sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Platão, possibilidade e intuição apofântica na "Sabedoria dos Princípios" (capítulos XVI e XVII)

"Não vamos extrair a necessidade da possibilidade, enquanto possibilidade. Pode-se extrair o necessário do possível, quando este está fundado numa realidade, que não é mais um mero possível, cuja não existência seria absurda."

MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS, Sabedoria dos Princípios, p. 109

No início do capítulo XVI da Sabedoria dos Princípios, Mário Ferreira dos Santos realiza a demonstração da impossibilidade do Nada absoluto e da eternidade do Ser. Se o Nada é a absoluta ausência de todo e qualquer ser, então seria impossível o Ser nascer do Nada, pois o Ser teria que ser uma possibilidade dentro do Nada, o que é absurdo. A possibilidade de algo não é um nada, e o Nada nega toda e qualquer forma de Ser, ainda que somente possível.

Então, o mero fato de que há Ser exclui a possibilidade de haver o Nada, pois se há Ser, o Ser é possível e se o Nada  nega toda possibilidade, o Ser não se daria. Sempre há Ser, sempre há seres, quaisquer que eles sejam, pois o Nada é impossível. E a impossibilidade do Nada é absoluta, o que significa que jamais houve o Nada. O argumento pode ser sumarizado da seguinte forma: o Ser é, então é possível. O Nada nega toda possibilidade. Logo, o Nada não pode ter sido. 

Concluir-se-á do que vai acima que o Ser é necessário, não apenas possível. O possível pode ou não se concretizar, o necessário é aquilo que não pode deixar de ser. Dado que há Ser, sabemos que o Ser é possível, pois só se concretiza o que antes é possível. Se o Ser, por sua mera existência, já mostra que é possível, então o Nada, a negação absoluta de todo modo de ser, inclusive da possibilidade, não pode haver existido. À impossibilidade do Nada corresponde à necessidade do Ser. 

Se algo é real, o Ser era possível. Uma vez que o Nada é impossível, sabemos que o Ser é necessário. Essa é uma intuição apofântica, segundo Mário Ferreira. O mero fato de haver algum ser revela indiretamente que sempre houve algum ser. A necessidade do Ser é apontada como vestígio que está contido no mero fato de que há algum ser que, portanto, era possível. 

Cabem alguns comentários e esclarecimentos. Se há cadeira, algo há na realidade. Se a cadeira é real, inferimos que era possível. Sabemos que o Nada é a negação de qualquer ser, inclusive das possibilidades. A realidade da cadeira mostra que ela era possível, e que, sendo possível, isso já nega a possibilidade de ter havido o Nada, pois o Nada nega toda possibilidade. A cadeira, em si mesma, não contém a necessidade do Ser, mas aponta e sinaliza na sua direção. Intuir essa necessidade do Ser dentro de um ente que é meramente real é um exemplo do que Mário Ferreira chama de intuição apofântica.

Significa, então, que a cadeira necessariamente tinha que existir? Não, ela era meramente possível, e alguém a trouxe à realidade a fabricando. Poderia muito bem jamais ter existido essa cadeira. Mas o fato de que ela existe, aponta indiretamente para a necessidade do Ser. Sempre há ser, não importando quais seres se realizam ou não. O que é necessário é haver seres, não é necessário haver estes seres que há. Algo há, e se há, era possível. O possível nega o Nada absoluto. Logo, o Ser é necessário. O haver Ser é absoluto, os seres que há são contingentes.

O capítulo XVII inicia com a distinção básica entre o Ser e os seres. O conceito de Ser é confuso, pois fusiona em si todas as possibilidades de ser. Tudo o que é ser, qualquer tipo de ser, está incluído no conceito de Ser, que, por isso, é indeterminado quanto a seu conteúdo. Aquilo que é determinado possui determinações, limites, que encerram a natureza da coisa. Assim, uma cadeira é determinada porque possui um conjunto essencial de características que pode ser formulado em um conceito.

O que Mário Ferreira quer expressar nesse ponto é que o intelecto humano só concebe conceitualmente aquilo que possui limites e que, por conseguinte, pode ser formulado em um conceito. Cada coisa possui uma quididade (quid? "o quê?"), uma oqueidade, uma talidade, uma natureza própria. Tal coisa tem tais e tais características essenciais que a tornam o que ela é. Como visto anteriormente, uma coisa se distingue de outra justamente pelo fato de possuir algo que uma outra não possui e vice-versa. Cada ser tem uma natureza determinada, mas o Ser em geral não possui nenhuma determinação, pois engloba em si mesmo todas as determinações possíveis.

Cada ser é um ser na medida em que tem positividade, que é uma entitas, um ente. Aquilo que é ente não pode ser Nada. Ônticamente, cada coisa é um ente singular. Esta cadeira é esta cadeira, que é diferente daquela outra cadeira. O ôntico trata da singularidade das coisas, trata desta cadeira e não da cadeira em geral. Já o ontológico refere-se ao logos da coisa, à generalidade da coisa, o tipo de ser que este ente é (a cadeiridade da cadeira).

Retornando ao tema da possibilidade, Mário Ferreira trata da diferença entre as filosofias de Platão e de Aristóteles. Enquanto este parte do ser já dado, já realizado singularmente, aquele parte das possibilidades de ser. Esse tema já havia sido tratado em seu livro Platão: o um e o múltiplo, uma tradução comentada do diálogo Parmênides. Lá, o filósofo brasileiro afirma:

"Ora, o ser é a positividade do que é. Ser é a aptidão para existir, para dar-se. O nada não tem aptidão para existir. Neste caso, há entre todos os entes que são, entre todas as entidades, que são, um ser que em todas se univoca: é a presença, a positividade. São os modos de ser que distinguem uns dos outros, mas, em ser, todos se univocam. (...) A posição platônica, em face dos universais, é realista. As formas têm uma realidade, mas formal. E a realidade formal não se singulariza e nem se universaliza. É um modo de ser formal que pertence ao poder do ser. As formas são possíveis do ser, poderes do Ser, exemplares formais." (pag. 269, itálico no original)

E no segundo tomo da Filosofia Concreta, ele assevera no comentário à tese 133:

"Decorre apoditicamente das teses já demonstradas que ao Ser Supremo, que é atualidade pura, nenhuma perfeição pode-lhe faltar, pois, do contrário, haveria algum ser fora do ser, e em o nada, oque é absurdo pois toda a perfeição é positiva, como já se demonstrou. E se a perfeição possível fosse nele apenas uma possibilidade, não seria ele uma atualidade pura, o que também já foi demonstrado que é improcedente. Consequentemente, nele, todas as perfeições estão em ato, na plenitude do ato infinito, não naturalmente no ato finito de ser que é isto ou aquilo, pois ser isto ou aquilo, hic et nunc, é já um modo deficiente de ser. Temos aqui, fundado na dialética ontológica, o pensamento platônico em sua pureza, pois todas as perfeições arquetipicamente são absolutamente em ato, e o ser, que é isto ou aquilo, apenas o é por participação (metexis), ao imitar a perfeição absoluta (mimesis), o que nos revela a perfeita identidade de vistas entre o platonismo retamente compreendido com o pitagorismo também retamente entendido." (pag. 63, itálicos no original)

Isto é, a singularização de um ente neste mundo é uma imitação limitada de uma possibilidade inerente ao Ser. Essa possibilidade jamais se esgota, pois nunca se singulariza enquanto generalidade. Esta cadeira existe aqui e agora porque era possível, mas jamais a possibilidade de existir cadeiras será esgotada, não importa quantas cadeiras sejam feitas e nem se haverá quem as fabrique. Platão, segundo Mário Ferreira, entende as Ideias como "possíveis do Ser", possibilidades que jamais se esgotam ou se singularizam. 

Os entes singulares é que são exemplares e imitações dessas possibilidades inexauríveis e inesgotáveis do Ser. Mas nem tudo é possível. Impossível é o que é formalmente contraditório, como o triângulo quadrado. Ou bem a figura é triangular ou bem a figura é quadrada. As duas coisas ao mesmo tempo é impossível. Por essa razão, jamais existirá um triângulo quadrado na realidade. 

Mas nas possibilidades é mister distinguir entre aquelas que são intrínsecas e aquelas que são extrínsecas. A possibilidade intrínseca refere-se à ausência de contradição no conceito da coisa, e, portanto, é o índice da possibilidade intrínseca da coisa de se efetivar na realidade. A possibilidade extrínseca refere-se à existência de agentes capazes de trazer a coisa possível à realidade. A cadeira é possível intrinsecamente, mas é preciso que haja quem fabrique a cadeira. Estando ausente quem possa fazer a cadeira, ela não possuirá possibilidade extrínseca de existir na realidade, de singularizar-se no mundo. 

As coisas têm sistência (do latim, sistere), diz Mário Ferreira, na medida em que possuem positividade. A negatividade, consequentemente, é a ausência de sistência, e o Nada é a negação de toda e qualquer sistência. Os termos persistência, existência, consistência, entre outros, derivam de sistência. Os prefixos de sistência indicam modos de ser da positividade. A coisa persiste se perdura no ser, se permanece afirmando sua positividade. A coisa existe na medida em que possui a sistência fora (ek) de suas causas. O ser, portanto, é sistência.

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Leia também as postagens anteriores da série sobre a "Sabedoria dos Princípios":

http://oleniski.blogspot.com/2021/02/os-contextos-mateticos-na-sabedoria-dos.html

http://oleniski.blogspot.com/2021/02/matese-suarez-e-ciencia-na-sabedoria.html

https://oleniski.blogspot.com/2021/02/matese-aristoteles-tomas-de-aquino-e.html

http://oleniski.blogspot.com/2021/01/os-logoi-na-sabedoria-dos-principios.html

http://oleniski.blogspot.com/2020/12/mathesis-megisthe-na-sabedoria-dos.html

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