Os indivíduos de uma espécie como a do homem são gerados por outros homens numa cadeia que não pode seguir ad infinitum. Se é da essência dos membros de uma espécie que cada indivíduo receba de outro o seu ser, então nenhum deles possuirá em si mesmo o ser absolutamente, e nem a própria espécie, dado que esta só opera mediante os indivíduos. O poder de existir que não reside na espécie e nem nos indivíduos, portanto, tem de vir de outro que não pertence à espécie.
Se a causa fora da espécie for um ente que dependente de outros para vir a ser, o problema anterior se mantém. A única solução é que tal ente não se origine de outro, seja uma causa absolutamente independente e incriada. Em outros termos, que ela seja o ente a se. O argumento de Suarez aqui apresentado, ensina Mário Ferreira, pode ser traduzido na seguinte fórmula matética:
"Um ser no contexto beta, que é, portanto, um ser ab alio, necessariamente provirá de outro, e assim a série; mas esta, por sua vez, não pode provir do nada, por este ser impossível; não pode provir de si mesma, porque então seria um ser a se, quando é um ser ab alio, e terá necessariamente de provir de outro".
O ente a se, exatamente pelo fato de existir necessariamente, não pode ser senão um singular, e, portanto, irrepetível. Se houvesse dois entes a se, um seria limitado pelo outro, o que entraria em contradição com a infinitude do ente a se. Também é impossível conceber o Ser Supremo como um universal, pois este é repetível em muitos. O singular finito também é irrepetível, porém não se pode dizer que a essência incriada do ente a se seja da mesma espécie da essência criada do ente ab alio. O primeiro tem seu ser por si, sem carência de produção, enquanto o segundo carece da produção por outro.
A unidade absoluta do Ser Supremo não contradiz o dogma cristão da Trindade que afirma haver três pessoas numa única natureza divina? Mário Ferreira responde que as três pessoas são papéis que não podem ser essencialmente distintos. A pessoa não é uma essência própria e distinta, mas é algo de algo. No ser humano, a pessoa, caracterizada pela consciência de si mesmo e pela consciência de sua responsabilidade, é produto do entendimento.
A personalidade, afirma o filósofo, é "o papel que o homem representa, cônscio da sua responsabilidade e de seu dever". A não pode ser uma essência própria, sob pena de haver em nós duas entidades distintas. De modo análogo, em Deus as pessoas não são essencialmente distintas da unicidade da natureza divina. As processões ad intra, as ações do entendimento e da vontade divinas, decorrem necessariamente de sua natureza, e não são coagidas por nenhum poder externo.
Mário Ferreira traz novamente à discussão as teses de Suarez para retomar a questão do universal. O singular exclui a existência em muitos em razão da diferença individual. Pedro só pode ser o indivíduo Pedro, e jamais haverá uma "pedreidade" que possa ser compartilhada por outros indivíduos. Uma natureza na realidade não pode abstrair-se por si mesma de seus indivíduos, nem existe anteriormente a eles.
Suarez afirma que para que uma natureza seja repetida nos indivíduos (para que esteja em muitos e seja predicada de muitos) é necessário somente que nos indivíduos não haja nada que contradiga a repetição. Para que João e Pedro tenham a mesma natureza humana, é mister somente que em João e Pedro não haja nada que impeça a sua repetição em ambos. Assim, Suarez rejeita qualquer realismo ante rem, isto é, qualquer realidade dos universais anterior à existência dos indivíduos nos quais a natureza comum é repetida.
Os singulares não são repetíveis, porém isso não impede que a lei de proporcionalidade intrínseca, a natureza comum, esteja presente em cada um deles determinando o tipo de ser que eles são. Mário Ferreira dá o exemplo de um modelo de carro que está presente em cada carro produzido. Para que a repetição aconteça, basta que não haja nada nos carros individuais que entre em contradição com o modelo a ser aplicado. Tudo o que não é contraditório é possível.
O modelo, por sua vez, estava na mente do seu inventor e era um possível de realizar-se no mundo. Nesse sentido, trata-se de uma forma ante rem que pertence desde sempre à ordem do Ser. Os possíveis do Ser são os pensamentos de uma mente suprema. Deus sabe desde sempre tudo o que é possível de ser realizado, mesmo que nem todos os possíveis se realizem.
Mário Ferreira confirma aqui a Tese 156 da Filosofia Concreta na qual é dito que "os possíveis estão contidos no poder do Ser infinito". Negar essa tese implicaria afirmar o absurdo de que os possíveis estariam no nada. Em Deus, o possível é um "esquema eidético, a forma (eidos) de um ser possível de realizar-se". O eidos que está na infinitude de Deus desde sempre e para sempre, o ente ante rem, torna-se finito no ser concreto e singular. A efetivação de um possível na existência corresponde à singularização e à finitização do esquema eidético contido na mente divina.
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