segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

O ser humano segundo o Advaita Vedānta

"Porque sou também o Um, o Sutil, o Conhecedor, a Testemunha, o Eterno e o Imutável, então não resta dúvida de que Eu sou 'Isso' (Brahman). Tal é essa instrução."

ĀDI ŚANKARACARYA, Aparokṣānubhūti, 16

O curto tratado Vedānta-Sara, cuja autoria é atribuída ao acharya (mestre) Sadananda Yogendra Saraswati (século XVI D.C.), é um dos textos clássicos da escola ortodoxa hindu Advaita Vedānta (não-dual) cujo maior representante é o mestre Śrī Ādi Śaṅkarācārya (XVIII-IX séculos D.C.). O livro versa sobre a composição do ser humano, os meios para a libertação (Mokṣa), e a natureza da realidade. A sua parte introdutória é dedicada a esclarecimentos preliminares e às qualificações necessárias ao discípulo.

Vedānta significa literalmente o "fim dos Vedas", isto é, a realização e encerramento dos textos sagrados primordiais do Hinduísmo, e refere-se usualmente aos Upaniṣads. Os quatro Vedas, os Upaniṣads e alguns outros textos (brāhmaṇas, āraṇyakas) constituem a Śruti, o cânone central e definidor da doutrina ortodoxa (Āstika) hindu. A escola Advaita aceita integralmente a autoridade incontestável da Śruti, e considera o Vedānta como pramāṇa, um meio ou modo correto de conhecimento.

Os pramāṇas reconhecidos pelo Advaita são pratyakṣa (percepção)anumāna (inferência), upamāna (analogia)arthāpatti (presunção)anupalabdhi (não-apreensão) śabda (palavra, testemunho), no qual é alocado o Vedānta. O scholar indiano T.M.P. Mahadevan, aluno e discípulo do grande Surendranath Dasgupta, resume no seu livro The Philosophy of Advaita a posição dessa escola:

"Para o Advaita a corte final de apelação é o testemunho do Vedānta. Śruti é superior em validade aos outros pramāṇas como a percepção e a inferência. Com relação àquilo que é sensível, contudo, a perceção, etc, podem funcionar validamente. Mesmo mil injunções das escrituras não podem converter um pote em um pedaço de pano. Mas naquilo que é suprassensível a Śruti é suprema." (p. 62, tradução minha)

O estudante qualificado (pramātā) do Vedānta é aquele que, seguindo as regras prescritas pela via do Brahmacarya*, estudou profundamente os Vedas, evitou celebrar os ritos com objetivos mundanos, absteve-se das ações proibidas (Niṣiddha Karma), realizou os ritos diários obrigatórios e nas ocasiões especiais, e adotou as quatro Sādhanās: desapego (Vairāgya), discriminação (Viveka), anseio pela libertação (Mumuksutva) e o conjunto das seis virtudes: a imperturbabilidade (Śama), o autocontrole (Dama), o afastamento das coisas sensíveis (Uparati), a paciência (Titikṣā), a fé na autoridade dos Vedas (Śraddhā) e a concentração da mente (Samādhāna).

O último requisito é ser discípulo de um Guru, um mestre espiritual versado nos Vedas e que vive em Brahman. Tendo determinado a qualificação necessária ao estudante, Sadānanda passa a expor a estrutura da realidade e do ser humano enquanto parte dela. Ele inicia dizendo que a superimposição (Adhyāropa ou Adhyāsa) acontece quando algo falso é sobreposto ao verdadeiro, como no caso do homem que confunde uma corda enrolada com uma cobra. 

A corda confundida com a corda é um tropo característico do Advaita, utilizado para ilustrar a relativa inexistência do mundo fenomênico face a Brahman, o único merecedor do nome de existente. É claro que a ilusão da cobra tem alguma existência, ainda que tênue e precária, pois não se trata do Nada puro e simples. Mas a ilusão existe na dependência absoluta de algo que não é ela mesma, e desaparece tão logo reconhecemos a realidade da corda. 

Analogamente, ao reconhecermos a realidade de Brahman, a ilusão (relativa) do mundo fenomênico é desfeita. No Avadhūta Gītā, outro texto venerável da tradição Advaita, atribuído a Dattātreya, ilustra esse ponto por meio de uma analogia diferente: "Quando o pote é quebrado, o espaço dentro dele é absorvido no espaço infinito e se torna indiferenciado. Quando a mente se torna pura, não percebo qualquer diferença entre a mente e o Ser Supremo." (cap. 1, 31)

Esclarecido o sentido de Adhyāsa, a superimposição do falso sobre o verdadeiro, Sadānanda diz que a realidade é Brahman, o "Um sem segundo" (Advitīya), "Existência-Consciência-Beatitude" (Satcitānanda). A irrealidade é a ignorância (Avidyā). O mundo fenomênico, com toda a sua multiplicidade, é a imposição da limitação (Upādhi) sobre o ilimitado. Brahman não tem um segundo porque se houvesse um outro no mesmo nível que ele, necessariamente um limitaria o outro. Em outros termos, Brahman é o Absoluto, o infinito, o ilimitado.**

Śaṅkarācārya, no verso 16 de seu tratado Aparokṣānubhūti, diz que "eu também sou o Um, o Sutil, o Conhecedor, a Testemunha, o Eterno e o Imutável, então não resta dúvida de que Eu sou 'Isso' (Brahman). Tal é essa instrução". No verso seguinte (17), o mestre complementa: "Ātman é verdadeiramente um e sem partes, enquanto o corpo consiste em muitas partes. Ainda assim, os ignorantes confundem esses dois como se fossem um. O que mais pode ser chamado ignorância senão isso?". 

Eis o ponto fulcral do Advaita: a identidade não-dual entre Brahman Ātman. Ātman, por vezes traduzido como "Eu", "Si" ou "Alma", é a pura consciência, una, eterna, não identificada com o composto psicofísico, seja o corpo sutil ou o corpo grosseiro ou com qualquer limitação que seja. É a luz que consiste na manifestação de todos os objetos, a Testemunha de todos os atos, o verdadeiro Eu livre de todas as limitações acessórias.

Māyā (medida, ilusão, truque, magia), o mundo fenomênico, é incompreensível (Anirvacanīya), não possui começo ou fim no tempo, é o mistério fundamental da manifestação, do "vir à existência" (Prādurbhāva) das coisas. É chamado ignorância porque, quando o sábio compreende que só Brahman é real, tudo o mais desvanece tal qual o desconhecimento some quando o conhecimento acontece. 

Brahman Nirguna é o Absoluto tomado em si mesmo, sem nenhuma das três gunas, as manifestações qualitativas primárias: sattva (serenidade), rajas (ação) e tamas (inércia). Brahman é Saguṇa quando obnubilado pelas gunas que compõem as coisas isoladamente ou em diversas proporções. O Princípio a partir do qual nascerão todos os entes é Īśvara, o Senhor, o onisciente, o indiferenciado, o guia interno, o controlador de tudo. Īśvara é Brahman encarado a partir do ponto de vista do mundo, enquanto causa de tudo. 

Essa distinção não é estranha ao pensamento filosófico ou teológico no Ocidente. Īśvara corresponderia a Deus, o Absoluto visto a partir da relação de dependência ontológica que os entes contingentes estabelecem com Ele. Assim, Deus é a primeira limitação (Upādhi) na medida em que o Absoluto aparece sob o prisma da relação de causalidade. Contudo, por trás do véu das coisas está a Realidade Última, o Absoluto tomado em Si mesmo, sem relação com nada, indizível, incognoscível, incompreensível, sobre o qual só podemos falar negativamente (Nirguna, Amūrtaḥ, Neti Neti, etc.).***

Swami Nikhlananda comenta que "o Vedāntista não crê que Īśvara seja a existência absoluta porque ele é tão irreal quanto o universo fenomênico. Brahman associado à ignorância é conhecido como Īśvara. A diferença entre Īśvara e o homem ordinário é que o primeiro, embora associado à Māyā, não está preso às suas cadeias, ao passo que o segundo é seu escravo. Īśvara é a mais excelsa manifestação de Brahman no universo fenomênico."

Īśvara é puro sattva, e, em razão da beatitude (ānanda) que o caracteriza, recebe o nome de Ānandamayakośa, "o envoltório ditoso". Nele as coisas têm a sua origem e o seu retorno, no qual tudo é dissolvido e reabsorvido no "sono cósmico". A realidade fenomênica, assim como a vida do ser humano, apresenta três estados: Taijasa (vigília)Viśva (sono com sonhos) e Prajñā (sono sem sonhos). Na vigília, o homem experimenta o mundo grosseiro dos objetos físicos existentes extra mentis. No sono com sonhos, o mundo é sutil, constituído por objetos que só existem intra mentis, produzidos pela função onírica. 

O sono sem sonhos é descrito pelo Māṇḍūkya Upaniṣad nos seguintes termos:

"5.O estado de sono profundo é aquele em que o homem dorme e não deseja nada e não sonha. O terceiro estado é Prajñā, que tem o sono profundo como sua esfera e em quem tudo se torna indiferenciado, uma massa de sabedoria que abunda em bem-aventurança, experimenta a bem-aventurança e que é a porta para a experiência (dos estados anteriores)."

O homem, o microcosmo, repete analogamente em sua vida cotidiana a estrutura do mundo fenomênico, o macrocosmo. Outrossim, existe o movimento de contração no qual o homem acordado deixa o mundo externo ao se recolher no sono que, de início, é povoado por sonhos, mas que é ultrapassado pelo estado feliz no qual são dissolvidas tanto as impressões sensoriais externas quanto as quimeras da imaginação onírica. E, no sentido inverso, acontece o movimento de expansão, quando o homem passa da indistinção primordial à distinção sutil dos sonhos e, por fim, desperta para o universo da experiência grosseira dos corpos externos a ele.

Prajñā, no domínio macrocósmico, é tanto a origem quanto o retorno do mundo fenomênico. O caminho que vai de um ao outro pode ser encarado nos dois sentidos, seja subindo (ou contraindo) das franjas da realidade até seu Princípio, seja descendo (ou expandindo) do Princípio até às franjas da realidade. Acima dos três estados da manifestação cósmica existe um quarto, Turīya, que corresponde à Brahman Nirguna. Portanto, Turīya não pode ser considerado rigorosamente um estado, visto que se trata do Absoluto inqualificado.****

Semelhante correspondência encontra-se também entre os estados da realidade fenomênica e a sílaba sagrada OM, formada pelas letras A,U,M. Cada uma simboliza um estado da realidade, iniciando-se com A (Prajñā), passando por U (Taijasa) e encerrando com M (Viśva). Antecedendo a pronúncia das letras, e sucedendo-as, encontra-se o silêncio que representa a natureza inexprimível de Turīya. 

A ignorância tem os poderes de ocultamento e de projeção pelos quais uma nuvem que se posta à frente do Sol obnubila a sua visão. Este mundo de existência relativa (Saṃsāra) tem seu fundamento em Brahman da mesma forma que a ilusão da cobra tem seu fundamento na corda. A aranha é, a um só tempo, a causa eficiente e a causa material da teia que ela tece. Por um lado, a aranha é a causa eficiente, pois é ela que efetua a existência da teia. Também é sua causa material porque é de si mesma que a aranha tece a teia.

Īśvara, enquanto Princípio do mundo fenomênico, dá origem primeiramente ao éter (Ākāśa), no qual predomina tamas, a guna da inércia. O éter gera o ar, o fogo, a água e a terra, que são os elementos rudimentares (tanmātras) e incompostos que entrarão na composição de todas as coisas sutis e grosseiras. Note-se en passant que na cosmologia vedantina, assim como na tradição platônico-aristotélica ocidental, os constituintes elementares de tudo neste mundo são de natureza qualitativa, e não quantitativa segundo é defendido em correntes materialistas.

O corpo sutil (Linga-Śarīra) é formado por dezessete componentes: intelecto, mente, cinco órgãos dos sentidos, cinco órgãos de ação e cinco forças vitais. O intelecto (Buddhi) é um aspecto do âmbito mental ou instrumento interno (Antaḥkaraṇa), junto com o ego (Ahaṃkāra), mente (Manas) e memória (Citta). Buddhi determina a real natureza de um objeto, sendo a parte mais alta de Antaḥkaraṇa, e da qual provém Ahaṃkāra, a egoidade (o prefixo aham significa "eu"). Manas é a sede do pensamento e da vontade, é cambiante, oscila entre prós e contras, não determina com certeza o que é o objeto, e comanda o corpo grosseiro.

Os cinco órgãos dos sentidos são a visão, a audição, o paladar, o tato e o olfato. Cumpre notar que o termo "órgão" não se refere às partes do corpo físico como os ouvidos, os olhos, o nariz, etc. Antes, trata-se, por assim dizer, dos "poderes", das "faculdades" ou dos "princípios" a partir dos quais os respectivos órgãos físicos operam concretamente nas suas relações com o mundo externo grosseiro. 

Buddhi e Ahaṃkāra associados aos cinco órgãos dos sentidos formam Vijñānamayakośa, o "envoltório cognoscente". Cônscio de sua natureza de agente, de desfrutador da realidade fenomênica, e de seu estado de felicidade ou de infelicidade, Vijñānamayakośa é identificado ao Jīva (eu individual) submetido à transmigração. 

Manas associada aos cinco órgãos dos sentidos é chamada Manomayakośa, o "envoltório mental", sede da mente, da vontade, dos sentimentos e das emoções. O termo sânscrito Manas está ligado à mens no Latim, à mind no inglês, etc. É o que distingue o ser humano (Manuṣya) enquanto espécie dos outros animais. Desenvolve-se junto com o corpo grosseiro, e é abandonado antes do renascimento.

Os cinco órgãos de ação junto com as cinco forças vitais formam Prāṇamayakośa, o "envoltório vital" que se desfaz junto com o corpo grosseiro no evento da morte. As mãos, os pés, a voz, a excreção e a reprodução perfazem os órgãos de ação. As cinco forças vitais (vāyus, "ares", "ventos", "sopros") são Prāṇa (ascensional, sediada na ponta do nariz), Apāna (descensional, sediada no órgão excretor), Vyāna (pervade o corpo inteiro em todas as direções), Udāna (ascensional, sediada na garganta) e Samāna (assimila os alimentos, sediada no meio do corpo). 

Vijñānamayakośa é o agente, Manomayakośa é o instrumento, e Prāṇamayakośa, dotado de atividade, é o resultado. Os três envoltórios formam o corpo sutil (Linga-Śarīra), e este corresponde ao sono com sonhos (Taijasa) no indivíduo, e a Hiraṇyagarbha ("útero dourado") no nível cósmico. Em ambos, os poderes correspondentes já estão distintos uns dos outros e ordenados, mas permanecem em estado potencial, ainda não se efetivaram no mundo grosseiro. A imagem do útero remete ao embrião, aquele que em algum momento nascerá. 

O corpo grosseiro (Sthūla-Śarīra) é fruto da composição dos cinco elementos (éter, água, terra, fogo e ar) segundo a razão de metade de cada elemento somado a um oitavo de cada um dos outros quatro. Trata-se do corpo fisicamente considerado, com todas as suas funções atualizadas e operando segundo sua natureza. É chamado Annamayakoṣa, "envoltório alimentar", e corresponde à vigília (Viśva) no âmbito do indivíduo, e a Virāṭ no nível cósmico. O homem físico vive no mundo físico, onde desfruta concretamente dos entes grosseiros como ele.

Brahman -  Absoluto - Turīya 
Ānandamayakośa - Īśvara - Prajñā (sono sem sonhos)
Vijñānamayakośa - corpo sutil - Taijasa (sono com sonhos)
Manomayakośa - corpo sutil - Taijasa (sono com sonhos)
Prāṇamayakośa - corpo sutil - Taijasa (sono com sonhos)
Annamayakoṣa - corpo grosseiro - Viśva (vigília)
...
** A negação do "segundo" é a negação da multiplicidade. Se Brahman fosse somente o primeiro, poder-se-ia pensar que haveria um segundo, um terceiro, um quarto, etc.
*** Na tradição ocidental essa forma de se referir ao Absoluto denomina-se teologia negativa ou apofatismo. Vide: Νεκρομαντεῖον: Dionísio Areopagita, teologia catafática e teologia apofática

Um comentário:

Maurício Santos disse...

Muito bom o texto sempre tem algo bom aqui " Brahma é meu corpo e minha alma"