quinta-feira, 1 de abril de 2021

Curto comentário sobre o simbolismo da sarça ardente


"E disse D'us a Moisés: EU SOU O QUE SOU. Disse mais: Assim dirás aos filhos de Israel: EU SOU me enviou a vós."  

ÊXODO, 3:14

"A árvore representa - e isso de uma maneira seja ritual e concreta, seja mítica e cosmológica, e ainda puramente simbólica - o Cosmos vivente, se regenerando sem cessar. A vida inesgotável sendo um equivalente da imortalidade, a árvore-Cosmos pode, por esse fato, se tornar, em um outro nível, a árvore da 'vida-sem-morte'. A mesma vida inesgotável sendo na ontologia arcaica a tradução da ideia de realidade absoluta, a árvore aí se torna o símbolo dessa realidade ('o centro do mundo')."

MIRCEA ELIADE, Traité d'histoire des religions, p. 231 (tradução minha, itálicos no original)

A vegetação em geral, e a árvore em particular, como apontou Mircea Eliade no seu tratado de história das religiões, simboliza a força vital que se renova periodicamente. A árvore morre no inverno e renasce na primavera. Ela representa simbolicamente o Absoluto enquanto poder que permanece intacto, e que serve de fundamento para a manifestação das coisas.

Em diversos cultos de renovação cíclica, há a cerimônia da cremação da árvore ou do arbusto sagrado. Queima-se a árvore para simbolizar o fim de um ciclo e para possibilitar e marcar o início de um novo ciclo regido por uma nova árvore sagrada. Obviamente, a morte ritual da árvore sagrada é análoga ao sacrifício divino primordial presente em tantos mitos cosmogônicos, como aquele de Purusha no Rig Veda.

No livro do Êxodo, Moisés, pastoreando no monte Horeb, encontra uma sarça ardente. Ela queima, mas, ao contrário das árvores sagradas dos cultos cíclicos, ela não se consome, e permanece a mesma. Ela nega o ciclo, a morte e o renascimento. Moisés está diante de algo inaudito, não tanto por seu caráter miraculoso, mas por seu significado simbólico: ali está uma divindade que não representa o ciclo interminável da vida. 

Esse deus está vivo, sem dúvida, mas não como um processo sempre repetido, a imagem mais próxima do infinito que o homem conhecia. Ele queima como a árvore sagrada, mas não se consome. Está acima do ciclo. Não sofre as vicissitudes da vida orgânica. Ele é a perpetuidade sem ciclo, a vida sem a morte. O Ser que está no fundamento de tudo, e que não participa das vicissitudes e fragilidades dos seres. Ele simplesmente é.

A hierofania da sarça ardente instaura um temenos (τέμενος), um lugar separado, sagrado. Moisés não pode adentrar e ali permanecer com os modos e os usos dos lugares profanos. O Senhor o insta a retirar suas sandálias, pois aquele era um lugar santo. O texto bíblico explicita claramente o fenômeno da distinção entre o lugar sagrado e o lugar profano. No lugar sagrado manifesta-se a superabundância do Ser, a Realidade no seu sentido mais próprio.

Em contrapartida, o lugar profano apresenta um caráter menos real, deficiente de Ser, justamente por não ser o locus da manifestação divina. O pastoreio é uma atividade profana, e, simbolicamente, representa o nomadismo que não reconhece limites ou fronteiras. Moisés, o pastor, aprende que há no mundo limites definidos e lugares ontologicamente mais reais que outros. 

O gesto de tirar as sandálias significa o reconhecimento de uma barreira intransponível entre o profano e o sagrado. É mister não trazer para o lugar santo aquilo que remete à atividade profana. Descalço, Moisés está simbolicamente desprotegido, toca com os pés nus o solo sagrado, está ligado imediatamente ao Ser. 

O monte Horeb, diz o texto bíblico, é a morada de Deus, e, portanto, é simbolicamente o centro do mundo. Moisés a ele chega após ter cruzado o deserto, símbolo aqui de vazio e de ausência divina. No monte, Moisés ouve a voz do anjo do Senhor saindo do meio da sarça ardente. Ele exige que Moisés tire suas sandálias e se identifica como o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó. O sagrado sempre instaura uma imitação dos gestos paradigmáticos dos deuses ou, no caso, dos antepassados. Moisés seguirá o mesmo deus dos seus ancestrais.

O encontro com o sagrado é acompanhado da missão, isto é, de um sentido determinado para a vida. Assim, Deus ordena a Moisés que liberte seu povo do jugo do Egito. Essa libertação tem um sentido literal e um sentido simbólico. A libertação do Egito é o abandono das cadeias que prendem o homem ao mundo profano, ao Não-Ser. Só quem testemunhou o Ser pode conduzir os outros da escuridão do Não-Ser à luminosidade ofuscante do Ser.

Tomás de Aquino, na Suma Teológica, discutindo a questão dos nomes de Deus, afirma que "AQUELE QUE É" é o nome mais propriamente atribuível a Deus. E o filósofo fornece três razões para tal. Primeiramente, o termo significa o Ser em si mesmo, e não qualquer forma particular. Pois Deus não possui uma essência diversa de sua existência, como acontece com os outros seres. O cavalo existe, tem ser, mas o seu ser é limitado por uma essência determinada, a "cavalidade". O ser de Deus, contudo, é pura existência, sem nenhuma limitação.

Em segundo lugar, o termo é o mais universal possível. Quanto menos determinado é um termo, mais universal ele é. Como Deus não se encontra em nenhum gênero, somente o termo mais universal e, por conseguinte, menos determinado, cabe para designar a realidade absoluta de Deus. Em terceiro lugar, por estar no tempo presente, o que está de acordo com a imutabilidade divina.

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Νεκρομαντεῖον: Mircea Eliade (oleniski.blogspot.com)

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