terça-feira, 24 de janeiro de 2023

Comentários curtos ao Mandukya Upanisad


Há dez anos ou mais, traduzi por conta própria alguns Upanisads hindus de forma bastante despretensiosa. Utilizei as traduções em inglês da editora indiana Advaita Ashrama e as traduções do indólogo britânico R.C. Zaehner. Acrescentei comentários que compilei a partir dos comentários de autoridades hindus tradicionais como Sankaracarya, Gaudapadacarya, entre outros, e de indólogos e estudiosos do pensamento indiano. 

Relutei bastante em publicar essas traduções por receio de deturpar de algum modo a maravilhosa mensagem dessa tradição milenar. Se agora as publico aqui, é no espírito humilde de contribuir o mínimo que seja para o conhecimento desse tesouro espiritual e metafísico, e, principalmente, como testemunho de meu profundo amor pelos Upanisads. Peço desculpas de antemão por qualquer erro que tenha cometido nesse texto, na tradução ou nos comentários.

1. Hari Om! Essa sílaba "Om" é tudo isso. E a interpretação é a seguinte: o que foi, o que é e o que virá a ser é verdadeiramente Om. E tudo que que está além dos três períodos do tempo é também Om.

2.Tudo isso é certamente Brahman. Este "Si" é Brahman. O Si, tal como é, tem quatro quartos.

3. O primeiro é o estado de vigília (Vaisvanara), consciência (prajna) que se relaciona com as coisas externas, que possui sete membros e dezenove bocas e que lida com o que é grosseiro (denso, espesso).

4. O estado de sonho (Taijasa), consciente do que é interno, que possui sete membros e dezenove bocas e que lida com o que é sutil.

5. O estado de sono profundo é aquele em que o homem dorme e não deseja nada e não sonha. O terceiro estado é Prajna, que tem o sono profundo como sua esfera e em quem tudo se torna indiferenciado, uma massa de sabedoria que abunda em bem-aventurança, experimenta a bem-aventurança e que é a porta para a experiência (dos estados anteriores).

6. [O quarto estado (Turiya)] Este é o Senhor de todos. É onisciente, o controlador interno (de tudo). A fonte de tudo. É verdadeiramente o lugar de origem e dissolução de todos os seres.

7. Não é consciente do mundo interno, nem do mundo externo e nem de ambos juntos. Não é massa de sabedoria (prajna), nem sábio, nem ignorante. Invisível, com quem não se pode ter comércio, incompreensível, indistinto, inconcebível (pelo pensamento), indescritível. Sua prova é a unidade do Si, no qual todo o fenômeno cessa; e que é imutável, auspicioso e não-dual. Assim eles consideram que é o quarto [estado]. Tal é o Si e Isto deve ser conhecido.

8. Verdadeiramente o Si, considerando-o do ponto de vista da sílaba, é Om. Considerado a partir das letras [que constituem Om], os quartos [do Si] são as letras [do Om] e estas são aqueles. A, U, M. *

9. O estado de vigília, comum a todos os homens é A, significando "pervasividade" ou "aquilo que está no início". Pois aquele que o conhece obtém todos os desejos e se torna o começo.

10. O estado de sonho, composto de luz, é U, a segunda letra e significa "exaltação" e "aquilo que é intermédio". Aquele que o conhece aumenta o continuum do conhecimento e se torna igual a tudo. Neste estado não há ninguém que não conheça Brahman.

11. O estado de sono profundo, sábio, é a terceira letra, M. Significa "medida" ou "absorção". Aquele que o conhece "mede" o universo inteiro e é absorvido nele.

12. O quarto é além de todas as letras. Não há comércio com ele; ele traz fim a todo desenvolvimento, auspicioso e não-dual. Tal é o Om, verdadeiramente o Si. Quem o conhece entra no Si através de si mesmo.
...
*(juntas, essas letras são pronunciadas como OM)

Comentários:

1. Assim comenta Sankara Acarya: "Como todos os objetos que são indicados por nomes não são diferentes desses mesmos nomes e os nomes não são diferentes do OM, então o OM é verdadeiramente tudo isso. E como o supremo Brahman é conhecido através da relação que subsiste entre o nome e seu objeto, Ele também é OM."

OM é a sílaba da realidade última de tudo aquilo que foi, é ou será. Nele estão identificadas as realidades manifestadas e as imanifestadas. Na presente perspectiva, OM é Brahman enquanto considerado em seu aspecto de Absoluto, englobando aquilo que está sujeito ao tempo, bem como o que não está, seja porque ainda não se manifestou, já cessou ou é atemporal.

Desse modo, os seres inanimados, os vegetais, os animais, o homem, o corpo, os sentimentos, a razão, os pensamentos, a personalidade individual, o assassino, o santo, os deuses, a alegria, a tristeza, a dor, o prazer, o nascimento, a morte, o ciclo cósmico, o universo, enfim, tudo é Brahman e tudo é OM.

2. Tudo isso é Brahman e o próprio Eu não é mais que Brahman. Eis o ponto central: "Tu és isso!" Ou seja, "tu mesmo, no mais íntimo de tua interioridade é Brahman". Esse "eu" fenomênico, que carrega um nome, que se identifica com seus atos, que sofre e goza, ainda não é a realidade mais profunda. Ele não é mais do que uma manifestação do princípio de todas as coisas que está igualmente inteiro em cada ente sem jamais esgotar-se neles.

Disse Krishna ao indeciso príncipe Arjuna no Bhagavad Gita: "Esses corpos do Incorporado que é eterno, indestrutível e incognoscível, são ditos finitos. Luta, então, ó filho de Bharata!" Os objetos, animados ou não, sutis ou grosseiros, não são mais que vestes passageiras de Brahman e Este é o Absoluto, imutável e eterno.

Escreve Heinrich Zimmer: "A essência dos fenômenos macrocósmicos é una e é idêntica a dos fenômenos microcósmicos." A partir dessa perspectiva, nenhuma dualidade poderá se afirmar como última e irredutível. O supra-pessoal, o não-dual, é o objetivo espiritual por excelência.
"Tu és isso!". O verdadeiro Eu, o "Si" de tudo o que há é Brahman e seus quatro quartos são suas condições representadas nas letras da sílaba sagrada OM. Essas condições serão apresentadas nos versos seguintes.

3. O estado de vigília é aquele do eu fenomênico, que vê, ouve, sente, toca, saboreia, ri, chora, sofre e goza em meio a outros corpos animados e inanimados. Sua esfera de ação primordial é com aquilo que é externo, ao que é presente pelos sentidosSankara Acarya afirma que nesse estado a "idéia é que a Consciência aparece como se relacionada aos objetos de fora, devido à ignorância."

Os sete membros constam no Chandogya Upanisad V, 8, 2. As dezenove bocas são assim discriminadas por Sankara: "(...) os (cinco) sentidos da percepção e os (cinco) órgãos de ação fazem dez.As forças vitais - Prãna e o resto - fazem cinco e (há) a mente (a faculdade de pensar), intelecto, ego, e a substância mental. Esses são bocas, pois são comparáveis a bocas. Isto é, eles são as portas da experiência."

E continua o sábio ortodoxo hindu: "Com efeito, uma vez que através dessas entradas Vaisvanara, assim constituído, desfruta dos objetos grosseiros (brutos, espessos) - como sons e o resto - então Ele é um Sthulabhuk, um desfrutador do grosseiro."Os objetos grosseiros ou espessos são aqueles diretamente perceptíveis pelos sentidos e representam a porção mais baixa na hierarquia da manifestação.

4. O estado de sonho tem como esfera de atividade o mundo da consciência totalmente interna e desfruta somente daquilo que é sutil.O sutil é, em contraposição ao grosseiro, o que é produzido não pela ação dos sentidos que captam os corpos externos e que mantém uma relação sempre de exterioridade.

Taijasa, segundo o indólogo Heinrich Zimmer, é "o Eu quando sonha, contemplando os objetos luminosos, sutis, magicamente fluídificos, e estranhamente encantadores, no mundo que fica por trás das pálpebras dos olhos."

Ao contrário do estado de vigília, em que os objetos deixam impressões na mente, os objetos sutis se apresentam à mente sem entes externos correspondentes. Taijasa, ensina Sankara, significa "luminoso" e isso porque nele o Eu se torna "testemunha da cognição que é destituída de objetos e que aparece somente como uma coisa luminosa. Como Vaisvanara (o estado de vigília) é dependente de objetos, ele experimenta a cognição grosseira, enquanto a consciência que é experimentada aqui consiste de meras impressões; por isso seu desfrute é sutil."

5. O terceiro estado é o do sono profundo no qual não há nenhuma forma, seja sutil ou densa. Nele não sonhos ou desejos.

Sankara Acarya afirma que esse estado é chamado "indiferenciado, uma vez que o conjunto inteiro das dualidades, que é variado como os dois estados (de vigília e de sonho) e que não são mais do que modificações da mente, se tornam indiscerníveis (nesse estado) sem perder suas características já mencionadas, da mesma forma que o dia e o mundo fenomênico se tornam indiscerníveis sob o manto da escuridão noturna."

Como salienta Sankara, nesse estado de sono profundo, sem sonhos, o mundo das formas se torna indiferenciado e indiscernível de forma análoga às coisas visíveis que se indiferenciam na chegada da noite, mas não desaparecem ou são destruídas. O mundo, por assim dizer, se recolhe na noite e retornará tão logo a luz do Sol o ilumine.

Segundo René Guénon, nesse estado todas as possibilidades da manifestação estão como que contidas numa indiferenciação principial. Estão recolhidas como o animal está contido potencialmente no ovo que ainda não quebrou. Nele, Purusha e Prakriti, os princípios ativo e passivo respectivamente, estão recolhidos como possibilidades efetivas do Ser.

Esse estado é vazio, mas não é um nada. É um útero de uma mulher grávida. É repleto de todas as possibilidades manifestáveis e que efetivamente se manifestarão. Seu vazio é o da indistinção, não o da ausência.

Sankara declara que nesse estado há ausência de discriminação e que ele é "ananda-mayah, repleto de alegria, sendo sua abundância de alegria causada pela ausência da dor envolvida no esforço da mente que vibra de acordo com os objetos e seu experimentador. Mas ele não é a Felicidade em si mesma, uma vez que a alegria não é absoluta. Da mesma forma como, no linguajar comum se diz que alguém livre de qualquer esforço é considerado feliz ou anandabhuk, 'aquele que experimenta a alegria', assim também este é chamado anandabhuk, pois por ele se experimenta libertação extrema do esforço"

Como diz o Mandukya Upanisad, tal estado é "a porta para a experiência", pois é dele que tudo o que é manifesto advirá, como que atravessando uma porta. Ele é chamado Prajna, consciência plena, porque nele somente há, como afirma Sankara, "o conhecimento do passado, do futuro e de todas as coisas", pois ele as contém em princípio.

De acordo com as correspondências efetivas entre os estados individuais até agora assinalados e a realidade metafísica, o estado de sono sem sonhos simboliza o Ser como princípio, ou seja, como ainda não manifestado. Nesse sentido ele é Iswara, o Senhor de tudo.

O sutil e o grosseiro perfazem nama-rupa, o mundo dos nomes e das formas, cambiante e mutável que deve ser ultrapassado na direção da identificação com o Princípio último, eterno, imutável e imanifestado, Brahman Nirguna (sem forma), verdadeiro objetivo da vida espiritual.

Tudo o que há na manifestação é Brahman Saguna, o diferenciado, quando considerado do ponto de vista da multiplicidade e Brahman Nirguna, quando considerado do ponto de vista do princípio absoluto e último de todas as coisas, que não admite em si nenhuma dualidade.

O objetivo da vida espiritual é alcançar a consciência da identificação plena com Brahman eterno e sem forma, fonte e sustentáculo de tudo o que é manifestada e natureza verdadeira de cada coisa. Não há aqui espaço para o dualismo corpo/espírito ou corpo/alma.

Corpo e espírito, no sentido comum que se revestem esses termos na contemporaneidade, como entidades distintas, não têm lugar no Hinduísmo ortodoxo. Eles são aspectos inseparáveis no ser humano de uma mesma realidade una e não-dual (Brahman) que é o fim último do conhecimento e sinônimo de libertação da ignorância e que só é alcançada quando se ultrapassa completamente nama-rupa.

6. No quarto estado, Turiya, chega-se ao ápice da visão espiritual. Eis a natureza última, fonte (Yoni) e fim de todas as coisas animadas, inanimadas, sutis, grosseiras, divinas e humanas. Por isso é chamado de sarvesvara, "Senhor de Tudo".

Sankara Acarya afirma que "em sua imanência em toda diversidade, é o conhecedor de tudo, por isso o Onisciente e o controlador interno." Tudo o que é, foi ou será dele provém e para ele retornará. É Brahman Nirguna, o sem-qualidades, O sem-segundo.

Gaudapada Acarya, mestre de Sankara Acarya afirma em sua karika: "O grosseiro satisfaz Visva e o sutil satisfaz Taijasa. E assim também o regozijo satisfaz Prajna. Saiba que o gozo é triplo"Em seguida Gaudapada ensina: "Aquele que conhece ambos - o gozo que há nos três estados e aquilo o qual é declarado ser o desfrutador ali - não se torna afetado mesmo enquanto estiver desfrutando."

Ou seja, aquele que sabe a verdadeira natureza de todas as coisas sabe que os três estados, vigília, sonho, sono sem sonhos e seus respectivos prazeres e alegrias estão contidos eminentemente no quarto estado que é a origem e fim de tudo o que há. Assim, somente Brahman é a realidade no sentido pleno e só ele é o desfrutador.

Aquele que conhece sua natureza verdadeira é como Arjuna na batalha, o santo que age mas não se identifica com o que age e com o que experimenta e sabe que aqueles que mata não são mais do que conformações passageiras do eterno e imutável substrato não-dual de todas as coisas.

7. Turiya é diferente dos três primeiros estados e se revela de forma análoga a revelação da ilusão que toma uma corda por uma serpente. É quando se nega a serpente que se chega à corda. Turiya é a serpente nua, sem qualidades e sem determinações.

Se por um lado é a natureza de tudo o que há, o substrato último, e portanto não diferente de nada do que há, por outro lado é sem qualidades e sem determinações porque nenhum ser, grosseiro ou sutil, o esgota ou o representa totalmente. É a base que está além de todas as classificações, para a qual os termos opostos (p.ex. consciência, não-consciência) são inaplicáveis. Não pode ser visto, não pode ser manipulado, inferido, pensado ou descrito.

Sankara Acarya assevera que sendo Turiya "destituído de toda característica que torne o uso de palavras possível, Ele (Turiya) não é descritível por meio de palavras; e daí o Upanisad busca indicar Turiya somente através da negação de atributos." Mas isso significa que Ele é um vazio?

Sankara responde: "Não, pois uma ilusão, apesar de irreal, não pode existir sem um substratum; pois a prata, a serpente, o ser humano, a miragem e outros não podem existir separados dos correspondentes substrata: madrepérola, corda, tronco de árvore, deserto e assim por diante".

E Sankara acrescenta: "Ao contrário de uma vaca, por exemplo, o Si, em sua realidade própria, não é objetivo de qualquer outro meio de conhecimento; pois o Si é livre de todos os atributos. Não pertence a qualquer classe como acontece com a vaca; por ser o Um sem segundo, é livre de atributos genéricos e específicos. (...) Livre de qualidades, escapa a qualquer descrição verbal."

Nele todo o fenômeno cessa, isto é, tudo o que é fenomênico tem nele sua base, mas não o esgota ou o torna cognoscível. Imutável solo de tudo, não-dual porque não há segundo que se lhe oponha e todas as oposições são nele resolvidas e dissolvidas. É o solvente universal de tudo o que é fenomênico.

Gaudapada Acarya ensina: "O imutável não-dual Um é o ordenador - o Senhor - enquanto o erradicador de todas as dores. Diz-se do refulgente Turiya que é a fonte toda-penetrante de todos os objetos."
Tal é o Si e é isso que deve ser conhecido. E conhecer é tornar-se aquilo que se conhece. "Tu és isso!"

8. O Si, considerado a partir da sílaba, é Om. Considerado a partir das letras que o compõem, os quartos do Si são as letras. A sílaba sagrada Om é um ditongo composto por A, U e M.

As maneiras de considerar a sílaba Om são análogas às formas de consideração da realidade suprema. Pode-se tomá-la a partir de si mesma, em sua unidade não-dual, ou a partir da multiplicidade da manifestação, representada aqui pelas partes da sílaba sagrada.

Brahman pode ser considerado a partir de sua natureza não-dual, livre de toda limitação e das determinações que constituem e tornam possível a existência de tudo o que é manifestado. É Brahman Nirguna, sem gunas, sem qualidades. Encarado segundo a manifestação, Brahman é Saguna, qualificado e múltiplo.

O grande Ananda Coomaraswamy assim se refere à sílaba Om: "De todo os nomes e de todas as formas de Deus, a sílaba monogramática OM, que totaliza os sons e a música das esferas cantadas pelo Sol ressoante, é a melhor. A validade desse símbolo sonoro é exatamente a mesma daquela do símbolo plástico do ícone. Eles são, um e outro, suportes de contemplação (dhiyâ-lamba). A necessidade de tais suportes deriva do fato de que aquilo que é imperceptível ao olho ou à orelha não pode ser percebido objetivamente tal como é em si mesmo, mas somente por meio da similitude. O símbolo deve, obviamente, ser adequado, e não poderia ser escolhido ao acaso. Infere-se (avêshyati, âvâhayati) o invisível do que é visível, o não compreendido do que é compreendido. Mas essas formas não são mais do que meios de aproximação do informal e devem ser descartados antes que nos seja dado de nos mudar nele."

A partir daqui, o Upanisad passa a identificar os estados às letras que compõem a sílaba sagrada OM.

9. O estado de vigília é A, pois simboliza o início. Na ordem do ser, a vigília, o estado comum a todos os homens é hierarquicamente a última, pois correponde à manifestação em seu aspecto mais denso e grosseiro. Quando tomado a partir do ponto de vista do homem e de sua ascensão espiritual, esse estado é o primeiro. Aquele que realiza a plena consciência e identificação torna-se o senhor desse primeiro estado e tudo que nele há lhe pertence.

10. O estado de sonho é U, pois simboliza o estado intermediário na manifestação. Não é mais o denso estado de vigília e corresponde à manifestação sutil, mas ainda não é o sono profundo. Quem realiza essa identificação conhece tudo o que é manifestado, seja aquilo que é sutil ou seja grosseiro, pois este está contido naquele. Ninguém que pertença à sua posteridade espiritual será ignorante de Brahman.

11. O estado do sono sem sonhos é M e simboliza o ponto extremo da manifestação. Ele encerra a sílaba sagrada e corresponde à manifestação enquanto eminentemente contida em seu princípio. É "medida" porque é o princípio de toda a manifestação, que se compõe de seres determinados e ordenados. É "absorção" porque tudo o que há, sutil ou grosseiro, tem nele sua origem e a ele retorna e dele não difere essencialmente.

Quem realiza essa identificação têm em si todas as possibilidades da manifestação da mesma forma que Ishwara. Gaudapada Acarya declara que "o grande sábio, aquele que conhece com firme convicção a similaridade nos três estados é digno de adoração e louvor por todos os seres."

12. O quarto estado não tem representação nas letras que compõem a sílaba sagrada OM. Isso porque ele está além de toda palavra e toda representação. Nele todas as coisas encontram seu fim, pois é o substrato não-dual de tudo o que há, houve e um dia vai haver. Está além do próprio princípio da manifestação que é representado pela letra M. É a verdadeira do eu fenomênico, é o Si supremo e quem realiza essa identidade alcança Brahman por meio de seu próprio eu. Tat Tvan Asi. "Tu és isso!"

Heinrich Zimmer afirma que o quarto estado é o silêncio sobre o qual o som da sílaba sagrada repousa. O som passa, mas o silêncio permanece. É o fundo eterno, imutável e em si mesmo não-dual do qual e sobre o qual as dualidades nascem e duram no tempo. Nada pode ser dito a não ser a negação sistemática de qualquer determinação e limite.

Gaudapada Acarya comenta: "OM é certamente o Brahman inferior; e Om é considerado o Brahman superior. OM é sem causa, sem dentro e sem fora e sem efeito; e é imperecível"
Sankara Acarya explica o comentário de seu mestre: "OM é o Brahman superior e o inferior. Quando as partes e letras desaparecem, a partir do ponto de vista superior, OM vem a ser verdadeiramente o supremo Si que é Brahman. Por conseguinte, é apurvah, sem causa que o preceda. Não há nada dentro dele que seja de uma classe diferente, então ele é anantarah, sem "dentro". Similarmente, não há nada existindo fora.(...) A idéia implicada (como um todo) é que ele é coextensivo a tudo que está dentro ou fora; e é verdadeiramente sem nascimento."

Gaudapada Acarya continua seus comentários seguintes termos: "Om é realmente o começo, meio e fim de tudo. Tendo conhecido OM dessa forma, a pessoa atinge imediatamente a identidade (com o Si supremo)."

Sankara Acarya, o mestre vedantino comenta o comentário de seu mestre; "Como um mágico (OM é) o começo, meio e fim - a origem, a manutenção e a dissolução de tudo - do universo fenomênico inteiro, que consiste de espaço e o resto que se originam como um elefante mágico, uma serpente que na verdade é uma corda, uma miragem, um sonho, etc."

Gaudapada cotinua: "Deve-se reconhecer o OM como o Deus sediado nos corações de todos. Meditando no todo-penetrante OM, o homem inteligente não mais sofre.(...) Aquele por quem o OM é conhecido é o sábio real e nem um outro o pode ser."

Como asseverava René Guénon, aquele que alcança esse quarto estado realiza a "Suprema Identidade."
Encerram-se aqui os comentários curtos ao Mandukya Upanisad.
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Leia também: 

terça-feira, 3 de janeiro de 2023

Tomás de Aquino, Deus e o conhecimento dos futuros contingentes


"Não é por conta de sua existência que Deus conhece todas as criaturas espirituais e temporais, mas porque Ele as conhece, então elas existem."

AGOSTINHO DE HIPONA, De Trinitate, XV

Ainda tratando da questão do conhecimento divino na Suma Teológica, Tomás passa a considerar se o conhecimento de Deus é a causa das coisas. Como foi determinado anteriormente, o conhecimento divino não é adventício e temporal. Diferentemente dos entes cognoscentes temporais nos quais o conhecimento é antecedido pela ignorância e limitado pela presença dos objetos à percepção, Deus não conhece de modo imediato e atemporalmente.

Se não há intervalo entre a existência da coisa e o seu conhecimento por Deus, então o conhecimento coincide com a existência da coisa. Deus conhece as coisas justamente porque é o seu Autor. O artífice tem no intelecto a forma daquilo que quer produzir. Ele produz o artefato e é, portanto, a sua causa. A forma da coisa no intelecto do artífice não torna nada existente por si mesma, mas depende da inclinação real do artista para produzir aquilo que tem em mente. O mesmo se dando com Deus.

Ora, se as coisas são reais porque Deus as conhece, então o que não é real não é conhecido por Deus, alguém poderia argumentar. Tomás responde que as coisas existem em níveis diferentes. Há as que existem de modo atual e há as que existem como possibilidades no poder de Deus ou das criaturas. 

Do mesmo modo, as coisas que já não existem e aquelas que existirão, não existem no momento presente. Como o conhecimento divino é eterno, sem sucessão, compreendendo todo o tempo, nada do que foi ou do que será Lhe é desconhecido. Há também as coisas que nunca foram e nunca serão mesmo estando no poder de Deus ou das criaturas. Dessas igualmente há pleno conhecimento divino.

O que Tomás está afirmando é que o conhecimento de Deus é a causa da existência de qualquer coisa, seja qual for a modalidade dessa existência. O conhecimento divino torna a coisa real, como potência ou como atualidade. Se a coisa passará de potência a ato, é algo que depende da vontade divina ou da vontade das criaturas. Por exemplo, João é casado e pode ter filhos. Se ele os terá ou não, depende de sua vontade. A possibilidade, entretanto, existia anteriormente ao ato de ter filhos.

A pergunta seguinte é se Deus conhece o mal. Dado que, como ensinava Agostinho (e, na verdade, os neoplatônicos) que o mal é a privação do bem, pareceria que Deus não pode conhecer o mal. Aqui devemos esclarecer o sentido da afirmação de Agostinho. O mal é uma privação e não um ente substancial e independente dos outros entes. O que quer dizer que o mal não é uma coisa realmente existente, mas tão somente a falta de alguma perfeição em algum ente, em alguma coisa.

Tomemos o exemplo do gato, um quadrúpede. Sabemos por experiência que gatos têm quatro patas, e quando nasce um gato com três patas, percebemos claramente que lhe falta uma pata. Essa falta, essa privação de uma pata, é um mal. É a ausência de uma propriedade de um ente. A ausência não é um ente substancial, uma coisa. O gato é um ente substancial, a falta da pata não. A ausência de uma pata só é conhecida por causa da presença usual das quatro patas e não o contrário. Por isso, o mal não é uma coisa, mas somente uma ausência de algo que deveria estar presente.

Se o mal não é algo, uma coisa, a questão é saber como Deus poderia conhecer aquilo que é uma falta, aquilo que não existe. Tomás responde que quem conhece perfeitamente algo também conhece tudo o que pode acontecer à coisa conhecida. Se o mal é a privação, e se conheço a coisa perfeitamente, então sei o que pode acontecer a ela. Sabendo que gatos são quadrúpedes, sei também que a ausência de uma pata seria um mal para qualquer gato.

O infinito é aquilo à cuja medida sempre pode ser somada mais uma medida. Aristóteles, na Física, mostrou que é impossível conhecer algo infinito, uma vez que seria impossível percorrer totalmente algo infinito. Porém, Deus também conhece o que é infinito, assevera Tomás de Aquino, pois Ele conhece (na eternidade, não no tempo) não somente tudo aquilo que é, mas tudo o que foi e que será. Deus conhece a infinitude daquilo que está em Seu poder e no poder das criaturas. 

A pergunta mais interessante é se Deus conhece os futuros contingentes. Pareceria que uma resposta positiva teria como consequência a negação da liberdade humana. Contingente é tudo aquilo que pode ser ou pode não ser. João pode decidir se viaja ou não. Nada o obriga ou o constrange para que ele decida por uma ou por outra alternativa. Sua decisão vai determinar a existência de alguma das duas possibilidades de futuro contingente que João tem diante de si.

Talvez nem João saiba ainda o que vai escolher. Quem sabe ainda está deliberando, avaliando e pensando a respeito. Não obstante, qualquer que seja a sua decisão, Deus já a conhece. Sempre conheceu e sempre conhecerá. Alguns afirmam que o conhecimento divino dos futuros contingentes contradiz a liberdade humana. Seria impossível dizer que João é livre para escolher se Deus sabe qual será sua decisão.

Tomás responde que sim, Deus conhece todos os futuros contingentes. Como afirmado acima, Deus conhece o atualizado tanto quanto o que está em Seu poder ou no poder das criaturas. Então é fácil perceber que Ele conhece todos os futuros contingentes. O que é contingente pode ser considerado de duas formas. Em primeiro lugar, pode ser considerado em si mesmo, quando já está efetivado na realidade. 

Na outra forma, o contingente é considerado como algo ainda no poder de sua causa, isto é, como algo futuro, que pode ou não se realizar. Viajar é um efeito em poder de João. Obviamente, enquanto João não decidir, esses dois futuros contingentes, viajar ou não viajar, não podem ser objeto de conhecimento certo. Só podemos conjecturar se João vai viajar ou não. Nosso conhecimento é conjectural, contingente. Deus, porém, sabe de modo certo que João decidiu viajar.

Ora, as coisas contingentes se dão sucessivamente, isto é, temporalmente. O conhecimento que Deus tem das coisas não é temporal, é eterno, sem sucessão. Não havendo sucessão em Deus, tudo é visto como que simultaneamente. Os futuros contingentes são desconhecidos por nós pelo fato de que estamos no tempo. Não podemos ver quem virá depois de nós em uma estrada. No entanto, se estivermos no topo de uma montanha, veremos todos os que estão na estrada simultaneamente.

Tomás salienta um ponto que é, cremos, central para o entendimento dessa questão. Dizemos usualmente que Deus sabe das coisas antes que elas aconteçam. Isso pode ter pelo menos dois sentidos bem diferentes. Deus sabe de tudo porque ele está na eternidade. Ou Deus sabe porque prevê o futuro como alguém que, no tempo, sabe o que vai acontecer adiante. É um erro muito comum confundir esses dois sentidos.

A razão pela qual Deus sabe de tudo antes que aconteça não é porque ele consegue prever o futuro como um cientista consegue prever o estado futuro de um corpo. O cientista está no tempo e só pode prever o futuro estado de um corpo graças ao conhecimento da regularidade natural que ele aprendeu observando outros corpos nas mesmas condições. Ele sabe o futuro no sentido de que sabe como vai se desenrolar o comportamento daquele corpo por causa de um padrão fixo e natural que ele já conhece por experiências passadas.

Sendo assim, o homem só pode prever aquilo que possui um comportamento regular. A previsibilidade científica está calcada na uniformidade natural. Onde não há regularidade, não há previsão. Por isso, se um cientista conseguisse sempre prever com precisão a escolha de João, antes que ele decidisse viajar ou não, utilizando para isso o seu comportamento passado, João estaria em tese inconscientemente obedecendo a alguma regularidade natural inevitável, e não teria liberdade.

Prever cientificamente algum acontecimento futuro requer o conhecimento de uma regularidade natural descoberta por meio da experiência. Esse ponto é crucial. Deus não prevê o futuro como um cientista que sabe de antemão como um corpo vai se comportar em determinadas condições porque já observou o mesmo comportamento inúmeras vezes no passado. Prever no tempo é saber alguma regularidade que vai se manter no futuro. Nesse caso, não há mesmo liberdade. Há uma regularidade natural que ordena os acontecimentos futuros.

Deus não está no tempo e prevê que João vai optar por viajar. Deus, na eternidade, vê tudo como simultaneamente. Não há tempo, portanto não há sucessão de acontecimentos. Se Deus estivesse no tempo, obviamente Ele só poderia conhecer os acontecimentos na medida em que se sucedessem. O que equivale dizer que Deus seria ignorante daquilo que ainda não tenha acontecido. Estando fora do tempo, Ele não está submetido à limitação do conhecimento adquirido.

Deus vê tudo como um grande "agora". Nós estamos no tempo, nós temos essas limitações do conhecimento adquirido. Dizer que Deus prevê o futuro como um ser humano pode às vezes prever o que acontecerá é atribuir a Deus o modo de conhecimento humano. Os futuros são contingentes porque eles podem se dar de um jeito ou de outro. João decide livremente, no tempo, se vai ou não viajar. Seus amigos não sabem o que ele vai decidir. Podem somente conjecturar, não têm certeza do que acontecerá. 

João não é meramente um corpo cujo comportamento possa ser previsto com exatidão dadas as mesmas condições de seu comportamento no passado. Não há uma necessidade natural que o impila a tomar esta decisão e não aquela. O que não significa que o conhecimento que Deus possui de João sofra das mesmas limitações do conhecimento temporal. 

O modo de conhecimento do conhecedor determina o modo como será conhecido o objeto. Os amigos de João só podem saber qual foi sua decisão no momento em que ele a tomar, pois são seres humanos e seres humanos conhecem as coisas temporalmente. Deus conhece a mesmíssima decisão de João, não no tempo e sim na eternidade, pois Ele é eterno. João fica obrigado a decidir como Deus "previu"? Não, pois o modo de conhecimento divino não afeta a natureza da coisa conhecida.

Deus conhece tudo eternamente. Esse é Seu modo de conhecimento. Isso não significa que pelo fato de Deus saber eternamente os acontecimentos estejam decididos no tempo. No tempo, há futuros realmente contingentes. João decide livremente se viaja ou não. A natureza contingente da decisão de João não é afetada pelo modo como Deus conhece essa decisão. 

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Leia também: Νεκρομαντεῖον: Tomás de Aquino (oleniski.blogspot.com)