quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Thomas Kuhn, ciência normal, paradigmas e anomalias



"O que é exato no que concerne à posição de Sir Karl (...) é a idéia da testabilidade em princípio. (...) O que é vago, no entanto, com respeito à minha posição são os critérios reais (se é isto que se requer) que devem ser aplicados quando se decide que determinada incapacidade de resolução de enigmas (puzzles) há de ser ou não atribuída à teoria fundamental, tornando-se assim uma ocasião de grande preocupação. Essa decisão, contudo, é idêntica em espécie à decisão sobre se o resultado de determinado teste falseia ou não determinada teoria, e sobre esse assunto Sir Karl é necessariamente tão vago quanto eu."

THOMAS KUHN, Reflexões sobre meus críticos, In. A Crítica e o Desenvolvimento do Conhecimento, p.306, trad. Octavio Mendes Cajado, Ed. Cultrix


No pensamento do filósofo e historiador da ciência americano Thomas Kuhn, “ciência normal“ significa pesquisa firmemente baseada sobre uma ou mais realizações científicas que uma comunidade particular de cientistas reconhece por um tempo fornecer o fundamento para a prática de pesquisa ulterior. Tais realizações são recontadas por manuais que expõem o corpo da teoria aceita, ilustram todas ou a maioria de suas aplicações bem-sucedidas e compara tais aplicações com exemplos de observações e experimentos.

Paradigmas ganham seu status porque são mais bem-sucedidos que as alternativas em resolver determinados problemas que um grupo de cientistas reconhece como importantes. Mas tal sucesso é também uma promessa, pois o problema resolvido indica como problemas reconhecidos como pertencentes a um campo determinado deverão ser resolvidos.

A ciência normal é justamente o processo de tentativa de resolução gradativa desses problemas a partir dos meios sugeridos pelos problemas já resolvidos. Sua função é aplicar diligentemente o paradigma aos casos ainda não explicados. Os problemas sobre os quais a ciência normal se debruça não são necessariamente interessantes em si mesmos, mas são encarados como puzzles que desafiam a engenhosidade do cientista em encontrar formas novas de aplicação do paradigma.

Os puzzles são considerados pela comunidade científica como os únicos problemas científicos reais e toda questão que não possa ser formulada nos parâmetros paradigmáticos é rejeitada. Por outro lado, como o paradigma guia tacitamente a pesquisa, ele não é posto em questão ou submetido a teste e qualquer fracasso na sua aplicação a um puzzle específico é geralmente considerada como uma falha do cientista individual.

A ciência normal é parte essencial de um “paradigma“, ou seja, um conjunto de exemplos aceitos de prática científica real – os quais incluem leis, teorias, aplicações e instrumentações – que fornecem modelos para a prática científica futura. Não há pesquisa científica sem um conjunto implícito de parâmetros partilhado e aceito por toda uma comunidade de cientistas. O paradigma guia a pesquisa e fornece-lhe um sentido.

Por essa razão, a pesquisa anterior ao surgimento de um paradigma é caracterizada por uma atividade sem um conjunto de parâmetros definidos –  sejam eles teoréticos, ontológicos, metodológicos, epistemológicos, etc – e resulta em uma profusão de fatos desconexos, fortuitos e sem maiores consequências. 

O que acontece, contudo, quando um puzzle (ou um conjunto deles) resiste às soluções sugeridas pelo paradigma? Refuta-se assim o paradigma? É preciso lembrar que a atividade da ciência normal é justamente trazer os casos ainda não resolvidos à normalidade do paradigma compartilhado.

A resistência dessas instâncias ainda não solucionadas é esperada pelos cientistas e não causa grande inquietação. Puzzles recalcitrantes são por vezes deixados de lado, adiados e até mesmo esquecidos. Puzzles persistentes não conduzem necessariamente a uma crise do paradigma.

O que transforma um puzzle recalcitrante em uma anomalia que coloca em risco o paradigma? Segundo Kuhn, não há uma resposta certa e definitiva para essa questão. A anomalia pode se tornar importante por colocar em questão as bases mais gerais do paradigma, por ser um obstáculo a alguma necessidade prática premente, por resistir ao paradigma por um tempo longo demais, etc.

Todavia, uma vez instalada a crise, três são as possibilidades:

1) O paradigma consegue resolver a anomalia;
2) A anomalia persiste e sua resolução é deixada às gerações seguintes;
3) A anomalia persiste e dá ensejo ao nascimento de um novo paradigma.

Durante a crise, cessa o período cumulativo e progressivo da ciência normal e inicia-se a “ciência extraordinária“, isto é, um período no qual todos os esforços estão localizados na resolução da anomalia e proliferam tentativas de resolução menos fiéis ao paradigma.

A resistência da anomalia acirra o descontentamento com o paradigma vigente e fornece o ambiente para a emergência de uma nova organização do campo que resolva aquele problema premente ainda que ao preço da implosão do modelo aceito até o momento. É somente quando uma alternativa satisfatória aparece que o antigo paradigma pode ser deixado para trás.

A emergência de um novo paradigma significa a reconstrução do campo sobre novas bases, uma reconstrução que muda algumas das suas mais elementares generalizações teoréticas tanto quanto seus métodos e suas aplicações. Quando a transição estiver completa, os cientistas terão mudado sua visão do campo, seus métodos e seus objetivos.

Agora, como o novo paradigma surge na mente de um cientista? Kuhn responde que ele nasce “no meio da noite“ e que o modo pelo qual um cientista chega a uma nova proposta de paradigma é inescrutável.

Como os critérios do paradigma moribundo são postos em questão por aqueles que querem substituí-lo por um novo, a solução para o impasse não pode ser a natureza ou a lógica, mas a persuasão argumentativa. Segundo Kuhn, entre o antigo paradigma e o novo há diferenças irreconciliáveis. 

Diferentes paradigmas afirmam coisas diferentes acerca dos entes do mundo e de seu comportamento. Além disso, cada paradigma tem seu conjunto próprio de métodos, problemas e padrões de solução aceitos. Antigos objetos e soluções são abandonados. Um mundo novo nasce. Não há somente incompatibilidade entre os paradigmas que se sucedem, mas incomensurabilidade.



A relação entre paradigmas incomensuráveis pode ser compreendida a partir da experiência visual de figuras como a do pato/coelho. Embora possamos perceber que a imagem pode ser a de um pato tanto quanto a de um coelho, não os percebemos a não ser sucessivamente, um após o outro, jamais pato e coelho ao mesmo tempo.

Analogamente, não é possível entender a realidade sob dois paradigmas simultaneamente. Na disputa entre paradigmas rivais, os cientistas devem escolher somente um, não podendo sustentar uma pesquisa científica sob dois paradigmas diferentes e inconciliáveis.

Entretanto, a transferência de um paradigma a outro é uma conversão e não uma questão de provas e lógica. Aquele que resiste ao novo paradigma não está sendo anticientífico. Ele confia que o antigo dará conta dos problemas que causaram a crise.

A causa da conversão também não tem uma resposta clara. O cientista pode se converter por razões consideradas extracientíficas, como crenças metafísicas, religião, idiossincrasias autobiográficas, nacionalismo, etc. Contudo, a resolução dos problemas que levaram o paradigma anterior à morte, a predição de novos fenômenos e a simplicidade também podem ser fatores conducentes à conversão.


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