, e não posso estar próximo daquilo que está distante de mim.

A coisa tem que se apresentar a mim para que eu possa percebê-la pelos sentidos. Entretanto, o modo como as percebo não é espacial, no sentido de que as espécies vêm a mim e são captadas pelos sentidos sem que a própria coisa venha localizar-se fisicamente e localmente na minha cabeça (ou em qualquer parte do corpo). Vejo as espécies da cadeira sem que a própria cadeira venha se alocar fisicamente nos meus olhos.

Os seres cognoscentes possuem naturalmente essa capacidade de receber e reter em si mesmos essas espécies, informações dos outros entes a seu redor. As pedras, por exemplo, não são cognoscentes. Elas não recebem e retêm nelas mesmas as informações sensíveis do mundo a seu redor. Elas possuem sua própria Forma, ou seja, elas são pedras e nada mais que isso. Os seres cognoscentes possuem sua própria Forma, e esta inclui a capacidade de receber e reter as Formas dos outros entes. 

Por isso Aristóteteles diz no De Anima que "a alma é, de certo modo, todas as coisas". Não significa que a alma seja todas as coisas realmente. Isso seria absurdo. Algo não pode ser ele mesmo e algum outro ente ao mesmo tempo. O gato não pode ser cadeira ao mesmo tempo em que é gato. A alma é todas as coisas somente no sentido de que é capaz de receber e de reter as espécies advindas das coisas a seu redor. A natureza dos seres cognoscentes é a de ser capaz de acolher em si mesma aquilo que não pertence a ela naturalmente.

Um ser humano pode perceber um gato sem se tornar um gato e vice-versa. As espécies sensíveis do gato são captadas pelos sentidos do homem sem que ele mesmo se torne um gato. A pedra, em certo sentido, é impermeável, contida em si mesma, sem "aberturas" para os outros entes. Os seres cognoscentes, ao contrário, são permeáveis, podem ser afetados pelas na sua interioridade pelas coisas ao seu redor. Essa interioridade, é preciso reforçar, não é exatamente física. Um gato pode morder um homem, penetrando fisicamente com seus dentes na carne, no interior do corpo do homem. A cor do gato é percebida pelo homem sem que ele seja penetrado fisicamente.

Tomás assevera que tudo isso mostra que o conhecimento é possível por causa da imaterialidade. Ou ainda, o conhecimento é uma captação imaterial, poderíamos dizer. Daí se segue que quanto maior é a imaterialidade, maior é o conhecimento. A cor que vejo não é o próprio gato materialmente presente em meus olhos. É a captação visual de uma das espécies do gato. E essa cor não ocupa minha alma (ou mente) de modo material/físico. A pedra não é capaz disso por conta da ausência dessa capacidade de captação imaterial.

Recebemos as espécies sem a matéria, diz Tomás citando Aristóteles. A cor do gato é ainda algo que pertence ao seu corpo. Quando dizemos que um ente é um gato, o que queremos expressar é algo que vai muito além da sua cor. Gatos podem ter muitas cores. Todo gato tem que ter cor, mas nem todo gato tem a mesma cor. Alguns são pretos, outros brancos, outros são mesclados, etc. Mas nada disso importa quando dizemos "isso é um gato". O que interessa não é sua cor, que é variável, mas sim aquilo que é invariável em todos os gatos e que os torna exatamente gatos.

A gatidade do gato, por assim dizer, é sua Forma (eidos, εἶδος, essência), aquele conjunto mínimo de características que fazem de um gato um gato e não outra coisa. A Forma não é o formato externo da coisa (embora implique o formato), mas sim aquilo sem o quê um ente não pode ser um gato. Quando afirmo "isso é um gato", estou apontando não para seu tamanho, sua cor, sua idade, características variáveis, e sim para a classe a que aquele ente pertence. Estou dizendo que tipo de ser ele é.

Ora, essa informação não é exatamente captada pelos sentidos. O que sabemos dos seres sensíveis é inicialmente captado por meio dos sentidos, embora não se restrinja aos sentidos. Dizer a que classe ou tipo de ser algo pertence vai além do que cada sentido pode informar. Os olhos podem perceber a cor e o formato do objeto, o olfato percebe o cheiro, o tato capta o formato e a superfície do objeto. Nenhum deles diz o que é o objeto.

Saber o que é o objeto é, a partir desse conjunto de informações sensíveis, separando o que é invariável do que é variável, captar aquilo que é próprio e característico de um certo tipo de ser.  Gatos são diferentes de pedras. O que distingue essencialmente um gato de uma pedra é justamente aquilo que indicamos quando dizemos o que é o objeto. Eles podem ser até do mesmo tamanho, peso, largura, etc. Não é isso que os distingue. Gatos são entes animados e pedras são entes inanimados. 

Gatos e cachorros são ambos seres animados e mesmo assim são distintos. As características típicas de um cachorro não são as mesmas daquelas dos gatos. Captar o que torna um ser vivo um gato e não um cachorro é saber o que é um gato. Essa captação vai além daquilo que os sentidos informam. É apreender um conjunto invariável de características que está presente em todos os gatos, mesmo aqueles que eu jamais observei. Essa é a Forma do gato, o que é um gato.

No ser humano, essa apreensão da Forma, chamada de abstração (separar), é realizada pelo intelecto. Assim como as espécies sensíveis de um gato não implicam o gato físico ocupando espaço nos meus olhos ou na minha cabeça, a Forma também não é o gato fisicamente dentro do meu intelecto. O ato de intelecção, que é próprio do intelecto, é ainda mais imaterial do que as espécies sensíveis.

A intelecção intelige aquilo que no objeto é inteligível. Em outros termos, é o ato de compreender aquilo que há de compreensível na coisa. Inteligir é captar o que é a coisa, e o que é a coisa é aquilo que nela é capaz de ser compreendido. O fato de que as coisas possuem uma Forma é o que as torna inteligíveis, compreensíveis. E é por causa do intelecto que o homem pode inteligir aquilo que nas coisas é inteligível.

Se o ser humano não possuísse intelecto, aquilo que é inteligível nas coisas passaria despercebido. Se o ser humano tivesse intelecto e as coisas não fossem inteligíveis, não haveria conhecimento. O caso é que felizmente o ser humano possui intelecto e as coisas possuem Forma, o que as torna inteligíveis. As duas condições têm de estar presentes para que haja conhecimento: o inteligente e o inteligível.

O intelecto apreende a Forma do objeto, o que é o objeto. Conhecer perfeitamente é conhecer a Forma do objeto. Mas o ser humano só alcança a Forma a partir das espécies sensíveis. O que implica que para o homem o conhecimento é algo que só acontece na presença ou na memória da presença do objeto. Não estando ou tendo estado o objeto presente, o conhecimento não se realiza. E o ato de conhecer também implica uma extensão temporal para a sua aquisição e, uma vez adquirido, uma potencialidade para a sua utilização.

Ora, nada disso cabe em Deus. Como pode Ele possuir conhecimento? Obviamente, o conhecimento divino não é idêntico ao conhecimento humano. O ser humano, dado que é um ente limitado corporalmente, necessita de sentidos para obter informações dos entes ao seu redor. Deus não é limitado corporalmente, não tem necessidade de sentidos. Ele conhece as coisas em Si mesmo, e não como algo externo e espacialmente separado.

O conhecimento é uma captação imaterial, como dito antes. Quanto maior a imaterialidade, mais perfeito é o conhecimento. Conhecer algo perfeitamente é conhecer a Forma. Dado que Deus é puramente imaterial, Seu conhecimento não vem pelos sentidos e nem implica tempo. Deus conhece imaterialmente e, portanto, conhece do modo mais perfeito todas as coisas. Por conseguinte, o conhecimento em Deus não é um hábito, é um ato puro atemporal.

O conhecimento, Tomás arremata, se dá de acordo com o modo do conhecedor, pois a coisa conhecida está no conhecedor de acordo com o modo do conhecedor. Deus sendo imaterial, seu conhecimento é imaterial. Nenhuma das limitações do conhecimento humano se aplicam a Deus.

...

Leia também:

Νεκρομαντεῖον: Tomás de Aquino (oleniski.blogspot.com)

domingo, 4 de dezembro de 2022

Leibniz e a reformulação do argumento ontológico

"Denomino Perfeição toda qualidade simples que é positiva e absoluta, ou que exprime sem limite algum tudo aquilo que ela exprime."

G.W. LEIBNIZ, Quod Ens perfectissimum existit

O filósofo, físico e matemático alemão Gottfried Wilhelm Leibniz escreveu em 1676 um curto texto, Quod Ens perfectissimum existit, em que apresenta a sua tentativa de reconstrução do famoso argumento ontológico. À época, Leibniz estava retornado de Paris e se aprofundava durante o caminho nas obras de René Descartes. É nessa viagem que ele se encontra com Baruch Spinoza.

O argumento ontológico, em sua formulação clássica, fora formulado primeiramente pelo pensador medieval Anselmo de Cantuária em sua obra Proslogion. O argumento era a resposta a um pedido de alguns monges que instavam Anselmo a apresentar uma prova puramente racional da existência de Deus. O filósofo apresentou a eles uma demonstração a priori, por pura lógica e sem remissão aos sentidos, da realidade de Deus.

Anselmo diz que "o ser do qual não se pode conceber nada maior" não pode existir somente como um conceito na mente de quem o concebe, pois nesse caso ele não seria "o ser do qual não se pode pensar nada maior". Haveria contradição em afirmar ao mesmo tempo que ao "ser do qual não se pode pensar nada maior" nenhuma perfeição está ausente e que, no entanto, ele não existe. Se não existe, então não é "o ser do qual não se pode pensar nada maior", pois a existência seria uma perfeição que lhe faltaria.

Assim, dada a definição de Deus como o "ser do qual não se pode pensar nada maior", negar sua existência seria uma contradição lógica. O argumento de Anselmo não é um raciocínio no sentido de um encadeamento de premissas das quais se deduz uma conclusão. É uma operação de análise do conceito pela qual se compreende tudo o que nele está implicado logicamente. 

Se digo que "todo solteiro não tem sogra", nada mais afirmo do que o que já está implicado no próprio conceito de "solteiro". Do mesmo modo, o argumento anselmiano é menos um argumento do que uma análise do conceito de Deus. Isto é, o próprio conceito de Deus como "o ser do qual não se pode pensar nada maior" inclui logicamente a existência como uma de suas notas.

Descartes, já no século XVII, reformula o argumento em suas Meditações Metafísicas postulando como uma idéia clara e distinta que Deus é o ser soberanamente perfeito e ilimitado e que tudo o que posso demonstrar clara e distintamente de algo pertence necessariamente a esse algo. Um ser perfeito e ilimitado não pode estar privado da existência, pois tal seria uma limitação e uma imperfeição. Então, necessariamente Ele existe.

Há diversas objeções ao argumento ontológico que remontam até ao tempo de Anselmo. O mesmo acontece com as tentativas de sua reformulação. Leibniz tenta reformular o argumento começando por definir o que ele entende como perfeição:

"A Perfeição é toda qualidade simples que é positiva e absoluta, ou que exprime sem limite algum tudo aquilo que ela exprime. Ora, tal qualidade, dado que é simples, é irresolúvel ou indefinível, pois, de outro modo, não seria uma, mas agregado de muitas. Ou, sendo uma, seria circunscrita dentro de limites, contra a hipótese que a colocou como puramente positiva. A partir daí, não é difícil mostrar que todas as qualidades são compatíveis entre elas ou podem estar em um só sujeito.

Cabem aqui alguns comentários interpretativos dessa primeira parte do argumento. O texto de Leibniz se restringe a formular a prova sem esclarecimentos mais detalhados. Mas creio que podemos facilitar sua compreensão. Primeiramente, o filósofo define a Perfeição como uma qualidade simples, absoluta e que exprime sem limites o que ela exprime. Depreende-se disso que a Perfeição é uma qualidade em manifestação infinita. 

Tomemos a qualidade "bondade". Segundo a definição acima, se a bondade é perfeita, então ela é infinita. Isto é, a perfeição da bondade não apresenta nenhum limite. Se não há limite, então não há lugar para nada que não seja ela. Sendo assim, onde não há limite, não há o outro, e, portanto, não pode haver multiplicidade, pois o múltiplo exige o limite. Não pode haver uma quantidade qualquer de qualquer coisa a não ser que haja limites que distingam uma coisa da outra.

A bondade infinita é irresolúvel e indefinível. Irresolúvel porque não se reduz a nada que não seja ela mesma. Em outros termos, ela não é composta por nada que não seja ela mesma. Indefinível porque a definição reúne em si o conjunto mínimo de características que fazem de algo o que ele é. A definição encontra e expressa os limites da coisa definida em uma fórmula única. É impossível definir algo sem dizer os seus limites próprios. Consequentemente, uma qualidade infinita é indefinível, posto que não possui limites.

Tendo definido a Perfeição, Leibniz julga que não será difícil mostrar que todas as qualidades são compatíveis entre si ou podem estar todas em um sujeito. Esse passo é crucial para Leibniz avançar na direção da existência de Deus. As qualidades, sendo perfeitas, podem todas estar em um sujeito (no sentido de "em algo") ao mesmo tempo, no mesmo nível e sem contradições? Para responder a essa pergunta, Leibniz apresenta a segunda parte de sua argumentação.

Tomemos a seguinte proposição: A et B são incompatíveis. A e B são qualidades perfeitas no sentido acima definido. Está claro que não se pode demonstrar essa proposição sem a resolução dos termos A ou B ou dos dois. Se for possível demonstrar a verdade dessa proposição, então seria fácil mostrar a incompatibilidade de quaisquer outras qualidades ou dessas mesmas. Mas sabemos que A e B são irresolúveis. Então, não se pode demonstrar essa proposição.

Eis o ponto crucial. Leibniz criticou o argumento de Descartes por ele supor sem demonstração de que todas as perfeiçoes estão em Deus de modo infinito e de que elas não são incompatíveis entre si. O alemão tem que mostrar que é possível que as qualidades não se excluam mutuamente. Para isso, ele apresenta a proposição "A e B são incompatíveis", tendo as letras como representações de qualidades perfeitas. A pergunta, então, é se qualidades infinitas, quaisquer que sejam, podem ser incompatíveis.

O caminho tomado por Leibniz é muito elegante. Ele diz que a proposição "A e B são incompatíveis", se verdadeira, tem de ser demonstrável, posto que não é evidente. Se essa proposição não é conhecida por si, então não é necessariamente verdadeira. Se não é necessariamente verdadeira, é logicamente possível que seja falsa. Isto é, nada impede que a proposição seja falsa. Por isso, é bem possível que qualidades perfeitas não sejam incompatíveis e que estejam todas em um só sujeito.

Nada impede que se conceba um ser no qual estejam presentes todas as qualidades de modo perfeito ou o ser todo perfeito. Donde está claro que ele existe, pois a existência está compreendida entre as perfeições.

Leibniz remove desse modo a dificuldade que encontrara no argumento de Descartes acerca do Ser Perfeito. Basta mostrar que as qualidades perfeitas não são necessariamente incompatíveis para permitir a concepção de um ser que as possua todas. O conceito de um Ser Perfeito não contém contradições, já que aquilo que não é necessariamente impossível é necessariamente possível. Não havendo impedimentos lógicos para a concepção de um ser absolutamente perfeito, é completamente possível afirmar que se um ser é perfeito, ele necessariamente existe.

Mais alguns comentários. O argumento de Leibniz não prova que Deus existe. Somente demonstra que um Ser Perfeito é concebível sem contradições. A presença de todas as qualidades de modo perfeito em um único sujeito é possível, dado que a incompatibilidade não é evidente/necessária. Se uma proposição não é evidentemente verdadeira, não é necessariamente verdadeira. É o mesmo que afirmar que ela pode ser falsa.

Quando digo que "todo solteiro não tem sogra" não necessito de nada além do significado dos termos para saber que ela é verdadeira. A razão disso é que o termo "solteiro" exclui o casamento. Quem não casa não tem sogra. Quando afirmo que "A e B são incompatíveis", sendo A e B perfeições, não digo nada de evidente/necessariamente verdadeiro. Logo, não há necessariamente incompatibilidade entre as perfeições. Significa que a proposição é falsa? Não, significa apenas que pode ser falsa. Significa que é verdadeira? Também não, significa somente que nada impede que ela seja falsa.

A e B são perfeições. Se nada evidente impede a conjunção, pelo menos sabemos que a proposição é possível. Leibniz não desenvolve no texto as razões pelas quais as perfeições não são necessariamente incompatíveis. Há algumas indicações, contudo. Tomemos o fato de que as perfeições, tal como definidas no início do raciocínio, são indefiníveis. Sua indefinibilidade se segue de sua infinitude. Por lógica, algo metafisicamente infinito não pode ser definido justamente porque o que é infinito não possui limites.

Ora, se as qualidades perfeitas são infinitas, elas são indefiníveis. Não resta obstáculo para a compatibilidade entre as qualidades na medida em que sua infinitude as destitui dos limites que as distinguem umas das outras. A incompatibilidade só existe na medida em que a presença de uma parte exclui a presença de outra. A indistinção que se segue da infinitude extingue a presença de partes que se excluiriam.

As qualidades neste mundo não são sempre compatíveis, ou pelo menos não no mesmo grau, por conta de sua finitude. Uma limita a presença da outra. Um exemplo simples disso é a impossibilidade de haver ao mesmo tempo e no mesmo grau a liberdade, a fraternidade e a igualdade. Se tentamos igualar as coisas, limitamos a liberdade. Se exigimos a fraternidade, limitamos a justiça, e assim por diante.

A totalidade das perfeições pode estar em Deus exatamente porque Nele tudo é uma e só realidade. A simplicidade divina se deve, por assim dizer, à sua infinitude. Deus, sendo infinito, não possui nenhuma limitação em nenhum sentido ou grau. Por isso Ele é simples, sem limites internos ou externos. Nós vemos as qualidades de modo limitado, onde cada uma difere da outra e, em certas situações, elas são incompatíveis entre si. Em Deus, porém, elas são uma e a mesma natureza simples.

Poderíamos enunciar uma lei: todas as infinitudes metafísicas se reduzem à uma unidade puramente simples ou não há e nem pode haver múltiplas infinitudes metafísicas. Na medida em que é perfeita, a qualidade se confunde com o próprio Ser de Deus. As qualidades, então, como definidas por Leibniz, seriam a própria natureza una e simples de Deus.

Como disse anteriormente, Leibniz não realiza esse desenvolvimento no texto a fim de mostrar que poderia haver um caminho para não só afirmar a ausência de incompatibilidade lógica e evidente entre as perfeições, mas também afirmar a necessidade de sua compatibilidade. A argumentação que apresento aqui estaria, creio, em harmonia com a metafísica da natureza divina tanto da tradição platônica (Anselmo de Cantuária, Nicolau de Cusa e Marsilio Ficino), quanto da tradição aristotélica (Tomás de Aquino).

O que percebemos como multiplicidade é em Deus pura unidade. Em certo sentido, poderíamos afirmar que não há perfeições a não ser a natureza divina diversamente captada pelo ser humano com seus limitados meios de cognição. O que é percebido é percebido na medida do percipiente. Desse modo, as perfeições não seriam somente compatíveis, mas seriam necessariamente uma só e mesma natureza divina metafisicamente simples e infinita. A infinitude metafísica poderia estar privada da perfeição da existência?

Leia também:

Νεκρομαντεῖον: Leibniz (oleniski.blogspot.com)

Νεκρομαντεῖον: Anselmo, platonismo medieval e o argumento ontológico. (oleniski.blogspot.com)

Νεκρομαντεῖον: Anselmo de Cantuária na Ilha Perdida de Gaunillon (oleniski.blogspot.com)

Νεκρομαντεῖον: Descartes, idéias e existência de Deus (oleniski.blogspot.com)

Νεκρομαντεῖον: Tomás de Aquino e a inefabilidade do nome de Deus (oleniski.blogspot.com)

Νεκρομαντεῖον: Nicolau de Cusa, a natureza do infinito e a douta ignorância (oleniski.blogspot.com)

sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

Nicolau de Cusa e a Possibilidade Absoluta

"O mais excelso nível da reflexão contemplativa é a Possibilidade em si mesma, a Possibilidade de toda possibilidade, sem a qual nada possui a capacidade de ser contemplado. Pois, como a contemplação seria possível sem a Possibilidade?"

NICOLAU DE CUSA, De Apice Theoriae

Em um curto diálogo intitulado De Apice Theoriae, de 1469, o cardeal e filósofo neoplatônico renascentista alemão Nicolau de Cusa trata da questão da natureza divina. Os personagens do diálogo são um Cardeal (suponho que o próprio Cusano) e seu jovem amigo, também sacerdote, de nome Pedro. A conversa inicia quando os dois se encontram após o Cardeal haver passado longo tempo em meditação.

Pedro pergunta ao Cardeal qual havia sido o objeto de sua meditação naquele tempo, e o prelado responde que nem São Paulo, alçado ao terceiro Céu pôde compreender o Incompreensível. Pedro, então, indaga: "O senhor está buscando o quê?". Para a confusão do jovem, o Cardeal responde "você está certo". A resposta parece ser um gracejo, mas o prelado esclarece que está jogando com os sentidos de quid, no latim. Quid pode significar "o quê", como era o sentido original da pergunta, ou significar "o que é", o sentido empregado na resposta.

Em outros termos, o Cardeal não está buscando algo, mas sim o que é a natureza do objeto de sua contemplação, Deus. A questão seguinte é saber se há como conhecer a quididade (quidditas), o "o que é?", a natureza de Deus. Muitos tentaram no passado e fracassaram. O próprio Cardeal passou anos meditando sobre o tema, tendo compreendido que a quididade está para além de toda cognição e antes de toda variação e de toda a oposição.

Agora, porém, o Cardeal compreendeu que a quididade que existe em si e por si mesma é o ser subsistente invariável de toda e qualquer substância, de tal modo que só há uma quididade e uma só base de todas as coisas. Isto é, Deus é a realidade última e fonte de tudo o que há. Ocorre que, o Cardeal prossegue, se há a realidade última e fonte de todas as coisas, obviamente ela era possível. E se há uma possibilidade, ela não pode estar separada da Possibilidade em si mesma. 

Ora, o Cardeal conclui, a quididade divina é a própria Possibilidade Absoluta sem a qual nada existe ou pode existir. Nenhum outro nome é mais adequado a Deus, posto que Ele é a possibilidade última e fundante de tudo o que há e pode haver. A possibilidade é inegável, pois está em tudo e no cotidiano. Sabemos que podemos beber, podemos andar, podemos comer, etc. É óbvio que aquilo que é impossível não pode existir. Igualmente, ninguém duvida que sem possiblidade nada pode existir, possuir, agir ou sofrer ação.

As possibilidades dos entes relativos só podem advir de uma Possibilidade que as reúne todas e é seu fundamento: a Possibilidade Absoluta, pois não há e nem pode haver nada mais alto do que ela que possibilita todas as coisas. Ela é a quididade e a base de todas as coisas que existem, que podem existir e daquelas que não existem e nem existirão. Sendo a realidade mais excelsa, os santos a chamaram de Luz, porque a luz é em si mesma invisível e só se manifesta nas coisas que ilumina. Ausentando-se a luz, as coisas somem de vista.

Assim, a luz é condição da visibilidade das coisas, embora jamais apareça tal como é, da mesma forma que a Possibilidade Absoluta é a condição de existência de todas as coisas, sem que jamais ela se manifeste tal como é. Os diversos seres não são mais do que modos de manifestação dessa Possibilidade que é a mesma em todos eles. Os poderes que as coisas manifestam só são diferentes em modos e em graus, tendo todos origem na Possibilidade Absoluta que se mostra mais perfeitamente naquilo que é mais forte.

Em tudo o que vemos, vemos modos de manifestação de uma só e mesma Possibilidade. O intelecto capta aquilo que compreende. Diante de algo que ultrapassa os poderes de compreensão do intelecto, como a Possibilidade Absoluta, a mente, de certo modo, ultrapassa essas limitações tal como um garoto percebe que uma pedra é mais pesada do que ele é capaz de carregar. A mente vê o que o intelecto não pode compreender.

Nenhuma dúvida pode pairar sobre a Possibilidade Absoluta, já que toda dúvida tem de ser possível para ser formulada. Nada pode ser adicionado a ela e nada pode ser subtraído. Não há o que possa ser mais perfeito do que ela, pois tudo é precedido pela possibilidade. Se alguém buscasse a possibilidade da unicidade, facilmente perceberia que em todo número e em toda pluralidade somente o poder da unicidade se manifesta, dado que todo número não é mais do que um modo de manifestação da unicidade.

Tendo chegado ao final do seu discurso, o Cardeal enuncia doze teses que servirão a Pedro como um memorandum daquilo que foi dito.

I. Nada pode ser adicionado à Possibilidade, já que ela é a possibilidade de tudo.

II. Existe efetivamente só o que pode existir. Isso significa que a existência nada adiciona à possibilidade de existir. A existência como isto ou aquilo não adiciona nada à Possibilidade.

III. Nada pode existir antes da Possibilidade. Tampouco pode existir algo que seja mais perfeito, simples, claro, conhecido, verdadeiro, suficiente, forte, estável, etc. E como a Possibilidade antecede todas as possibilidades de ser isto ou aquilo, ela não pode existir como as coisas, nem ser nomeada, percebida, imaginada ou compreendida. 

IV. A possibilidade de ser isso ou aquilo é uma imagem da Possibilidade Absoluta. Todas as coisas são manifestações da Possibilidade.

V. Assim como a mente de Aristóteles se manifesta livremente por meio de seus livros, a Possibilidade se manifesta em todas as coisas.

VI. Embora não haja nada além da Possibilidade, o ignorante não sabe disso. A mente enxerga dentro de si mesma a Possibilidade. Assim, todas as coisas existem para a mente e a mente existe para enxergar a Possibilidade.

VII. A possibilidade de escolher, o poder do livre arbítrio, não cessa e nem envelhece como o corpo. A Possibilidade se manifesta no poder da mente.

VIII. As coisas inteligíveis são captadas pela mente, e são ontologicamente anteriores aos objetos sensíveis. A mente vê a si mesma, e vê que é uma imagem da Possibilidade por meio de sua própria possibilidade.

IX. Tudo o que a mente vê do objeto material são seus acidentes. Aquilo que é material possui comprimento, largura e profundidade. Esses três acidentes sempre se encontram juntos. A mente enxerga no objeto material triuno a Possibilidade, e essa triunidade se manifesta também em coisas mais elevadas, como revelou Santo Agostinho.

X. A Possibilidade se manifesta de modo mais certo na possibilidade de fazer do artífice, na possibilidade de ser feito daquilo que será feito e na possibilidade da união indissolúvel entre os dois primeiros. Ou seja, o artífice só pode produzir algo porque tem a possibilidade de fazer, aquilo que ele faz tem a possibilidade de ser feito, e o processo de fazer reúne indissoluvelmente os dois. O mesmo se dá com relação à sensação, à visão, ao gosto, à intelecção, à volição, à escolha, à contemplação, e a todas as obras boas e virtuosas.

XI.  Não pode haver outro Princípio que não a Possibilidade. Todos os que falaram diferentes disso não perceberam como a Possibilidade se manifesta em diferentes modos de ser, sejam genéricos ou específicos. Onde não há Possibilidade não há base, como no caso do defeito, do erro, do vício, da fraqueza, da corrupção e da morte, que não possuem ser justamente por não se manifestar neles a Possibilidade.

XII. O Deus Uno e Trino é a Possibilidade, sendo Cristo Sua mais excelsa manifestação. E Cristo conduz à contemplação da Possibilidade, a felicidade que unicamente satisfaz o supremo desejo da mente.

...

Leia também:

Νεκρομαντεῖον: Nicolau de Cusa (oleniski.blogspot.com)

segunda-feira, 14 de novembro de 2022

Frédéric Bastiat: a lei, a espoliação e o socialismo

"A quimera do dia é enriquecer todas as classes às custas umas das outras, é generalizar a espoliação sob o pretexto de organizá-la. Ora, a espoliação legal pode se exercer de uma multidão de maneiras diferentes. Daí uma quantidade infinita de planos de organização: tarifas, proteção, bônus, subvenções, encorajamentos, imposto progressivo, educação gratuita, direito ao trabalho, direito ao lucro, direito ao salário, direito à assistência, direito aos instrumentos de trabalho, gratuidade de crédito, etc. E é o conjunto de todos esses planos, naquilo que eles têm em comum, a espoliação legal, que toma o nome de Socialismo."

FRÉDÉRIC BASTIAT,  La Loi, p. 18 (tradução minha do original em francês)

Em junho de 1850, o político e pensador francês Frédéric Bastiat publicou seu famoso ensaio A Lei, no qual criticava a deturpação das leis vigentes. Para defender sua visão de que as leis haviam se desviado de sua função precípua, Bastiat inicia afirmando que, anteriormente à toda legislação, há a Personalidade, a Liberdade e a Propriedade. A lei não seria outra coisa que não a organização coletiva do direito à legítima defesa.

Todo ser humano tem naturalmente o direito à defesa de sua Personalidade, de sua Liberdade e de sua Propriedade. O Direito coletivo tem sua raison d'être na defesa desses direitos. Por isso a Lei tem o direito de usar a força para fazer valer tais direitos fundamentais. Infelizmente, a lei desfigurou-se e passou a aniquilar aquilo que por princípio deveria proteger.

Duas razões há, diz o pensador francês, para esse desvio da lei: o egoísmo ininteligente e a falsa filantropia. O primeiro é facilmente explicável pela necessidade humana de perseguir o seu bem-estar e fugir da dor. O homem pode conseguir sua subsistência por meio de seu próprio trabalho ou pode consegui-la pela espoliação do trabalho e da propriedade adquirida por outros homens. A História mostra como é frequente a segunda opção. 

A lei foi feita justamente para evitar essa situação. Não obstante, ela se tornou um instrumento da espoliação utilizado pelas classes no poder. Diante dessa realidade, aqueles que são espoliados podem escolher uma de duas opções: eliminar a espoliação por completo ou tomar parte dessa mesma espoliação da qual eram vítimas. Em vez de eliminar a espoliação, os espoliados desejam universalizá-la.

A primeira consequência de tal deturpação da lei é apagar das consciências a noção de justiça. Qualquer sociedade só se sustenta na medida em que respeito à lei, mas quando esta é imoral e injusta, uma cisão se instala no indivíduo. Ou bem ele sufoca sua consciência moral e segue a lei injusta, ou bem ele desrespeita a lei para apaziguar sua consciência. Não adianta tentar igualar a justiça à lei, pois injustiças como a escravidão já foram legais.

O outro efeito deletério da deturpação da lei é dar à política uma força exagerada na sociedade. A luta política por um naco na espoliação geral será a tônica das discussões, com cada classe buscando sua parte no butim. Há a espoliação extralegal, o roubo puro e simples, proibida pela lei, e há a espoliação legal, o Socialismo. Opor a lei ao Socialismo é absurdo, pois é a lei que o suporta.

Só há três soluções, afirma Bastiat. A espoliação parcial, o regime em que poucos espoliam muitos, a espoliação universal, na qual todos espoliam todos, e a ausência de espoliação, o que o pensador francês defende como solução ao problema posto. A lei deve ser a Justiça Organizada. Nesse ponto, o ensaio retorna à questão da segunda causa do desvio da lei, a falsa filantropia. 

Não se exige somente que a lei seja justa. Ela deve ser também filantrópica. Não se trata de só garantir ao indivíduo o livre exercício de suas faculdades, mas de garantir a todos o bem-estar, a instrução e a moralidade. Esse é o lado atraente do Socialismo. O ponto é que, no entanto, essas duas exigências são contraditórias. Não é possível ter liberdade e fraternidade, pois esta nunca pode ser real se for obrigatória. A fraternidade pode existir enquanto é voluntária. Quando é legalmente obrigatória, ela restringe necessariamente a liberdade.

A espoliação é justamente a tomada de uma propriedade, pela força ou pelo engano, de quem a detém por alguém que não a criou. A lei deveria defender o cidadão disso, mas é ela que faz uso da espoliação. A lei deveria ser negativa, impedir a injustiça, e não fazer reinar a justiça, como alguns defendem. Esse ideal negativo da justiça impede que a Personalidade, a Propriedade e a Liberdade sejam conspurcados. 

Como seria possível organizar toda a sociedade, como querem os socialistas, sem criar a injustiça? Organizar o trabalho e a indústria seria possível somente pelo uso da força. A lei se torna o veículo da injustiça. Nada há no tesouro estatal que seja dirigido a uma determinada classe ou grupo que não tenha sido aí depositado por outros cidadãos por meio da força. O socialismo usa termos como a Fraternidade, a Organização, a Solidariedade e a Associação para seduzir as consciências sem deixar escapar que ele se baseia na espoliação legal.

Bastiat afirma que, ao negar a fraternidade por meio do Estado, não se está negando que a fraternidade deva existir. A questão é que ela não pode ser garantida pelo Estado a não ser por meio da coação e da força, isto é, da injustiça.  A livre associação é boa, a associação obrigatória é má. Do mesmo modo, a solidariedade voluntária é boa, a solidariedade imposta pelo Estado é má.

Nas palavras de Bastiat:

"O Socialismo, como a velha política de onde ele emana, confunde Governo e a Sociedade. Eis a razão pela qual, cada vez que nós não queremos que algo seja feito pelo Governo, ele disso conclui que nós não queremos que esse algo seja feito de maneira nenhuma. Nós rejeitamos a instrução pelo Estado, então não queremos que haja instrução. Rejeitamos uma religião de Estado, então não queremos nenhuma religião. Rejeitamos a igualdade pelo Estado, então não queremos nenhuma igualdade, etc. É como se nos acusassem de não querer que os homens comam porque rejeitamos a cultura do trigo pelo Estado." (p.27)

O socialista vê os seres humanos como desprovidos de princípios de ação e de discernimento. Crê que a sociedade seja como uma massa informe que só pode alcançar a forma pela ação de um Organizador ou um Legislador. Deixada a si mesma, a humanidade tende à degradação, e só a figura do Legislador pode salvá-la desse destino funesto. Bastiat encontra essa mentalidade manifestada nas obras de pensadores como Bossuet, Fénelon, Montesquieu, Condillac e Rousseau, que chega ao cúmulo de comparar a sociedade a uma máquina inventada por um mecânico, cujas partes e a matéria que a constituem são os homens!

Os pensadores dos séculos XVII e XVIII consideraram o homem como uma matéria inerte plástica o suficiente para receber forma, figura, impulso, movimento e vida de um grande Legislador, de um grande Príncipe. Mas os homens não são pedaços de matéria esperando para serem alocados em uma ordem concebida de fora por um organizador. Os seres humanos são inteligentes e capazes de avaliações e de discernimento.

A Liberdade é que deve ser o objetivo. Liberdade de consciência, de ensino, de associação, de imprensa, de locomoção, de trabalho, de troca, etc. A Lei deve ser somente a regularização do direito individual à defesa ou o instrumento para reprimir a injustiça. Os grandes homens dos séculos XVII e XVIII não possuem outro objetivo que não submeter todos os homens ao seu despotismo filantrópico. 

Os revolucionários de 1789, como Saint-Just, Robespierre, Billaud-Varennes, Lepelletier tinham a mesma crença na onipotência da Lei. Todos creem que o homem não pode por si ser bom, é mister um Organizador benevolente que por meio da Lei extirpe os vícios e faça florescer as virtudes que ele considera convenientes à República. Mesmo que para isso sejam empregados o terror e a ditadura, como defendia Robespierre.

É um círculo vicioso: a humanidade passiva e um grande homem que a move por meio da Lei. Quando é o caso de se escolher um legislador, o povo jamais erra. Tão logo o legislador assuma o seu posto, o povo volta a ser uma massa inerte que precisa ser moldada pelo Organizador sob pena de seguir sua tendência à degradação. É essa tendência, by the way, que torna a liberdade perigosa e desaconselhável. Se os homens, deixados a si mesmos, têm a inclinação funesta à degradação, deixá-los livres e sem direção central só conduzirá ao erro e ao vício.

Bastiat assevera que não é contra as idéias dos organizadores na medida em que elas não são impostas pela força a todos os homens. Ademais, se todos os seres humanos são inclinados à degradação, qual a autoridade sobre a sociedade que esses organizadores podem pleitear, dado que eles também são humanos? Não é razoável pensar que eles estejam tão acima assim dos outros homens. E se o Estado tudo domina e rege, qualquer erro ou qualquer insatisfação será sua responsabilidade e dará azo a novas revoluções.

A Lei é a força comum organizada fazer obstáculo à injustiça ou a organização do direito individual preexistente de legítima defesa. A solução do problema social está na liberdade. Há muitos grandes homens no mundo, muitos organizadores, guias, legisladores, condutores da Humanidade. Muitos que se põem acima dos homens para comandá-los. 

Para Bastiat, entretanto, a sociedade não precisa desses guias iluminados e nem da intervenção providencial da Lei e do Estado em todas as relações humanas que configuram a sociedade. O necessário é a Lei proteger a liberdade individual.

segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Tomás de Aquino e a inefabilidade do nome de Deus

 

"Pois conhecemos e nomeamos Deus a partir das criaturas. Os nomes que aplicamos a Deus significam  o que pertence às criaturas materiais, cujo conhecimento é natural a nós."

TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, Questão XIII, artigo 1

Na questão primeira da Suma Teológica, Tomás de Aquino apresenta as razões pelas quais é possível provar racional e demonstrativamente a existência de Deus. Um dos problemas envolvidos nessa prova é o fato de que não seria possível demonstrar a existência de Deus por um silogismo, dado que não há entes singulares divinos a partir dos quais abstrair um termo médio que afirmasse a natureza do Ser Divino. 

Quando construímos um silogismo como "Sócrates é homem/Homens são mortais/Logo, Sócrates é mortal", só podemos deduzir logicamente que Sócrates é mortal porque "homens são mortais" é o termo médio da demonstração. Isto é, "homens são mortais" liga "Sócrates é homem" a "Sócrates é mortal" justamente porque mostra que se Sócrates é um homem, e estes são mortais, então Sócrates, por pertencer à classe humana, deve também estar sujeito à mortalidade que caracteriza todos os seres humanos.

Por outro lado, chegamos ao conhecimento de que todos os homens são mortais a partir da abstração da essência comum a todos os homens, antecedida pela observação dos exemplares singulares de seres humanos concretos. Ocorre que isso não é possível com Deus. Não temos acesso perceptual ao Ser Divino e, portanto, não podemos formar nenhum juízo acerca de Sua natureza. 

Sendo assim, embora a existência de Deus não seja evidente, nenhuma demonstração silogística pode ser formulada. Mas isso não significa que seja impossível provar que Deus existe. A demonstração deverá partir dos efeitos à causa, ou seja, será preciso analisar os entes que existem no mundo para mostrar que eles são efeitos de uma determinada causa remota. É dessa forma que são formuladas as famosas cinco vias de Tomás de Aquino.

Tal método de demonstração deixa em aberto as questões relativas à essência divina. Tudo o que conhecemos de Deus depende daquilo que conhecemos das coisas. Não conhecemos do Primeiro Princípio a não ser aquilo que derivamos da existência das coisas. Por conta disso, sabemos por dedução lógica uma série de atributos divinos, mas somos incapazes de formular a essência de Deus em uma definição. 

Não é possível defini-Lo, contudo atribuímos diversos nomes a Deus. As próprias Escrituras o fazem. A questão é saber em qual sentido é possível atribuir nomes a Deus se não conhecemos Sua essência. Dionísio, o Areopagita, em seu Os Nomes Divinos, obra seminal do neoplatonismo cristão, define que o Princípio Divino está para além de todas as palavras humanas, mesmo o "Ser" e "Deus".

Tomás de Aquino enfrenta essa problemática na questão XIII da Suma Teológica. Como tudo o que conhecemos sobre Deus procede das criaturas, diz o filósofo e teólogo, os nomes que damos a Ele não correspondem à Sua essência. Os nomes são aplicados a Deus querendo significar a substância divina, mas como tudo o que conhecemos pertence primariamente às criaturas materiais, esses nomes nunca são uma representação completa d'Ele. Eles expressam o Absoluto na medida na qual O conhecemos, isto é, na medida em que as criaturas O representam.

Os entes materiais representam Deus de forma imperfeita, enquanto apresentam alguma perfeição, e, como nosso conhecimento teórico provém dos sentidos que captam somente os entes materiais, nossa representação de Deus é imperfeita. Se dizemos "Deus é bom", o significado dessa afirmação é que qualquer bem que há nas criaturas preexiste em Deus de forma muito mais alta. Deus é bom não porque causa o bem, mas sim porque Ele é bom de forma infinita.

Os nomes são atribuídos a Deus de forma própria no sentido de que qualquer perfeição pertence a Ele de modo próprio. Isto é, "bom" é uma perfeição que, na realidade, pertence mais propriamente a Deus do que a qualquer coisa finita. Entretanto, o modo de significação dessa perfeição que atribuímos a Deus não corresponde ao que é próprio a Ele. 

O que Tomás está dizendo é que, como só conhecemos Deus pelas criaturas, atribuímos a Ele nomes que querem descrever a Sua essência, mas que, como são conceitos provenientes de entes limitados, eles sempre estão muito abaixo da grandeza divina. Todavia, se erramos em termos de grandeza, pois nossos parâmetros são limitados, não erramos quando atribuímos a Ele uma perfeição que vemos no mundo, pois qualquer perfeição que está no mundo preexiste em Deus de modo muito mais eminente, de modo infinito. 

Em Deus, as perfeições, como o "bem", são sempre infinitas em grau, mas nas criaturas elas se apresentam de modo limitado. Como só conhecemos o que é limitado, atribuímos a Deus essas perfeições no nível limitado que conhecemos, sem jamais alcançar a ilimitação que as perfeições possuem no seio do próprio Deus. Não podemos nos referir ao infinito a não ser usando termos finitos que sabemos que não são completamente adequados para expressar o que desejamos expressar.

Daí decorre que nenhum termo atribuído a Deus pode ser utilizado de modo unívoco. Um termo é usado de modo unívoco quando ele é empregado sempre no mesmo sentido. Por exemplo, se digo que o cachorro e o homem são animais, utilizo o termo "animal" no mesmo sentido tanto para o cachorro quanto para o homem. Isso não quer dizer que homem e cachorro sejam a mesma coisa. O que significa é que ambos são igualmente animais e, enquanto animais, possuem as mesmas características. 

O que foi dito acima sobre nosso modo limitado de expressar a perfeição divina, exclui logicamente a possibilidade de que os nomes que atribuímos a Deus tenham um sentido equívoco. Um termo é empregado em sentido equívoco quando ele tem significados completamente diferentes de acordo com a situação. Por exemplo, "manga" de camisa e "manga" fruta são sentidos completamente diferentes de um mesmo termo.

Ora, se os nomes que atribuímos a Deus fossem equívocos, nada poderíamos dizer sobre Ele com algum sentido. Estaria cortada toda e qualquer semelhança entre Deus e os entes limitados. Deus seria algo do qual não poderíamos dizer nada com a pretensão de descrever algum aspecto de Sua realidade. O absurdo dessa posição salta aos olhos quando compreendemos que isso instalaria uma barreira intransponível no próprio Ser.

O que afirmamos de Deus sempre se dá no âmbito da analogia, o meio-termo entre o unívoco e o equívoco. A analogia é uma síntese entre diferenças e semelhanças. Por exemplo, quando digo que o leão é o rei da floresta, não estou afirmando que ambos são a mesma coisa ou que são coisas completamente diferentes. Afirmo que o rei e o leão possuem algumas semelhanças importantes e algumas diferenças igualmente importantes. O leão é o rei da floresta porque tem o domínio inconteste do seu território como um rei, mas de nenhum modo espero encontrar na floresta um leão coroado sentado em um trono.

Assim, as perfeições que atribuímos a Deus só podem ter um sentido analógico, jamais unívoco ou equívoco. Deus é bom não porque "bom" seja uma atribuição unívoca, isto é, não porque Deus é bom no sentido no qual nós podemos ser bons, mas sim porque há uma semelhança entre a bondade divina e a bondade humana. Deus é bom não em um sentido equívoco, completamente diferente de nosso sentido de bondade. Deus é bom porque há uma semelhança de natureza entre a bondade divina e a nossa, embora a bondade divina seja em grau infinito, o que a diferencia da limitada bondade dos homens.

O termo "Deus" quer significar a operação providencial divina sobre todas as coisas. Obviamente, essa operação providencial é conhecida a partir das criaturas, de modo que "Deus" é o nome que atribuímos ao Princípio de tudo o que há. A pergunta seguinte é se seria ou não possível afirmar que o nome "Deus" é comunicável a outros. Em outros termos, a pergunta é se é possível aplicar o nome "Deus" a alguma outra coisa ou somente ao Princípio de tudo. 

Tomás responde que um nome é comunicável de dois modos. No primeiro, o nome é comunicável propriamente, pois se aplica naturalmente a muitos. No segundo, o nome é comunicável somente de acordo com alguma parte de seu significado. A essência ou Forma humana é comunicável naturalmente a muitos, pois todos os homens compartilham a mesma natureza humana. O termo "homem", então, não nomeia um ser singular somente, como Pedro. O termo "homem" se aplica universalmente a todos os entes humanos, se refere a Pedro e também a João, Carlos, Maria, etc.

Porém, quando um termo se refere a um único ente singular, ele não é propriamente comunicável a muitos. Se eu digo que Pedro é como Aquiles, estou atribuindo a Pedro alguma qualidade que pertence ao herói grego. Não estou afirmando que existe uma classe de seres humanos chamada "Aquiles", e que cada um dos membros dessa classe é igualmente um "Aquiles". O nome "Aquiles" designa somente um ente: o guerreiro e herói grego de quem fala a Ilíada de Homero. Só é possível chamar qualquer outro homem de "Aquiles" em sentido metafórico.

Uma vez que só há um Deus e Princípio de todas as coisas, o nome "Deus" só se refere a Ele e a mais ninguém. "Deus" não é o nome de uma essência compartilhável com outros, não é uma classe na qual todos os membros exibem as mesmas características. O termo "Deus" se refere só e tão somente a Deus. Nenhum outro ente pode partilhar da Sua deidade. Mas é possível falar de "deuses" no sentido figurado, quando queremos atribuir a um ente qualquer alguma das características de Deus. A absoluta unicidade de Deus é indicada pelos hebreus com o Tetragrammaton: YHWH.

Nas Escrituras, Deus se revela a Moisés como "Aquele que é". Tomás argumenta que tal nome é aquele mais propriamente atribuído a Deus. Primeiro, por conta de sua significação, pois "Aquele que é" designa o Ser em si mesmo. Ou seja, Deus não é isto ou aquilo, Ele é o próprio ato de existir. A Sua essência, a Sua natureza, é puro existência. Em todos os entes, há diferença entre a sua essência e sua existência. A essência diz o que a coisa é, e a existência diz que a coisa efetivamente está na realidade. Em Deus não há essa diferença. Sua essência é a própria existência. 

Em segundo lugar, o "Ser" é o termo mais universal possível. Não designa isto ou aquilo, refere-se a todo e qualquer ente encarado como mero ser. Como o termo se aplica a tudo o que é, não existe termo mais universal do que ele. Não conhecemos a essência divina, quanto mais o nome que atribuímos a Deus for universal, menos ele estará identificado com algum ente limitado e, portanto, mais próximo de expressar a absoluta unicidade divina. "Aquele que é" não designa algo determinado, algo limitado a alguma categoria ou classe. O Ser engloba tudo e não é determinado por nada.

Por fim, "Aquele que é" designa o Ser no presente, sem início ou fim, passado ou futuro. Corresponde assim à eternidade divina, onde não há tempo. Todavia, mais ainda expressa Deus o nome Tetragrammaton, pois indica a natureza divina, incomunicável e, por assim dizer, absolutamente singular.

...

Leia também: Νεκρομαντεῖον: Tomás de Aquino (oleniski.blogspot.com)

segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Ludwig von Mises, praxeologia, epistemologia e materialismo

"Toda variedade de metafísica materialista ou semi-materialista deve implicar na conversão de um fator inanimado em um quase-homem, e atribuir a isso o poder de pensar, de realizar juízos de valor, de escolher fins e de recorrer aos meios para a obtenção dos fins escolhidos. É necessário substituir a faculdade caracteristicamente humana de agir por uma entidade inumana que é implicitamente dotada de inteligência e de discernimento humanos. Não há forma de eliminar da análise do universo qualquer referência à mente. Aqueles que o tentam só substituem a realidade por um fantasma de sua invenção."

LUDWIG VON MISES, The Ultimate Foundation of Economic Science, p.28

O economista e pensador austríaco Ludwig von Mises, expoente da chamada Escola Austríaca de Economia, no primeiro capítulo de seu ensaio metodológico The Ultimate Foundation of Economic Science, reflete sobre os fundamentos apriorísticos do conhecimento humano e sobre a impossibilidade de uma filosofia materialista. Em primeiro lugar, ele esclarece o que são os princípios a priori da epistemologia.

Mises afirma que a epistemologia trata dos fenômenos mentais humanos e das formas de ação e de pensamento do homem. O principal defeito da epistemologia tradicional é não ter dado a atenção devida aos aspectos práticos do pensamento e da ação humanas. Muito se refletiu sobre lógica e sobre matemática, mas pouco se disse sobre os elementos a priori da praxeologia.

A economia foi deixada de fora da epistemologia, tendo seus métodos sido sempre retirados de outras ciências. Isso não significa que o economista deva ignorar as outras ciências. Ao contrário, ele deve dominá-las justamente para saber distinguir sua ciência das demais. O método da Economia não pode ser o mesmo de outras ciências, ele deve ser praxeológico.

Os princípios a priori da praxeologia não são do mesmo tipo dos princípios apriorísticos da lógica ou da matemática. Eles não são axiomas arbitrariamente escolhidos, mas são proposições auto-evidentes, clara e necessariamente presentes em todas as mentes humanas. O primeiro princípio da praxeologia é o reconhecimento de que o homem age, isto é, que ele busca conscientemente atingir determinados objetivos. Essa é uma verdade inegável, auto-evidente para toda e qualquer mente humana, tal como é o princípio de não-contradição.

Cabem aqui alguns comentários. O que Mises quer expressar, cremos, é que é inegável para o homem que ele age visando a fins escolhidos. Essa é a base primordial da praxeologia, o método próprio das ciências econômicas. É mister notar que com esse primeiro princípio, o filósofo austríaco já deixa claro que sua teoria econômica não vai se apoiar em métodos retirados das ciências naturais e nem vai tratar o homem como produto de alguma força inumana. 

Filosoficamente, Mises afirma como primeiro princípio evidente da ciência econômica a existência da mente humana, distinta da mente animal pela capacidade de agir conscientemente segundo fins determinados. Todo e qualquer homem é dotado de uma mente individual (pois não há mente coletiva). que torna possível a ação consciente. A mente ou a consciência é inegável. Todos somos conscientes de que somos conscientes.

A evidência da mente é inegável, pois a tentativa de negar a consciência é ela mesma uma ação consciente. Nenhuma teoria que nega a existência da mente faz qualquer sentido a não ser para uma mente humana. A negação da mente seria uma contradição performativa, ou seja, a tese enunciada nega a possibilidade de enunciação da própria tese. Só é possível enunciar a tese de que não há mente se houver uma mente na realidade que a enuncia.

A mente seria, assim, o primeiro princípio epistemológico, dado que o conhecimento só faz sentido para uma consciência. Como apontaram Agostinho, Descartes e Berkeley, cada um a seu modo, a existência da mente é inegável. Mesmo que quiséssemos duvidar de sua existência, já a estaríamos confirmando no ato mental de duvidar. Só duvida quem possui mente.

Esse primeiro princípio praxeológico é sumamente importante pelo fato de eliminar de início qualquer tentação materialista comum nas ciências econômicas que se inspiram nas ciências naturais. Se somos mentes que agem conscientemente para atingir certos fins desejados, nenhuma lei física, nenhuma física social, como queria o positivismo de Auguste Comte, será jamais possível. O conhecimento do homem tem como seu primeiro princípio o reconhecimento da mente que age segundo fins deliberadamente escolhidos e não por leis físicas ou históricas.

Retornando à exposição de Mises, se o homem é caracterizado pela ação, então o mundo externo no qual ele age é também pressuposto. A sua existência se manifesta na resistência que ele oferece aos anseios humanos e isso torna evidente a nossa limitação. E se o homem age segundo fins, há aí teleologia. A ação humana é fundamentalmente teleológica, dirige-se conscientemente a fins. Por essa razão, o comportamento dos seres humanos não pode ser reduzido à causalidade cega típica das ciências naturais, embora a ação implique em causalidade consciente.

Ora, se a característica essencial do homem é agir segundo objetivos determinados, então juízos de valor são necessários. Não se escolhe um objetivo sem uma avaliação qualitativa. Os objetivos e os valores estão completamente fora das capacidades epistêmicas das ciências naturais. A física não pode tratar de propósito ou de ação consciente. O panfisicalismo é absurdo porque se eliminarmos toda referência a valores torna-se impossível explicar qualquer comportamento humano que transcenda a mera fisiologia.

Mises defende que o conhecimento de que há a ação humana é um princípio apriorístico. Resta saber a definição de um princípio a priori. O economista austríaco define como a priori com duas características: 1) A proposição cuja negação seja impensável pela mente humana; 2) A proposição que esteja necessariamente implicada em nossa abordagem mental de qualquer problema. Tais princípios não podem ser refutados como as proposições a posteriori justamente porque eles constituem o instrumento pelo qual conhecemos o mundo.

A possibilidade de ação no mundo está ancorada no princípio apriorístico do nexo entre causa e efeito. Um mundo desordenado não seria inteligível e não teria a regularidade necessária à ação. Sem o princípio a priori da causalidade não seriam possíveis o pensamento e a ação humanas. A experiência consiste na consciência da presença ou da ausência da identidade naquilo que é experienciado. Toda noção de classe de coisas estaria obliterada se não houvesse regularidade.

O outro aspecto da questão é o fato de que o raciocínio é sempre dedutivo, sendo difícil a justificação de conclusões que não estejam rigorosamente contidas nas premissas, como é o caso da indução. Então, para que seja permitido inferir o futuro a partir do passado é necessário supor a regularidade natural. E mesmo uma abordagem probabilística dos eventos naturais se baseia na regularidade. 

Todavia, as estatísticas sobre o comportamento humano não podem ter a mesma estabilidade daquelas determinadas a partir de fenômenos naturais. Os seres humanos agem segundo objetivos e juízos de valor que podem mudar no tempo. A fim de superar essa dificuldade, o materialismo tenta explicar todas as mudanças no mundo a partir daquilo que é acessível aos métodos das ciências naturais. Desse modo, mesmo os valores e as ideias humanas seriam o produto de eventos externos que determinam as reações humanas.

O materialismo permanece um programa a ser realizado, pois mesmo os materialistas admitem que o conhecimento atual da ciência ainda é insuficiente para explicar todo o comportamento humano a partir de fenômenos naturais cegos. Como não é possível discutir com uma promessa, Mises se limita a indicar as inconsistências e as consequências dessa filosofia.

Se tudo é determinado materialisticamente, então não há o verdadeiro ou o falso. Tudo é do modo como a matéria determina, não havendo como acertar ou errar nada. Nem é permitido ao materialista usar o critério pragmático daquilo que é útil e daquilo que é inútil uma vez que utilidade é um juízo mental acerca da adequação dos meios aos fins. Segundo o próprio materialista, a natureza não comporta teleologia. O objetivo último do materialismo é substituir a teleologia da mente pela causalidade mecânica das forças cegas da natureza. 

É interessante notar que Mises usa aqui um argumento semelhante ao do físico britânico Arthur Eddington em sua lecture de 1929 intitulada Science and the Unseen World. Imagine-se que cada pensamento é determinado por uma configuração específica de átomos. Quando o professor pergunta ao aluno qual é o resultado de 7 vezes 9 e o aluno responde 65, a sua resposta é o resultado de uma cadeia inexorável de movimento dos átomos. Por que ainda dizemos que o aluno errou? 

Não é possível falar em erro se o pensamento é rigidamente determinado pelas leis inexoráveis que governam as configurações dos átomos. A resposta é o resultado de leis naturais que, por definição, não podem ser certas ou erradas. Elas são o que são. Mas, mesmo assim, consideramos a resposta do aluno errada. A razão é que julgamos a multiplicação não por supostas leis materiais e sim pelos liames lógico-formais necessários que implicam uma e só conclusão para as premissas dadas. 

O acerto ou o erro é determinado pelas leis formais da matemática e não pelas consequências supostamente inevitáveis de certas leis físicas. Não há resposta correta ou incorreta se a conclusão a que chegamos é o resultado inevitável de leis naturais que determinam nossos pensamentos e nossos raciocínios. Qualquer que seja a resposta, não se pode discutir com uma lei natural.

Mises afirma adiante que os mesmos problemas enfrenta a doutrina materialista mais famosa e mais influente de nosso tempo: o marxismo. O materialismo dialético afirma que todas as mudanças sociais e ideológicas são produzidas pelas "forças materiais produtivas". Embora Marx não as defina claramente, diz Mises, é possível inferir que se tratasse dos instrumentos, máquinas e outros artefatos utilizados pelo homem em sua atividade produtiva. 

As forças materiais produtivas determinam, a despeito da vontade dos homens, relações de produção e sua superestrutura ideológica, isto é, a religião, as artes, as ideias filosóficas, a política e a justiça. Os homens enganam-se achando que pensam de forma independente quando a verdade é que suas ideias, volições e ações são produzidas pelas relações de produção de uma dada época. E tais relações determinam as mudanças sociais que, no fim, conduzirão ao socialismo com a inexorabilidade de uma lei natural.

Segundo Mises, a absurdidade de atribuir às forças produtivas uma direção teleológica fez com que Marx admitisse no Capital que as massas proletárias, progressivamente empobrecidas no capitalismo, veriam no socialismo um sistema mais satisfatório. Como todo materialista, Marx não poderia distinguir epistemologicamente o erro do acerto. Todas as teses são produto das determinações materiais. 

A fim de escapar dessa consequência lógica do materialismo, Marx recorreu à filosofia da História que revelou a ele o seu curso inexorável. A História se move na direção do socialismo. Obviamente, não importam as ideias ou os desejos daqueles que não conhecem ou não aceitam essa profecia. Os homens serão divididos entre os "bons", aqueles que conhecem e agem de acordo com a lei histórica, e os "maus", os que não possuem o mesmo saber dos "bons". Os "maus" não poderão ser convencidos por argumentos e por persuasão. A única forma de lidar com a divergência será eliminar os homens "maus". O materialismo resulta em tirania, conclui Mises. 

Não é coincidência que Auguste Comte, outro "profeta" do sentido da História e da centralização do poder, manifestasse aberto desprezo pela liberdade de consciência, obstáculo a seu plano de organização científica da sociedade, como assinalou Friedrich Hayek em seu The Counter-Revolution of Science. Também Karl Popper, em seu The Poverty of Historicism, mostrou que a planificação da sociedade por meio da centralização do poder inevitavelmente só pode ser implementada pelo uso da força bruta e pela remoção dos recalcitrantes.

A violência contra os adversários e a repressão do livre pensamento não são males acidentais da planificação forçada da sociedade. Ao contrário, são consequências lógicas necessárias da própria ideia de reconstrução da sociedade a partir de um plano. Como diz Mises, a epistemologia fornece uma pista para a compreensão de nosso tempo.

...

Leia também: 

Νεκρομαντεῖον: Ludwig von Mises (oleniski.blogspot.com)

* Para uma crítica mais detalhada do materialismo marxista, consultar Theory and History e o monumental Socialism, ambos livros de Ludwig von Mises. 

quinta-feira, 8 de setembro de 2022

Michael Oakeshott, racionalismo e política

"Para o Racionalista, nada possui valor meramente por existir (e certamente não por haver existido por várias gerações), familiaridade não possui mérito, e nada deve ser deixado em pé por falta de escrutínio."

MICHAEL OAKESHOTT, Rationalism in Politics, parte 1, pag. 8, in Rationalism in Politics and other Essays (tradução minha)

O filósofo político britânico Michael Oakeshott (1901/1990), em seu famoso ensaio Rationalism in Politics, examina a figura do racionalista e sua influência na política. Logo no início do ensaio o caráter e a disposição do racionalismo moderno são expostos. O racionalista está comprometido com a liberdade de pensamento, aversão a todas as autoridades tradicionais, e, sobretudo, uma confiança na razão.

Nada há que esteja a salvo do crivo da razão. Tudo pode ser livre e criticamente examinado pelos poderes racionais do homem. A Razão é universal e torna tudo e todos iguais, não havendo costume ou autoridade que possa se furtar à investigação de suas bases e pressupostos. 

A sua influência não se faz ausente na política, campo onde a tradição, o circunstancial e o transitório parecem imperar. O racionalista crê em liberdade de pensamento, no questionamento das tradições, das autoridades e dos hábitos enraizados. Sobretudo, sua ideia é a de que a razão é um guia infalível da ação política. A argumentação e a base racional são o que interessa no julgamento de uma instituição qualquer, não seu uso ou sua antiguidade.

Trazer toda a herança social, política, legal e institucional ao tribunal da razão é se intento primordial. O resto, diz Oakeshott, é mera administração racional de todas as circunstâncias. Familiaridade e antiguidade não possuem valor para o racionalista que prefere a invenção de novos instrumentos ao uso de expedientes correntes e bem testados. Reparos estão fora de cogitação. Qualquer tentativa de manutenção ou aperfeiçoamento de ideais tradicionais significa submissão ao passado.

Não há mudança válida a não ser se for conscientemente efetuada. Toda a atividade política é mera resolução de problemas ao estilo do engenheiro. É característico de sua mentalidade o uso de uma técnica apropriada para a resolução de um problema excluindo de sua consideração qualquer fator que não esteja nele diretamente implicado. A assimilação do político ao engenheiro é, segundo Oakeshott, o mito da política racionalista. 

A solução de dilemas práticos circunstanciais e a superação de crises por meio da razão representam a noção de atividade política do racionalista. Se leis ou instituições herdadas impedem aparentemente o tratamento racional dos problemas, é mister fazer tabula rasa e começar tudo de novo, como uma folha branca de possibilidades infinitas. A única forma de ter boas leis é queimar todas as leis existentes e começar de novo, dizia Voltaire.

O racionalismo combina a política da perfeição com a política da uniformidade. Não há problema político que não possua uma solução racional e que esta não seja a solução perfeita. A uniformidade vem da noção de que se uma solução proposta é racional, ela deve necessariamente ser aceita universalmente por todo ser racional. A divergência é sinal da irracionalidade, dado que a solução racional exclui quaisquer preferências particulares.

Na segunda parte do ensaio do filósofo britânico são apresentados os dois tipos de conhecimento envolvidos em qualquer atividade humana. O primeiro deles é o que Oakeshott denomina como conhecimento técnico, o qual é caracterizado por um conjunto de regras deliberadamente aprendidas, memorizadas e empregadas praticamente. Tenham ou não sido explicitadas, a verdade é que tais regras podem ser precisamente formuladas.

O outro tipo de conhecimento é o conhecimento prático ou tradicional. O que o caracteriza é fato de não ser explicitável em regras precisamente formuladas. Ele é aprendido na prática, como o domínio de certas capacidades. Os livros de culinária trazem diversas receitas, mas ninguém pensa que um bom cozinheiro seja somente alguém que segue bem as regras contidas no livro. O mesmo se dá com a arte, a poesia, a pintura, a música, e até mesmo com o aprendizado de uma técnica. 

Seguir regras jamais é o suficiente. Note-se, entretanto, que, apesar de serem distintos, esses dois tipos de conhecimento estão sempre unidos na realidade. Não se trata de racionalidade e irracionalidade contrapostas. Ambos os conhecimentos são necessários mesmo na atividade científica, como asseverou o químico e filósofo da ciência húngaro Michael Polanyi.

Aqui cabem alguns comentários. Michael Oakeshott se refere à tese central de Polanyi acerca do conhecimento tácito na atividade científica. Todo conhecimento é tácito ou derivado de um conhecimento tácito. Isso significa que em todas as atividades humanas há sempre um saber que não é formulável em termos de regras explícitas, mas que está presente na forma de um conhecimento pessoal.

Michael Polanyi salienta que o conhecimento derivado dos manuais nunca é suficiente. Há decisões a serem tomadas, há juízos sobre a realidade a serem feitos que não podem ser formulados em regras explícitas. Por exemplo, o modo pelo qual um cientista julga o resultado de um teste não é matéria de regras lógicas explícitas. É fruto de um conhecimento pessoal, de um talento adquirido por experiência ou por convívio com cientistas mais experientes. 

Não se trata, de novo, de uma oposição entre racionalidade e irracionalidade. O conhecimento tácito não é um resquício irracional a ser eliminado no futuro. Ele é o próprio pensamento racional em ação, pois nenhum conjunto de regras explícitas traz consigo a regra de sua aplicação nos casos particulares. Por definição, as regras são universais, e as situações concretas são sempre únicas, singulares. 

Como adaptar/aplicar a regra aos casos concretos da realidade é um saber que não possui ele mesmo regras. Um juiz aplica a lei sempre a um caso particular levando em conta todas as circunstâncias concretas do acontecimento. O seu julgamento será um "cálculo", pois como já ensinava Aristóteles, a justiça é uma proporção. Não se adquire essa capacidade simplesmente seguindo regras, e sim na experiência contínua de transpor o abismo entre o texto e os fatos da experiência.

"Mesmo as ciências mais exatas devem, portanto, basear-se em nossa confiança pessoal de que possuímos algum grau de talento e julgamento pessoais para estabelecer uma correspondência válida com - ou um desvio real dos - fatos da experiência." (M. Polanyi, Meaning, pag. 31)

Retornando ao ensaio de Oakeshott, o que foi dito acerca das artes, da justiça ou da ciência pode ser dito propriamente da arte política. O conhecimento técnico pode ser transmitido em regras a serem obedecidas, e pode ser ensinado por um professor ou estudadas em um livro. Já o conhecimento prático não é ensinado explicitamente, ele é adquirido somente na experiência ou no contato contínuo com aquele que possui esse saber.

"(...) um cientista adquire (entre outras coisas) o tipo de julgamento que diz a ele quando sua técnica está extraviando-o e o conhecimento que o torna capaz de distinguir as direções profíquas das improfíquas para explorar." (Rationalism in Politics, pag. 15)

O Racionalismo é justamente a negação do valor do conhecimento prático ou tradicional, explica Oakeshott. Não há conhecimento que não seja técnico, que não seja enunciável em um conjunto de regras explícitas. A obsessão do racionalista é a certeza, somada à aplicação mecânica e impessoal das regras. Tal como a ideologia, que parece ser autossuficiente, a técnica é aplicada mais facilmente em mentes vazias. Por isso a necessidade de purgar pela crítica racional qualquer saber anterior.

Na terceira parte do ensaio, o filósofo britânico identifica no século XVII o surgimento da figura do racionalista. Já em Francis Bacon, com seu Novum Organum, se encontra o anseio por um método novo cujas regras sejam explícitas e conduzam ao conhecimento certo. Para Oakeshott, o método de Bacon apresenta três características centrais que resumem seu ideal de conhecimento.

A primeira é que o novo "instrumento" se constitui em uma série de regras explícitas. A segunda é que essas regras são seguidas mecanicamente, isto é, da mesma maneira que alguém utiliza uma máquina. Todas as idiossincrasias e particularidades do pesquisador são eliminadas pelo funcionamento impessoal do "instrumento". A terceira é que as regras são universais, a técnica tem aplicação em qualquer tipo situação e servem para o estudo de qualquer objeto.

Obviamente o outro exemplo de racionalista é René Descartes. O pensador francês também buscou a formulação de um novo método de conhecimento, com regras infalíveis de descoberta, como uma espécie de chave para abrir todas as portas. Modelado a partir da geometria, o método cartesiano tinha a pretensão de ser universalmente aplicável e infalível em seus resultados.

Com o passar das gerações, o racionalista vai se tornando cada vez mais grosseiro e vulgar. As razões para esse fenômeno são obscuras, mas entre elas está o aparente declínio da crença na Providência divina. Em vez do Deus infalível e benéfico, a técnica infalível e benéfica. Oakeshott aponta que 

"Certamente, também, sua proveniência é uma sociedade ou uma geração que considera que aquilo que ela descobriu por si mesma é mais importante do que aquilo que foi herdado, uma era demais impressionada com suas próprias realizações e suscetível a tais ilusões de grandeza intelectual as quais são a loucura característica da Europa pós-renascentista, uma era jamais mentalmente em paz consigo mesma porque nunca reconciliada com seu passado." (p.23)

O racionalismo se manifesta na política, assevera Oakeshott na quarta parte de seu ensaio, na substituição de tradições de comportamento por ideologias, na substituição de políticas de reparo por políticas de destruição e posterior criação, e pela noção de que aquilo que é racionalmente planejado é melhor do que aquilo que é estabelecido por si mesmo pela ação do tempo. É mister possuir sempre um rígido sistema de ideias abstratas, em outros termos, uma doutrina.

O racionalismo na política é a confiança na soberania da técnica, na pressuposição de que algum esquema completo de controle mecanizado é possível, e nos detalhes do esquema projetado. O racionalismo é a política do politicamente inexperiente, daquele que não foi educado no exercício dessa arte. Para alguém nessa situação de inexperiência, a perspectiva de que o conhecimento necessário para governar pode ser facilmente adquirido em um livro cujas regras podem ser aplicadas mecanicamente parecerá a sua salvação.

É essa situação que Maquiavel pretende sanar com seu manual de arte política. Para o governante politicamente inexperiente, o manual, o livro, é a fonte da cultura que lhe falta. Apesar de Maquiavel estar ciente das limitações da técnica, seus sucessores acreditaram firmemente que a política seria apenas uma questão administrativa para a qual bastaria a aplicação dos princípios de uma doutrina fixada em um livro.

Os maiores representantes do racionalismo político, depois de Locke e Bentham, são Marx e Engels. Oakeshott diz que "está fora de dúvida que eles são os autores do mais estupendo de nossos racionalismos políticos." E, como é característico do conhecimento técnico, sua aplicação foi mecânica para guiar uma classe inexperiente.

O racionalista quer acertar, mas infelizmente seu conhecimento técnico representa sempre a metade do conhecimento verdadeiro. Todavia, o racionalista, reflete o filósofo britânico, é perigoso quando está no governo. Seu perigo é menor quando ele fracassa do que quando é bem-sucedido, o que resulta no recrudescimento do racionalismo na vida inteira da sociedade.

Há duas características que tornam o racionalismo político particularmente perigoso. A primeira é que o racionalista se caracteriza por uma concepção enganosa acerca da natureza do conhecimento, o que gera uma corrupção da mente. Por consequência, o racionalismo é impermeável à crítica ou ao reparo. A correção viria exatamente do conhecimento que ele rejeita e que criticou desde o início. A única solução possível é a substituição do projeto racionalista falido por outro no qual se possa depositar todas as esperanças de sucesso.

A segunda característica é a de que o racionalismo tende a reduzir toda educação a um modelo exclusivamente racionalista. Não é preciso que essa educação seja como o grosseiro propósito comunista ou nazista de só permitir o ensino da doutrina racionalista oficial. A educação racionalista não é a apresentação dos costumes morais e intelectuais da sociedade, não é uma parceria do presente com o passado. É, antes de tudo, o treinamento em uma técnica que pode ser aprendida em um livro. E também a firme crença de que o conhecimento técnico, a "administração pública", é a única saída para a sociedade.

A moral racionalista também é uma técnica. Ela se reduz à persecução de ideais morais, ao aprendizado de princípios morais abstratos. É o treinamento em uma ideologia e não uma educação da conduta. Ideais morais são sedimento, afirma Michael Oakeshott. Só possuem significado se estiverem assentados em uma tradição religiosa ou social. O que resta ao racionalista é uma moral seca e arenosa, e a pregação hipócrita de uma ideologia de altruísmo e de serviço social.

...

Leia também:

Sobre Michael Polanyi: Νεκρομαντεῖον: Michael Polanyi (oleniski.blogspot.com)

*Infelizmente, hoje faleceu em seu castelo na Escócia a Rainha Elizabeth II, símbolo de estabilidade e de dignidade, após um longo e próspero reinado de setenta anos. GSQ.