sábado, 12 de janeiro de 2013

Descartes, perfeição e solipsismo


"Pois como é possível que eu possa saber que duvido ou que desejo, ou seja, que me falta alguma coisa e que não sou totalmente perfeito,  se não tivesse em mim nenhuma ideia de um ser mais mais perfeito que o meu, por comparação com o qual eu conheceria os defeitos de minha natureza?"

RENÉ DESCARTES, "Méditations Métaphysiques", meditação terceira (tradução minha direta do francês)

Chegado à terceira meditação, tendo mostrado o caráter claro e distinto, portanto indubitável, da ideia do eu pensante, Descartes parte para a demonstração da existência de Deus.

Não são poucos que, movidos pelos preconceitos do tempo atual, tendem a ver nesse capítulo uma mera concessão feita pelo racionalista francês às exigências religiosas de sua época. Ou ainda como um ato de prudência numa era em que os autos de fé ainda estavam em voga.

Evitando entrar no mérito da devoção privada de Descartes e seguindo o caminho estritamente filosófico da análise da argumentação apresentada pelo autor, é possível perceber que, dadas as suas premissas e pressupostos, a existência de Deus é essencial para seu projeto de reconstrução do conhecimento.

E mais: o próprio Descartes salienta amiúde que é somente em Deus que se podem assentar os princípios do conhecimento verdadeiro da Física. Sem Deus, sem Física. Mas qual a razão disso?

Em primeiro lugar, é preciso lembrar que Descartes rompe com a tradição medieval na medida em que concebe que o conhecimento do mundo deve ter a clareza e a distinção das matemáticas. Dizer a definição de triângulo, "polígono de três lados", é dizer o que é um triângulo e saber, além disso, que nenhum triângulo será diferente de sua definição.

Isto é, há uma completa identidade entre conceito e a coisa conceituada. Mas isso só se dá porque o objeto da matemática é uma abstração, uma estrutura puramente formal sem contraparte no real físico. Dizer a estrutura formal é dizer o objeto matemático.

Mas no mundo físico isso não se dá da mesma forma. Embora possamos definir o homem, sabemos, no entanto, que essa definição nunca corresponde exatamente aos homens concretos. Estes são sempre singulares, e a definição é sempre universal.

É por isso que é possível afirmar que "todo homem é racional" e apontar para homens que não podem, por diversos motivos de ordem material ou psíquica, atualizar ou efetivar a sua racionalidade plenamente. Então, como os medievais diziam, o ser físico é sempre uno com relação à sua definição, mas múltiplo com relação à sua matéria.

Descartes elimina essa importante diferenças entre as esferas do real e pretende construir um conhecimento com a mesma certeza das matemáticas. E só pode fazer isso eliminando toda a matéria advinda dos sentidos e apoiando-se meramente em estruturas formais, ou seja, em ideias.

É assim que, nas Meditações Metafísicas, por meio da dúvida hiperbólica, os dados dos sentidos são totalmente rejeitados como suspeitos, pois, segundo Descartes, podem ser fruto de sonho ou ilusão. Mas a dúvida cartesiana vai mais longe e concebe a possibilidade de que mesmo as faculdades racionais, aquelas responsáveis pela certeza das matemáticas, podem estar sob domínio de um gênio maligno de tal forma que tudo o que pensamos ser verdade nesse domínio na realidade é falso.

Se o que se busca é a certeza, a indubitabilidade, então a menor possibilidade de dúvida é fatal. Contudo, se mesmo nesse contexto de dúvida radical, eu posso dizer que se me engano, necessariamente há alguém que se engana, então há clara e distintamente, indubitavelmente, um eu que pensa. Mas esse eu que pensa é puro pensamento, imaterialidade que não sabe se o mundo externo material existe. É solipsista. Só ele existe, por enquanto. 

É nesse momento que se torna necessário Deus. Ora, se eu só sei que eu, enquanto mero ser pensante, existo, então tudo o mais pode ser mera projeção de minha mente. Meus amigos, meus inimigos, as guerras, a mulher amada, os pássaros e a galáxia de Andrômeda podem não ser nada além do que pensamentos na minha mente e nada de realmente existente fora de mim, ou seja, extramentalmente.

A única saída do solipsismo é afirmar a existência de um outro ser fora de mim. Os sentidos não podem fazê-lo, pois, nesse contexto da dúvida hiperbólica, só tenho certeza de mim mesmo como ser pensante, nem mesmo de meu corpo posso afirmar a existência. Bem, eu poderia apelar para Deus. Mas há um problema: a via tradicional de demonstração racional da existência divina se dava pela consideração do mundo físico. Em outros termos, era a partir da observação do mundo sensível que se chegava à existência do Criador.

Diga-se de passagem que esse era o caminho da metafísica tradicional. A metafísica era o ponto culminante de um processo que, partindo do dado sensível, abstraía todas as características materiais e particulares dos entes até alcançar a pureza máxima da consideração do ser como mero ser, da existência como mera existência.

Mas foi justamente Descartes que inverteu esse caminho. A metafísica não se seguiria, como nos escolásticos, de um processo abstrativo a partir dos dados da sensibilidade, mas, ao contrário, ela seria a base de todo o conhecimento procedendo diretamente da identificação das ideias primeiras dentro do ser pensante. Em vez de ser o coroamento do conhecimento, ela seria o seu início. Em vez de uma meta-física, uma ante-física.

Os escolásticos diziam que a a metafísica tratava dos fundamentos últimos de todas as coisas, mas sabiam que o conhecimento desses fundamentos se dava temporalmente após o conhecimento do mundo. Descartes defende a posição contrária segundo a qual é necessário conhecer os fundamentos últimos antes para bem conhecer o mundo físico.

Assim, querendo um conhecimento puramente matemático, indubitável, ancorado na mera definição do ente, o filósofo francês fechara definitivamente a porta para a demonstração tradicional da existência de Deus. A partir de qual mundo poderia ele inferir a existência de Deus? A partir de quais dados dos sentidos, já que havia rejeitado todo o sensível como enganoso?

Se a única possibilidade de sair do solipsismo do eu pensante era apelar para Deus, a via tradicional de demonstração estava fora de cogitação por causa dos próprios pressupostos de Descartes.  Então, o que fazer? Permanecer no solipsismo?

Ora, se para Descartes todo o conhecimento se baseia em ideias claras e distintas, então ele deve buscar uma ideia que o retire do solipsismo. Mas como, se as ideias podem ser produzidas pelo ser pensante? A resposta é encontrar uma ideia tal que não possa, sob hipótese nenhuma, ter sido produzida pelo eu pensante. Que ideia seria essa?

Se eu posso estar enganado, e enganando-me sei que eu existo, então há um ser que se engana. Um ser que se engana é um ser que erra, e um ser que erra é limitado. É limitado porque falta-lhe algo. Se falta-lhe algo, é imperfeito. O eu que pensa é imperfeito.

Mas se ele é imperfeito, de onde vem a idéia que lhe dá o critério desse julgamento? Ou seja, se digo que sou imperfeito, só o posso fazê-lo a partir de algo que seja perfeito. A imperfeição é uma carência, uma falta, e, por conseguinte, só posso saber de minha imperfeição se houver em mim uma ideia de perfeição.

A ideia de perfeição pode vir da mera ideia de negação? Só tenho a ideia de ilimitado pela negação do limitado? Como, se o limitado é justamente uma falta, uma ausência de algo e, por conseguinte, um grau menor de realidade? Um cadeira com defeito é uma cadeira a que falta algo, ela tem menos, é menos cadeira que a cadeira perfeita. Logo, a cadeira perfeita é o parâmetro da cadeira defeituosa.

A ideia de perfeição pode vir da perfectibilidade? Uma coisa pode se aperfeiçoar e, por isso, concebe-se a ideia de perfeição? Bem, o perfectível é sempre limitado, e se é limitado, cai no mesmo caso anterior.

O ponto é que a ideia de perfeição é anterior, para Descartes, a qualquer julgamento acerca da imperfeição. Temos a ideia de perfeição e por ela julgamos as coisas e a nós mesmos. Sabemos que somos imperfeitos por causa da ideia de perfeição que já temos.

Se é assim, de onde vem essa ideia? De mim mesmo? Como, se não conheço nada perfeito e sei de minha própria imperfeição? De outro? Não sei se há outro ser além de mim, mas se houver e ele for também imperfeito e limitado, o problema se repetirá nele também.

Só resta uma resposta: a ideia de perfeição não vem de mim e nem de outro ser tão limitado quanto eu, mas sim de um ser plenamente perfeito e, portanto, ilimitado e infinito. Só tenho a ideia de um ser que corresponde a essas características: Deus. 

Note-se que, com isso, a existência de Deus é provada, não somente a mera ideia de Deus. Se a ideia de perfeição não pode vir de mim mesmo e nem de nenhum ser tão imperfeito quanto eu, então ela tem de vir de alguma outra fonte.  Se não vier de fonte nenhuma, virá do nada, o que é absurdo.

A única fonte possível é um ser tão perfeito quanto a própria idéia de perfeição. Então, necessariamente Deus existe. Se todo efeito tira sua realidade de uma causa capaz de causá-lo, então a idéia de perfeição só pode advir, como efeito, de uma fonte cuja natureza é capaz de causá-la, em outros termos, de uma natureza perfeita e infinita.

Demonstrando a existência de Deus, Descartes consegue sair do solipsismo, pois há um ser além do eu pensante e esse ser é perfeito, por ser perfeito, não engana. Se Ele não engana, então não há um demônio enganando as faculdades racionais e, por conseguinte, as verdades da matemática são seguras. E nem estou sonhando quando penso existirem coisas externas que me vêm pelos sentidos. Uma vez que só tenho os sentidos para averiguar sua verdade, e Deus não me engana, então o mundo externo é real.

Seria difícil exagerar a importância da ideia de perfeição na terceira meditação de Descartes. Na verdade, é aqui que tudo se decide, se é possível ou não passar do solipsismo ao mundo externo, se é possível ou não ultrapassar o abismo que separa a autoprodução das ideias pelo ser pensante das realidades extramentais.

Tudo depende da possibilidade ou não da ideia de perfeição ser produzida pelo próprio ser pensante. Encarcerado no solipsismo do cogito, Descartes não tem outra saída a não ser procurar, no repertório das ideias do ser pensante, uma ideia cuja natureza não possa ser produzida por ele mesmo. Em suma, a ideia de perfeição é a ponte sobre o abismo que separa o mental e o extramental.

...

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5 comentários:

Anônimo disse...

Desculpe eu não entendi muito bem, não me ficou claro, se puderes me ajudar eu ficaria muito agradecido.


Como a ideia de perfeição ou de melhor esta implícito em cada sujeito? me parece a parte que não entendi e por isso tenho a ideia que esta errada, não provada.

A ideia de imperfeição esta inato no ente humano, coisa que pode-se verificar tanto empiricamente quanto racionalmente. Mas porque a imperfeição é inata assim como a perfeição? porque a ideia de perfeição é um atributo de Deus? e não somente divino?

Abraços e ótimo site!

R. Oleniski disse...

Olá!

Veja, a primeira coisa que se deve fazer para entender Descartes é se pôr na experiência filosófica das meditações seguindo seus passos.

Na terceira meditação Descartes chega a um empasse. Uma vez que o sujeito se conhece a si mesmo como um ser pensante, ao mesmo tempo, vê-se como solitário, já que a realidade do mundo externo fôra tomada como duvidosa nas meditações precedentes.

É o solipsismo. Então não há outros sujeitos nesse momento, só o sujeito pensante que faz o caminho das meditações.

A questão é encontrar um modo de sair do solipsismo e retomar o mundo externo.

Como no solipsismo as idéias e percepções podem ter origem no próprio ser pensante, então tudo pode ser mera projeção do sujeito. Não adianta buscar nada no empírico, pois este é duvidoso, segundo as meditações precedentes.

Todo e qualquer apelo aos sentidos está, de antemão, proibido. Assim como toda a percepção do limitado que vem dos sentidos.

Só há o ser pensante e esse ser pensante sabe que erra e se erra, sabe que é limitado, que falha, que é imperfeito.

A única evidência de imperfeição que o ser pensante tem é a que vem do erro, do engano.

Ora, mas se algo é imperfeito, o é somente em relação ao que é perfeito. É preciso ter a idéia da perfeição para se saber o que é a imperfeição, sendo esta a negação pura daquela.

Não se poderia dizer que uma cadeira é defeituosa, imperfeita, se não tivéssemos visto antes uma cadeira perfeita.

A perfeição é, pois, anterior à imperfeição. Não concebemos o perfeito por causa do imperfeito, mas o imperfeito por causa do perfeito. De novo, a perfeição é anterior ao imperfeito que é sua negação.

Agora, se o perfeito é anterior logicamente ao imperfeito, de onde viria ao sujeito pensante a idéia de perfeição pela qual ele julga a si mesmo como imperfeito?

Não pode vir dele mesmo, já que ele depende dessa idéia para entender a si mesmo como imperfeito.

A perfeição é ontológica e logicamente anterior à imperfeição. Mas se o ser pensante não pode ser a fonte da idéia da perfeição, já que ele mesmo é imperfeito e só pode saber-se imperfeito graças a uma idéia daquilo que ele não é, então essa idéia tem de vir de fora.

Só pode vir de um ser perfeito, pois do contrário, se viesse de um ser imperfeito, o problema se repetiria.

E ela não pode ter vindo do nada.

Logo, só um ser perfeito pode ser origem da idéa de perfeição. O ser perfeito é Deus, logo Deus é a origem dessa idéia.

A idéia de perfeição não é um atributo de Deus. A idéia de perfeição é causada no ser pensante por Deus e corresponde à natureza d' Ele.

Espero ter esclarecido.

Abs

Anônimo disse...

Essa ideia do perfeito 'vem a nos' pelo fato do polo dos contrários, isto e, perfeito-imperfeito? pois se não, não consigo ver o imperfeito como algo necessário com o perfeito. (mas pode ser minha burrice, mas ai e outra historia)

R. Oleniski disse...

O ponto é que, para Descartes, e isso é crucial, a idéia de perfeição não nos vêm somente pelo fato de pares de opostos.

Imperfeito não é a simples negação do perfeito. A afirmação de Descartes é mais forte que isso.

O que ele afirma é que a idéia de perfeição não poderia ser produzida pela própria mente humana e nem fruto de mera negação ao estilo pares de opostos.

E qual a razão disso? É que o homem só se vê como imperfeito porque se compara a uma instância de perfeição. Ele só se sabe imperfeito porque já tem em si mesmo, nas sua mente, não produzida por ele mesmo, a idéia de perfeição.

A idéia de perfeição é ontologicamente anterior à idéia de imperfeição e esta é medida por aquela e não o contrário.

Não conhecemos o imperfeito e , depois, por mera oposição, chegamos à idéia de perfeição. Não.

Chegamos à idéia de imperfeição porque já temos dentro de nós a de perfeição.

A perfeição é ontologicamente superior, é mais ser do que a imperfeição que é, no fundo, só ausência, privação.

O imperfeito é a privação do perfeito e é por isso que o perfeito é anterior ao imperfeito.

A propria polaridade de opostos perfeito/imperfeito só é possível por causa da anterioridade ontológica da perfeição.

Essa polaridade de opostos não significa uma equalização de valor, ou seja, não significa que ambos sejam ou tenham a mesma consistência ontológica.

Na perfeição tem-se o ser, aquilo que é. Na imperfeição, negação da perfeição, temos somente uma negação. O que é negado não é, não tem ser e só pode se referir a algo que tenha ser.

O imperfeito só pode ser pensado por conta do perfeito, "à reboque" do perfeito.

Eis a razão pela qual a perfeição é ontologicamente anterior à imperfeição.

Por conseguinte, para Descartes, a idéia de perfeição não pode estar num sujeito limitado a não ser que tenha sido dada a ele por um ser perfeito.

Unknown disse...

Descartes de refere a mente racional, e se o mundo pelo qual conhecemos fosse produzido pela mente subconsciente assim ela ja teria implantado em nossa mente consciente uma ideia do perfeito! Logo a ideia do perfeito viria de dentro! Subconsciente/perfeito, consciente/imperfeito.