quinta-feira, 26 de março de 2020

Sêneca, estoicismo e a dignificação do sofrimento


"Assim, tomemos o caminho da vitória em todas as nossas lutas, pois o prêmio não é uma coroa ou uma palma ou um corneteiro que pede por silêncio na proclamação de nossos nomes, mas os prêmio é, antes, a virtude, a firmeza da alma, e a paz que é conquistada para todo tempo."

SÊNECA, Cartas a Lucílio, LXXVIII (tradução minha)

Na carta LXXVIII, endereçada a Lucílio, o filósofo estóico romano Lucius Annaeus Sêneca (4 A.C. - 65 D.C.) escreve sobre o poder curador da mente. Lucilius está doente e se queixa de seus sofrimentos. O filósofo inicia sua carta afirmando que ele mesmo, quando jovem, esteve em situação semelhante a de Lucílio e que, sendo tão grandes os seus sofrimentos, chegou a considerar o suicídio. Somente a compaixão por seu velho pai, que sofreria demais com a perda do filho, o demoveu de seu intento suicida.

Sêneca, em seguida, declara que os estudos, a filosofia e a terna convivência com seus amigos foram sua salvação. E, como o médico receita tratamentos e remédios para o corpo do paciente, ele também receitará tratamentos e remédios para a alma de Lucílio. O filósofo passa a examinar os três males que acompanham a doença: o medo da morte, as dores corporais e a ausência dos prazeres.

Quanto ao medo da morte, o conselho de Sêneca é curto: "despreze a morte". O medo da morte não é medo da doença, mas sim medo da Natureza. Se alguém morre, não é pela doença, mas porque está vivo. Ainda que haja a cura, o mesmo destino espera a todos, pois o homem que se cura de uma doença escapou de uma enfermidade e não da morte. Isto é, morrer é natural e nada pode livrar um ser vivo desse destino, não importa a quantas doenças e enfermidades ele sobreviva.

As dores e sofrimentos corporais decorrentes da doença, por mais agudos e prolongados que sejam, exibem interrupções, alívios e, eventualmente, cessação. Além disso, no nível meramente físico, o corpo sabe lidar com esses sofrimentos por meio da dormência e do entorpecimento dos membros afetados por longos períodos de dor. Cessamos de sentir quando sentimos em excesso. No nível mental, aqueles que se impacientam com seus sofrimentos corporais são inexperientes que não se acostumaram a encontrar contentamento no espírito. O homem de espírito e sensato consegue divorciar-se de seu corpo a fim de viver em sua porção melhor e mais divina.

A ausência dos prazeres causa muito sofrimento ao homem, Sêneca admite. Ocorre que esse sofrimento é passageiro, pois logo o desejo arrefece por conta da ausência. No início é doloroso, mas na medida que o tempo passa, menor vai se tornando a dependência. Não causa dor a falta daquilo do qual não ansiamos mais. Em outros termos, Sêneca trata aqui do problema do hábito. O homem rapidamente se habitua por contato, repetição e convívio, mas, uma vez estando ausentes as fontes de seu hábito (ou vício), a falta sentida decresce até o ponto da extinção e eliminação do hábito.

Todavia, não importando quão grandes sejam os sofrimentos, Sêneca adverte, o homem não deve tornar o seu fardo ainda mais pesado com reclamações. A dor é leve se a opinião não adiciona nada à ela. Se o doente mantém seu espírito altivo e de nada se queixa, ele torna a enfermidade leve. Tudo depende da opinião, declara o filósofo romano. Sofremos de acordo com nossa opinião. Um homem é miserável no grau em que está convencido de que é miserável.

Igualmente errôneo é reclamar de sofrimentos passados. Quaisquer que tenham sido tais dores, elas já foram ultrapassadas e não há nenhum sentido em relembrar e queixar-se de ter sido infeliz em algum momento pretérito. Sem contar que os homens exageram suas dores passadas e contam mentiras a si mesmos. Os homens devem abandonar totalmente tanto o medo do sofrimento futuro quanto a lembrança do sofrimento passado, e enfrentar com galhardia os golpes da Fortuna.

Não sofrem os atletas corporal e mentalmente a fim de conquistar seus prêmios em competições? Analogamente, os sofrimentos pelos quais os homens passam são ocasião para a dignificação de sua alma por meio do aprimoramento da virtude e da firmeza de caráter, prêmio muito mais valioso do que as coroas ou os louros das competições atléticas. A covardia não vai ajudar em nada, pois o ataque de um exército inimigo é ainda mais perigoso se estamos recuando.

O homem doente deve voltar a sua mente, conclama Sêneca, aos grandes e bravos feitos de seu próprio passado, ao lado bom de sua vida. Deve mirar-se nos homens que conquistaram a dor exibindo um sorriso mesmo em meio às maiores torturas. Se a dor pode ser conquistada com um sorriso, não o será pela razão? O corpo pode estar comprometido pela moléstia, porém não a mente.

Possuir autocontrole durante uma doença não é inatividade. É mostrar que a enfermidade pode ser vencida ou, ao menos, suportada com altivez. Há lugar para a virtude mesmo quando se está acamado. Não só nas batalhas o homem exibe coragem. Ela pode servir de exemplo para os outros na mesma condição. E se não há outros que testemunhem a sua bravura, o adoecido deve ser sua própria platéia e buscar seu próprio aplauso.

Os prazeres corporais podem ser interrompidos pela doença, mas quando eles retornam, são ainda mais saborosos. E os prazeres da mente, superiores e menos incertos, nenhum médico pode recusar ao enfermo. Todas as coisas podem ser suportadas se não há medo da morte. O enfado não alcança aqueles cujas mentes estão voltadas ao que é grande e divino. O homem que conhece os limites do bem e do mal não se cansa da vida e nem teme o fim inevitável, ainda que este venha antes do tempo. Ademais, qualquer vida deve parecer curta àquele que mede sua duração em termos de prazeres que são vazios e, por isso mesmo, ilimitados.

sexta-feira, 6 de março de 2020

"As Traquínias" de Sófocles: ciúme, culpa e a ação dos mortos


"Dejanira: "Antigo é o ditado que anda em voga entre os homens: 'até que alguém esteja morto, ninguém sabe se sua vida foi boa ou foi má"

SÓFOCLES, "As Traquínias"

A tragédia As Traquínias (Τραχίνιαι), peça teatral de Sófocles (século V A.C.), trata da fatídica decisão de Dejanira que  ocasionou a morte de Héracles (Hércules). Ao contrário do assassinato premeditado do rei Agamemnon por sua esposa Clitemnestra, dominada pela sede de vingança pelo sacrifício de sua filha, Ifigênia, a morte do maior dos heróis gregos acontece por um erro da esposa Dejanira dominada pelo ciúme e por um ardil de um inimigo já falecido.

Após anos de ausência de seu esposo, empenhado em seus famosos trabalhos, Dejanira lamenta seu destino e anseia pelo retorno do herói. Ela envia seu filho, Hilo, para procurar o pai e, em seguida, inadvertidamente, chega um mensageiro a Trachis anunciando que Héracles encontrava-se em Cabo Cenaeum realizando sacrifícios a Zeus após vitória em uma batalha e que logo estaria em casa. A boa notícia é confirmada pela chegada de Lichas, o arauto de Héracles, que traz consigo um grupo de mulheres cativas conquistado como espólio de guerra.

Lichas conta a Dejanira que seu mestre Héracles havia guerreado contra o rei da Oechalia e que, vitorioso, enviava à sua frente aquelas mulheres como butim. Entre elas estava Iole, a filha do rei. Dejanira recebe bem as jovens, apiedada da condição de escravas a que estavam agora submetidas. Mas cedo ela descobre que a história era falsa e que Héracles, na realidade, havia cercado a cidade só para capturar Iole e torná-la sua esposa.

Enciumada, Dejanira decide usar a astúcia para recuperar o amor de seu esposo. quando era jovem, Dejanira havia atravessado um rio montada em um centauro, Nessus. Contudo, no meio da travessia, o centauro tentou subjugá-la. Héracles a salvou lançando uma flecha contra Nessus. Este, antes de morrer, dissera a Dejanira que seu sangue, agora misturado ao sangue da Hidra de Lerna que estava na flecha, seria capaz de tornar Héracles eternamente apaixonado por ela. Dejanira pede então que Lichas entregue a Héracles um manto que, secretamente, ela havia embebido no sangue do centauro.

Dejanira logo pressente que algo desastroso aconteceria quando, exposto ao Sol por acaso, o sangue do centauro derretera um pano como ácido. Lembrou-se da advertência de Nessus de que seu sangue não deveria ser exposto ao Sol ou ao calor. Nesse ínterim, retorna Hilo e acusa sua mãe de assassinato. O manto enviado a Héracles por Dejanira envenenou-o tão logo ele o vestira no meio de seus sacrifícios a Zeus.

As dores provocadas pelo veneno eram tais que Héracles, tomado pela fúria, matou Lichas, o mensageiro que entregara-lhe a túnica. Apavorada e culpada, Dejanira retira-se e suicida-se. Logo depois, Hilo descobre que a mãe não planejara a morte de Héracles, mas que fôra vítima do ardil vingativo de Nessus. Héracles é trazido à presença do filho em meio a dores insuportáveis e descobre que Dejanira não era culpada por seu infortúnio. Nessus, o centauro, era seu verdadeiro algoz.

Héracles relembra nesse momento dois oráculos proferidos sobre seu destino. O primeiro dizia que ele seria morto por um morto. De fato, o herói estava morrendo por causa do ardil de alguém que já estava morto há muito, Nessus. O outro oráculo dizia que em breve os trabalhos de Héracles teriam terminado. Mais uma vez a profecia era realizada, pois os mortos não têm trabalhos. Sabendo que vai morrer, Héracles solicita a seu filho que case com Iole, a cativa, e parte para ser queimado vivo a fim de terminar seus sofrimentos. A peça encerra-se.

Como diz Hilo, Dejanira era inocente e tinha boa intenção. Contudo, resta uma certa ambiguidade em suas ações. Por qual razão confiou Dejanira nas palavras de Nessus, sabendo que este não tinha qualquer motivo para desejar a sua felicidade com Héracles, o autor de sua morte? O ciúme a cegara para as intenções obviamente malévolas de Nessus ou Dejanira, em algum nível, intuía e desejava a morte de seu esposo que tanto tempo passara longe de sua família e que trouxera consigo uma jovem cativa a fim de substituir sua esposa no leito nupcial?

Aristóteles, na Poética, afirma que o herói trágico é um alguém de virtude comum que comete um erro, hamartia, cujas consequências são funestas. Ele não é depravado ou mau, embora seu erro não seja totalmente desprovido de responsabilidade. No caso de Dejanira, sua hamartia é tomar uma decisão ditada pelo ciúme, o que a cega para as evidentes más intenções de Nessus. Embora não desejasse a morte do esposo, Dejanira deveria ter atentado ao fato de que o presente do centauro não era confiável. Porém, seu ciúme parece bloquear a percepção dessa realidade que, em outra situação, seria percebida com maior clareza.

O contraste aqui é com Clitemnestra. Enquanto esta assassina premeditadamente Agamemnon para vingar o sacrifício de sua filha Ifigênia, Dejanira não tem a intenção de matar Héracles, mas sim recuperar seu amor por meio de um artifício. O amor conjugal não é restaurado por meios mágicos e artificiais, e o resultado é a morte do ser amado. Restam a culpa, o remorso e a vergonha insuportáveis. O desfecho funesto é a morte de ambos, esposo e esposa.

Se não é possível afirmar a culpa de Dejanira pela morte intencional de Héracles, não é igualmente possível negar a sua responsabilidade nos eventos que a isso conduziram. Essa é a ambiguidade da hamartia. Não é a expressão de uma natureza má e corrompida pela escolha livre e habitual das más ações e da injustiça, mas também não é uma ação completamente destituída de responsabilidade.

Como diz Aristóteles na Ética a Nicômaco, uma má ação não faz um homem mau tanto quanto uma ação boa não faz um homem bom. O homem bom e o homem mau são ambos resultados da opção habitual e constante por ações boas ou por ações más respectivamente. Dejanira não é má ou corrompida. Nem sequer tomou uma decisão intencionalmente má. Porém, sua ação não é isenta de responsabilidade moral. Por essa razão, compreendemos o sentimento de culpa de Dejanira e, por conseguinte, seu desespero que culmina no suicídio.

É mister notar que a astúcia vingativa de Nessus representa simbolicamente a reverberação das ações dos antepassados e como os mortos afligem os vivos. O oráculo previu que Héracles seria morto por um morto, o que parecia absurdo. No entanto, as ações dos mortos moldam a vida dos vivos de modos imprevisíveis. As consequências dos atos humanos são como sementes plantadas no tempo e que germinam quando o solo é propício.

Héracles selou seu destino ao tirar a vida de Nessus para salvar Dejanira. Ele seria morto pelo centauro ao qual matou para defender a mulher que eventualmente seria o instrumento de sua própria morte. O ciclo completou-se. Todos os envolvidos nos eventos daquela travessia de rio estão mortos. A vitória de Héracles converteu-se em sua ruína. O destino humano parece ser a um só tempo determinado e imprevisível. Em retrospecto, é sempre possível remontar a cadeia de eventos que resultaram no atual estado de coisas, mas quando o homem toma as suas decisões, não é dado a ele nenhum ou quase nenhum vislumbre das consequências de seus atos no futuro remoto.

No início da tragédia, Dejanira afirma que nenhum homem pode dizer se sua vida foi boa ou má até que ela tenha chegado ao fim. A morte encerra o teatro da vida e revela em sua totalidade o enredo daquela trama. Assim como o espectador não conhece de antemão o curso dos acontecimentos em uma peça, assim também o homem não sabe de antemão o curso completo dos acontecimentos de sua própria vida. O autor da peça rege os eventos cênicos segundo um plano. Resta saber se há alguma regência nos destinos humanos.