É quase impossível iniciar qualquer texto que verse sobre a questão filosófica do conhecimento sem citar a afirmação clássica de Aristóteles no início do livro primeiro da Metafísica: “Todos os homens por natureza desejam conhecer.”. O que é ali apontado é a propensão natural, compartilhada por todos os homens, para o conhecimento do mundo multifacetado que nos rodeia.
Evidentemente, o conhecimento do ambiente circundante representa uma condição indispensável para a própria sobrevivência do homem. Saber onde se escondem os predadores, quais são os animais peçonhentos ou mesmo saber distinguir entre plantas comestíveis e ervas venenosas pode constituir a diferença entre continuar vivendo e morrer. Em muitos casos, tal gênero de conhecimento não se distingue substancialmente daquele aprendizado manifestado frequentemente nos animais irracionais.
Não poder-se-ia negar a esse saber prático a alcunha de conhecimento, pois assim como o mesmo Aristóteles admitia que o ser pudesse ser dito de diversas formas e sentidos, o conhecimento também pode apresentar-se sob diversas vestes. É o que o filósofo parece indicar logo depois, ainda no início do primeiro livro da Metafísica, afirmando que o interesse humano no conhecimento vai além da utilidade imediata e assume a forma de um saber desinteressado. Assim, ainda que nenhuma ação seja visada, o uso dos sentidos nos agrada por ele mesmo.
Podemos observar o mundo que nos cerca sem exatamente acalentar o desejo de perpetrar uma ação qualquer. Podemos observá-lo pelo simples prazer ocioso de conhecê-lo. A esse gênero de ociosidade também corresponderá respectivamente um sentido diferente de conhecimento. Este não definir-se-á por suas virtudes práticas, mas por uma tendência a compreender o mundo pelo prazer da compreensão em si mesma.
A característica mais imediatamente constatável da filosofia é sua preocupação com o gênero de conhecimento descrito acima. Ao mesmo tempo em que, em sua definição, a filosofia incumbe-se a si mesma da árdua tarefa do “amor à sabedoria”, ela encara esta última a partir de uma interpretação precipuamente não-prática. Embora não negue o valor próprio daquilo que é conhecido por amor à ação, a filosofia toma como o sentido mais próprio do conhecimento aquilo que é conhecido por si mesmo. Segundo a filosofia, o ato de conhecer é, para o conhecimento, seu objetivo mais alto e seu próprio prêmio.
Embora a filosofia tenha se definido em termos de um saber que tem em si mesmo seu fim, permanecia a questão de como alcançar esse saber ou de quando estamos de posse dele. Pode-se certamente aproveitar, ociosa e recreativamente, as imagens e percepções fornecidas pelos sentidos sem aí perguntar-se sobre sua acuidade. Nesses momentos, pouco importa se uma sombra parece um homem sem sê-lo. Mas se a filosofia é uma atividade que tem parentesco com esse olhar ocioso, ela também não se resume a ele. Sua semelhança radica-se e termina no fato de não exigir do ato de conhecer uma utilidade imediata. Poucos, entretanto, poderiam chamar de conhecimento a visão equivocada de um homem numa sombra.
O saber pode valer por si mesmo, mas somente se corresponde à realidade. A filosofia então não é uma atividade mental meramente recreativa e sem rédeas, mas uma atividade ao mesmo tempo livre dos constrangimentos da necessidade material e atada às necessidades da adequação do pensamento ao real. Dessa forma, a filosofia tomou para si historicamente a tarefa da busca incessante de caminhos que conduzissem infalivelmente o homem ao paraíso do conhecimento verdadeiro.
Não obstante, se é possível afirmar que há conhecimento prático, é porque nele encontram-se elementos de verdade. Há correspondência de alguma ordem entre o que se pensa ser o real e o real ele mesmo. Por outro lado, é também possível confiar num saber prático qualquer e ainda assim admitir que se ignorem quase totalmente os fundamentos mais básicos das constantes que ligam os fenômenos. Não é preciso saber qual a razão última do movimento solar para se esperar um amanhecer. Nem mesmo é necessário ter uma noção correta dessa razão. O conhecimento prático é compatível com a falsidade das premissas que supostamente o sustentariam.
Contudo, têm-se intuitivamente a impressão de que é insuficiente o conhecimento operacional fornecido pelo saber prático e de que só há conhecimento verdadeiro de algo se não houver qualquer possibilidade de erro. A impossibilidade do erro só pode ser alcançada quando se encontram as razões últimas das coisas. E tal saber liga-se precipuamente àquele olhar que não procura na coisa observada mais do que ela mesma e suas causas. O olhar livre da necessidade material imediata desloca-se na direção da busca por um saber que revele as estruturas fundamentais que tornam os fenômenos aquilo que eles são.
O movimento que caracteriza o saber teórico é fundamentalmente aquele da redução da multiplicidade à unidade. Diante da vastidão vertiginosa dos seres que compõem o cenário deste mundo, o filósofo busca encontrar princípios limitados numericamente dos quais possam derivar-se o comportamento constante de todos os eventos que testemunha. O conhecimento teórico, o conhecimento verdadeiro, será a reunião de diversos fenômenos, ainda que separados no tempo e no espaço, sob um conjunto limitado de leis gerais e fundamentais.
O processo de compreensão teórica do mundo é uma incessante discriminação entre o essencial e o acidental, o universal e o particular, o geral e o caso concreto, o gênero e a espécie, ou seja, entre aquilo que é a razão da coisa e a coisa que exemplifica a razão. Todo o desafio do entendimento racional é unir os sinais separados no tempo e no espaço em um todo coerente sob leis gerais que de fato assimilem a natureza última desses sinais.
Contudo, um saber prático é supostamente capaz de fornecer bases suficientemente seguras para a ação humana mais imediata. De fato, historicamente, artefatos, utensílios, instrumentos e até mesmo maquinaria pesada foram inventados e utilizados muito antes que surgissem quaisquer teorias para explicar-lhes o funcionamento. Ao que parece, nesses casos, a necessidade criou o instrumento e a prática guiou seu aperfeiçoamento em um processo de tentativa e erro sem que considerações acerca dos fundamentos últimos dos fenômenos envolvidos fossem sequer cogitadas.
Além disso, a perspectiva prática livraria o homem da incômoda herança de uma sucessão interminável de teorias, hipóteses e escolas de pensamento conflitantes e inconciliáveis entre si que a história do pensamento teórico parece nos legar. Poder-se-ia continuar a criar teorias como criam-se instrumentos e ferramentas, medindo sua eficácia na lida direta com os problemas concretos e aperfeiçoando-os segundo os resultados de seus desempenhos. Não há impedimentos para que se continue a construir escadas novas, adequadas à altura que se quer alcançar. Nem mesmo é necessário abandoná-las após o uso. É preciso somente que se mantenha nítido seu caráter meramente instrumental e não se pretenda medir o mundo pela altura das escadas.
É absolutamente inegável que boa parte das atividades humanas pode ser encarada a partir desse prisma sem risco de qualquer empobrecimento ou estagnação. Em muitas áreas, é justamente a consciência da falibilidade e dos limites de qualquer teoria frente à complexidade apresentada em um determinado campo que exige a modéstia teórica do pragmatismo. Nesses campos, apesar da proliferação de estudos ornados de gráficos e equações matemáticas, a visão adotada está longe daquela de um saber rigoroso e infalível acerca da natureza das coisas.
O seu caráter está mais próximo do esquema da tentativa e erro controlado sempre pela consideração atenta dos resultados favoráveis ou desfavoráveis. As áreas de pesquisas científicas que se dedicam à criação e aperfeiçoamento de técnicas, aparelhos, procedimentos, maquinaria e instrumentos em geral indubitavelmente têm suas atividades girando em torno de objetivos exclusivamente práticos. Em tais setores o que importa são bons resultados no incremento da adequação dos instrumentos a situações e contextos bem determinados.
Apesar de atraente, essa perspectiva instrumentalista apresenta dificuldades em alguns pontos importantes. Primeiramente, ela subestima o valor prático do aspecto teórico na motivação da pesquisa. A admissão da impossibilidade de determinação da verdade das teorias representaria, para boa parte dos pesquisadores, a perda de seu incentivo para o prosseguimento em seus programas. Deve-se lembrar ainda que os usos práticos são, em geral, produtos não intencionais de teorias que foram propostas como soluções verdadeiras para problemas teóricos reais.
Em segundo lugar, o viés eminentemente tecnológico-prático de parte da ciência contemporânea é um fenômeno recente que somente pôde se dar graças a um cenário anterior dominado pela pesquisa dirigida por ideais tradicionais de valorização do conhecimento em si mesmo.
E em terceiro lugar, a complexidade da tecnologia produzida na contemporaneidade torna o instrumentalismo cada vez menos satisfatório como resposta ao problema do conhecimento. Isso se dá porque essa tecnologia que produz satélites, ônibus espaciais, celulares, computadores e telescópios intergaláticos exige um substrato teórico tal que não permite que se tratem tão facilmente as entidades postuladas pelas teorias como meras fantasias ou conceitos operacionais.
É quase impossível afirmar que a destruição produzida pela fissão de um átomo aconteça sem que realmente exista uma partícula que denominamos pelo termo átomo. Este não é um conceito operativo somente, uma vez que é absurda a ideia da geração de uma energia suficiente para destruir cidades inteiras através somente da invenção de uma palavra. Desse ponto de vista, é a própria tecnologia, cujos objetivos são inegavelmente práticos, que exige uma postura mais realista acerca das teorias que a sustentam.
Por fim, nenhum saber prático, científico ou não, pode prescindir de pressupostos teóricos. Ninguém caça se não pressupor a realidade da presa que ainda não tem sob o alcance imediato de suas faculdades cognitivas. Ninguém formula objetivos práticos sem afirmar a existência de leis naturais, sem postular o caráter disposicional da observabilidade, constância e invariabilidade pregressa e futura das características e do comportamento dos objetos.
No entanto, tais razões parecem não ser muito convincentes quando um perquiridor honesto depara-se com o complexo espetáculo do conflito de ideias e teses que constitui a história da filosofia. Não será surpresa se a confusão e o temor apossarem-se dele. Confusão pela gama vertiginosa de argumentos aventados em defesa das teorias mais diversas e temor pela possibilidade de resolução de tais conflitos.
É humanamente impossível travar conhecimento, estudar e responder adequadamente a todos os argumentos e teses que já foram propostos durante a longa e tortuosa história do ocidente. Parece improvável que se consiga resolver mesmo os impasses mais centrais e tradicionais. A dificuldade do empreendimento filosófico torna vívida a impressão de que nenhuma conclusão segura pode ser alcançada por meios racionais e reforça a suspeita de que nada pode ser conhecido.
A divergência entre as inúmeras escolas filosóficas foi sempre o argumento mais forte daqueles que negaram qualquer possibilidade de conhecimento teórico definitivo e seguro. Talvez toda essa discordância indique que nenhum critério evidente e acima de qualquer dúvida exista para discernir o verdadeiro do falso. O fantasma do ceticismo parece acompanhar qualquer um que se disponha a investigar honestamente a questão do conhecimento.
Ora, negar qualquer conhecimento significa dizer que absolutamente não sabemos por que um celular ou um satélite funciona. É sustentar que nada sabemos de um mundo cuja face transformamos o suficiente para criar cidades, fornecimento de energia elétrica, computadores e naves espaciais. A afirmação de que o homem nada sabe comparado aos mistérios que o universo apresenta é uma forma inócua e trivial de lembrar a dimensão da ignorância na qual ainda vivemos. Algo bem diferente é defender que nenhum conhecimento é possível.
A fim de evitar a flagrante contradição de um dogmatismo negativo, ou seja, a negação da possibilidade de todo e qualquer conhecimento, alguns céticos passaram a afirmar apenas a sua incapacidade de encontrar critérios indubitáveis e evidentes para decidir as disputas filosóficas. Assim, a possibilidade de que tal critério seja encontrado um dia é preservada e, ao mesmo tempo, admite-se uma regra de ação no mundo baseada na simples aparência divorciada da afirmação de verdades últimas sobre os fenômenos. O ceticismo, entretanto, ainda que dissociado do dogmatismo negativo, apresenta dificuldades teóricas que o tornam uma posição historicamente marginal na filosofia.
(texto escrito em 2011 como parte da introdução da tese O Problema de Gettier e o Ceticismo)
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