sexta-feira, 19 de março de 2021

Princípio, causalidade e razão suficiente na "Sabedoria dos Princípios" (capítulos XVIII a XXII)

"O princípio da razão suficiente permite que o enunciemos deste modo: o que quer que seja que existe, ou pode ser entendido, tem de ter, intrínseca ou extrinsecamente, em sua emergência ou em sua predisponência, parcial ou totalmente, uma razão suficiente de sua essência, de sua existência e também de sua inteligibilidade."

MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS, Sabedoria dos Princípios, p. 127 (itálicos no original)

No capítulo XVIII de sua obra Sabedoria dos Princípios o filósofo brasileiro Mário Ferreira dos Santos retoma o tema da diferença entre princípio e causa. A causa é um princípio, mas nem todo princípio é uma causa. A causa é aquilo que dá o ser a outrem de forma ativa e o princípio é aquilo a partir de onde a coisa inicia. A causa é o princípio que ativamente dá o ser a algo, o princípio é aquilo de onde alguma coisa começou a ser o que é na sua ordem. O princípio é o extremo inicial de uma coisa.

Os entes finitos têm todos um início, uma duração e um fim. Contudo, do ponto de vista do puro ser, não há contradição em se pensar em uma duração sem fim, pois o eidos da duração é simplesmente permanecer no ser. A cessação da duração é, portanto, algo acidental ao ser. O logos da duração é especificamente diferente do logos da cessação, e este não está contido necessariamente naquele. O cessar é algo que acontece ao ser, não algo que seja intrínseco a ele.

Há três aspectos relevantes no que tange aos princípios: o que denominamos como princípio, a relação estabelecida entre princípio e principiado e o fundamento dessa relação estabelecida. O princípio é uma relação, um logos entre principiado e princípio. Tudo o que é possui um princípio, o que difere da afirmação de que tudo tem uma causa. Ter um princípio não é necessariamente ter uma causa. Causa é o princípio que infunde ser a outrem. Por isso, o princípio da razão suficiente não é idêntico ao princípio de causalidade.

O princípio é sempre razão suficiente daquilo que de que é o princípio, mas nem sempre é a causa da qual é o o princípio. O exemplo que ilustra bem essa diferença é dado pelo filósofo brasileiro: o ponto é princípio da linha, mas não é a sua causa. O ponto é de onde principia a linha, mas não é a causa da linha, não infunde por si mesmo o ser na linha para que ela exista. O ponto pode ser princípio do fim de uma linha, encerrando-a. Ainda assim, o ponto não será causa da linha.

Nos capítulos XIX, XX e XXI, Mário Ferreira apresenta conceitos que serão instrumentos importantes para os estudos matéticos. A implicação significa uma relação na qual um termo está, material ou formalmente, em outro. A pertinência significa que o hábito de algo ser de algo, e a subordinação significa que há uma relação de ordem entre espécie e gênero. A exclusão é a independência de um termo de outro, e a oposição pode ser contraditória se opõe ser ao não-ser, e contrária se opõe ser a outro ser.

O sinal é aquilo pelo qual algo se realiza na cogitação de outro. O sinal pode ser natural, quando há nexo natural entre a coisa sinalizada e o sinal (onde há fumaça, há fogo), convencional, quando o nexo natural está ausente, manifestativo, quando o sinal manifesta a existência de algo (o gemido manifesta a dor), supositivo, quando supõe a coisa (as chaves supõem a cidade). A perfeição é o que não se pode conceber mais nada em sua quididade, a plena atualização das suas possibilidades. A perfeição, assim como as propriedades, quando tomada formalmente, não é divisível, embora, quando tomada concretamente, admite graus.

No capítulo XXII, Mário Ferreira retorna ao tema da causalidade. Causa e efeito, tomados logicamente, são uma relação. Tomados ontologicamente, o efeito depende da causa para ser o que é, e ônticamente, causa e efeito são papéis desempenhados por esta coisa com relação àquela outra em uma situação determinada e concreta. 

A causa é anterior ontologicamente a seu efeito, o que não significa que o efeito não possa prosseguir após a desaparição da causa. A dependência do efeito com relação à causa se dá no momento em que o efeito surge. Não há ação sem término, e o término de uma ação é o efeito da causa agente. A ação do agente é sua causalidade, mas a sua ação realiza-se no efeito. 

A ação do agente não modifica intrinsecamente o agente. A causa precisa necessariamente ter virtude ativa suficiente, é mister haver um paciente sobre o qual ela opera, um médium para obrar, que não haja impedimento, que o paciente já não seja aquilo que o agente irá produzir, que agente e efeito sejam diferentes, que não haja indiferença no operar, que a causa não seja livre.

Há agentes livres e agentes naturais. Para os primeiros, a ação será para potências opostas ou contrárias, enquanto que nas segundas a ação será unicamente para um dos opostos. Necessária é a ação que não pode não se dar. Em nós, a faculdade ativa não está determinada a uma ação apenas, podendo operar isto ou aquilo indiferentemente, e pode mesmo não operar.

Alguns comentários: o que vai acima significa que a causa de algo deve ser anterior ao efeito, mas nem sempre de modo temporal. A causa não precisa vir temporalmente antes do efeito, pois há causalidade simultânea, como no caso do pássaro que enverga o galho no qual está postado. Por outro lado, os efeitos podem permanecer mesmo quando a causa não mais está agindo, como a forma de um carimbo permanece na cêra em que foi impresso. O que é necessário é que haja uma dependência do efeito para a causa no momento em que este infunde sua ação naquele. A bola pode continuar rolando depois de chutada pelo jogador, mas é necessário que haja contato entre o pé do jogador e a bola, ainda que seja mínimo.

A ação do agente é transitiva, isto é, transita dele para o efeito sem modificar o próprio agente. O jogador chuta a bola sem mudar sua própria natureza de jogador. O máximo que se pode dizer é que o jogador atualizou uma de suas potencialidades ao chutar a bola, o que não implica qualquer mudança substancial nele. O agente não se torna substancialmente outro ao agir na produção transitiva de um efeito.

O agente tem de possuir em si mesmo a capacidade necessária para causar aquele efeito determinado. Caso contrário, seria necessário admitir que o efeito veio do nada, o que é absurdo. O que age, age sobre algo, pois não havendo aquilo sobre o que agir, não haverá ação. É preciso que haja um médium entre agente e efeito, isto é, um meio que comunique a ação do agente ao efeito. Uma ação completamente à distância, sem nenhum meio que comunique a virtude da ação seria impossível. 

É necessário para que a ação se dê que não haja nenhum obstáculo ou impedimento que impeça a ação. O efeito não pode já existir para que seja gerado pelo agente. Aquilo que já foi feito, aquilo que já é, não pode ser feito naquela mesma situação pelo mesmo agente. Não se constrói um muro que já foi construído. Pode ser construído um outro, em outro momento, mas não aquele que já foi construído. Agente e efeito não podem ser exatamente o mesmo ente em todos os seus aspectos. 

Nos entes humanos, a causalidade é livre. Podemos ou não agir causalmente sobre algo. O ser humano pode atualizar quaisquer dos possíveis, um ou outro. A causa natural, ao contrário, só pode atualizar em uma direção definida, atua por necessidade. Portanto, não há liberdade nas causas naturais.

Ao final do capítulo, Mário Ferreira apresenta outros conceitos fundamentais da matética. A privação é a falta de uma forma, e só pode ser considerada um princípio por acidente, pois marca os limites da coisa. Ela não principia nada, somente marca o ponto onde a coisa termina. A violência é a qualidade que provém de um princípio externo, e a qualidade natural, por conseguinte, será aquela que provém de um princípio intrínseco da coisa.  

A ocasião é aquilo que induz a causa a agir, não sendo ela mesma uma causa. É o momento propício onde todas as condições estão dadas para a causa agir. A condição é uma causa permissiva que permite uma causa agir. Por exemplo, a luz solar é condição para que vejamos, muito embora não seja a causa de nossa visão. Estando ausente a luz solar, não conseguimos enxergar, apesar de termos ainda a capacidade da visão.

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Leia também as postagens anteriores da série sobre a "Sabedoria dos Princípios":

http://oleniski.blogspot.com/2021/02/platao-possibilidade-e-intuicao.html

http://oleniski.blogspot.com/2021/02/os-contextos-mateticos-na-sabedoria-dos.html

http://oleniski.blogspot.com/2021/02/matese-suarez-e-ciencia-na-sabedoria.html

https://oleniski.blogspot.com/2021/02/matese-aristoteles-tomas-de-aquino-e.html

http://oleniski.blogspot.com/2021/01/os-logoi-na-sabedoria-dos-principios.html

http://oleniski.blogspot.com/2020/12/mathesis-megisthe-na-sabedoria-dos.html

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