quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

Eihei Dogen, Taisen Deshimaru e o fundamento do Zen



"O Zen não pode ser contido em um conceito ou alcançado pelo pensamento. Precisa ser praticado. é, essencialmente, uma experiência. (...) Trata-se de alcançar, pela prática, a superação de todas as contradições, de todas as formas de pensamento."

TAISEN DESHIMARU, La Pratique du Zen, p.26 (tradução minha do original em francês)

"Aprender o Zen é encontrar a nós mesmos,
 Encontrar a nós mesmos é esquecer de nós mesmos,
 Esquecer de nós mesmos é encontrar a Natureza de Buddha,
 Nossa natureza original."

EIHEI DOGEN, apud TAISEN DESHIMARU, La Pratique du Zen, p.27

O mestre zen japonês Taisen Deshimaru (1914-1982), em seu livro La Pratique du Zen, a fim de esclarecer a essência do Zen budismo, conta uma significativa histórica da vida do patriarca japonês Eihi Dogen (1200-1253). Segundo Deshimaru, Dogen, aos vinte e quatro anos, viajara à China em busca das fontes originárias do Chan (Zen). Encontrara naquelas terras uma grande civilização, porém não o que buscava.

Quando já estava prestes a partir de volta ao Japão, Dogen encontra um monge muito idoso colocando cogumelos para secar em um dia calorento de verão. O jovem monge então pergunta ao idoso por qual razão estava ele fazendo aquele trabalho em um dia tão quente, dado que, sendo idoso, poderia solicitar aos monges mais novos que cumprissem aquela tarefa. Ademais, não seria melhor esperar um dia mais ameno para realizar tal trabalho?

O monge idoso respondeu dizendo que Dogen viera do Japão à China em busca do Zen e que parecia ser um bom jovem. No entanto, embora conhecesse o budismo, nada sabia acerca da essência do Zen. "Um outro não sou eu e eu não sou um outro. Um outro não pode fazer a experiência de minha ação. Se não pratico por mim mesmo, não posso compreender.", disse o ancião.

Surpreso com a resposta, Dogen indaga o monge por qual razão fazia aquele trabalho naquele dia tão quente. "Aqui e agora é muito importante", responde o monge. "Para secar os cogumelos, é mister que o dia esteja seco e quente. No dia seguinte pode chover e os cogumelos não estarão mais tão frescos. Não me atrapalhe mais. Se quiser conhecer o verdadeiro Zen, vá ver meu mestre, mestre Nyojo."

Dogen obedeceu, procurou o mestre Nyojo e este educou-o no Zen. Dogen aprendeu o verdadeiro Zen na prática do zazen, a meditação, e recebeu a permissão de seu mestre para ensinar quando retornasse ao Japão.  Segundo Deshimaru, toda a filosofia de Dogen resume-se a três fundamentos:

1. Concentrar-se no aqui e agora;
2. O outro não sou eu e eu não sou o outro;
3. Shikantaza: simplesmente sentar-se (em zazen).

Em uma passagem anterior, Taisen Deshimaru explica que "aqui e agora" significa que somente o presente importa. O passado e o futuro não existem, só o agora. É necessário estar presente inteiramente em cada um de nossos gestos, atos, palavras e pensamentos. Concentrar-se aqui e agora é o ensinamento do Zen.

A atenção a cada movimento e a cada gesto, Deshimaru ensina, evidencia-se, por exemplo, na esgrima japonesa (no kendo, no iaido, mas também nas artes marciais em geral) na postura de zanshin. "O zanshin é o espírito que permanece, sem apego, a mente que permanece vigilante. Cuida-se da ação e permanece-se atento ao que pode acontecer a seguir", define Deshimaru. Em suma, é estar atento ao próximo movimento do adversário.

A mesma postura, todavia, encontra-se em todas as atividades, como na arte dos arranjos (ikebana), na cerimônia do chá e na caligrafia. Zanshin aplica-se a qualquer ação. É estar plenamente presente naquilo em que se faz. Atento a cada gesto, por menor e fugidio que ele seja. Deshimaru afirma que a beleza natural do corpo é um reflexo do treinamento da mente na concentração nos gestos. Através do exercício, os gestos se tornam fáceis e controlados, e o corpo encontra sua beleza.

Shikantaza significa assentar-se em zazen gratuitamente e sem espírito de lucro (mushotoku). Sentar-se em zazen, assevera Deshimaru, não é a busca pelo satori (iluminação), mas é ele mesmo já o satori. É retornar ao estado normal da consciência, à Natureza de Buddha, a condição original e natural de nosso espírito. O satori furta-se a toda palavra, a todo conceito e nenhuma linguagem pode realmente descrevê-lo. Não é possível ensiná-lo, tampouco recebê-lo de outrem. É preciso ter a experiência por si mesmo. Eu não sou o outro e nem o outro sou eu.

Para ilustrar esse ponto, em outra passagem de seu livro, Taisen Deshimaru vale-se de um koan. Um lenhador cortava árvores na floresta. Ocorre que ele havia ouvido falar de um animal extraordinário chamado satori. Então, ele concebeu em seu coração um grande desejo de possuir esse animal. Um dia, o animal aparece para o lenhador que, imediatamente, parte em sua perseguição. Uma voz, entretanto, adverte-o que ele jamais possuiria o animal, já que o desejava. O lenhador, desapontado, retorna a seu ofício e se esquece do ocorrido. Não pensava em nada além de toras. O animal veio a ele e foi esmagado por uma árvore que o lenhador cortara.
...


segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

Notas sobre os limites epistêmicos do ceticismo pirrônico



Há dois motivos importantes para que a descrição adequada do ceticismo não seja simplesmente a de um partidário da dúvida hiperbólica e irrestrita. Primeiramente, há o motivo histórico: os céticos, desde suas origens ainda na Grécia, buscaram não se comprometer com a dúvida universal a fim de não sucumbir à contradição intrínseca do dogmatismo negativo. 

Mesmo os chamados céticos acadêmicos, chamados de dogmáticos negativos por seus adversários pirrônicos, não defendiam a dúvida universal e, ao contrário, sugeriam critérios para um conhecimento provável. Os pirrônicos, por sua vez, apesar de também serem historicamente acusados como defensores da dúvida universal, postulavam meramente a suspensão do juízo inclusive sobre a questão da possibilidade do conhecimento.

O segundo motivo não é outro senão aquele que se tornou desde os primórdios do ceticismo sua maior ameaça: a autocontradição implicada na negação absoluta da possibilidade do conhecimento. O pirrônico historicamente tentou afastar-se dessa refutação através da ideia de que a suspensão do juízo não é universal e que não representa mais do que o estado mental do cético no momento em que chega ao final da consideração das teses opostas sobre uma questão determinada. 

O pirrônico não afirma nada além de seu estado interior ao qual obedece passivamente, dada sua irresistibilidade. Não há sequer algo que impeça que, numa segunda tentativa de investigação de um problema filosófico, no momento seguinte, ele não possa chegar a uma resposta positiva. Segundo a definição de ceticismo que resulta de uma investigação histórico-conceitual, cremos que o pirrônico pode ser descrito como 

"aquele que, diante da oposição equipolente das respostas hauridas ao fim de uma investigação qualquer, naquele momento, encontra-se em estado suspensivo e que, como regra de ação, adere de forma não-dogmática ao que irresistivelmente se impõe a ele pelos fenômenos." 

O cético não afirma sequer a verdade de suas conclusões, mas somente expressa sua situação suspensiva naquele momento. Por isso, o ceticismo não pode encarar a si mesmo como uma escola filosófica. Se o fizesse, entraria no rol das doutrinas dogmáticas, ou seja, aquelas que afirmam como verdadeiras determinadas teses sobre o real e enredar-se-ia nas discussões infindáveis entre as escolas de pensamento. 

A tese da impossibilidade do conhecimento é autocontraditória, então nenhuma tese pode ser defendida pelo cético. Por outro lado, se ele não diz nada e nem afirma nada, a única utilidade do ceticismo pirrônico seria a da expressão de um estado momentâneo de suspensão do juízo ou, no máximo, a de um trivial conselho de prudência que aconselha a não se emitir opinião enquanto ainda não se encontrou uma resposta adequada.

Além disso, o próprio arsenal argumentativo cético não tem como objetivo fornecer armas infalíveis para derrubar toda e qualquer teoria. Na verdade, ele não pode ser visto assim sob pena de afirmar sub-repticiamente a impossibilidade absoluta do conhecimento. A sua utilização está ancorada na esperança de que o efeito da suspensão, que se deu tão casualmente quanto o arremesso da esponja de Apelles criou o efeito pictórico por ele desejado, repita-se quando aplicado a outro problema. Se essa analogia, formulada pelo próprio Sextus Empiricus, deve ser levada a sério, então dificilmente poderá o pirrônico escapar do fato desagradável de que a suspensão e a ataraxia, no fundo, dependem de um evento fortuito. O pirronismo não pode afirmar algum gênero de inevitabilidade da epoché

O pirrônico só se compromete com as aparências, com aquilo que se lhe impõe irresistivelmente e de cujo estado mental correspondente suas declarações, por mais afirmativas que possam parecer, não são mais do que meras descrições. Ele não se compromete sequer com a validade das regras argumentativas e lógicas que ele utiliza como instrumentos. A postura cética tenta sempre se equilibrar nessa ambiguidade que parece querer dizer algo, mas que ao mesmo tempo recusa-se a dizê-lo explicitamente porque isso a conduziria ou à Cila das controvérsias filosóficas, da qual ele originalmente quer escapar, ou ao Caribde da autocontradição. A única saída parece ser ater-se a uma função inócua de portadora de conselhos de prudência filosoficamente triviais.

O pirronismo não é uma escola filosófica, pois nada ensina ou afirma. Ele é a descrição do estado mental de um sujeito que, após diligente investigação, diante da equipolência de posições ou teses contrárias, não consegue decidir-se a favor de nenhuma delas e sente-se irresistivelmente impelido a suspender o juízo sobre a questão e o faz sem pretensões dogmáticas sobre a verdade mesma de suas conclusões. Como o cético somente afirma aquilo que se impõe irresistivelmente a ele, nada impede que um investigador diferente chegue a uma conclusão distinta da sua a partir dos mesmos dados. Contra isso ele só poderá apontar seu próprio estado mental àquele que não se sentiu impulsionado a suspender o juízo após a mesma investigação.

O cético argumenta que todas as suas declarações, por mais dogmáticas que pareçam, são meras descrições de seu estado mental. Em outros termos, o pirrônico só verbaliza o que se impõe a ele irresistivelmente, sem que com isso deseje fazer qualquer afirmação peremptória sobre o real. Usando um termo caro a Oswaldo Porchat, o cético utiliza a linguagem na sua dimensão não-tética. Ele não afirma como as coisas são, mas como as coisas lhe aparecem. Esse modo esquivo do cético visa impedir qualquer possibilidade de refutação e, por isso, torna-se impossível sua refutação. Mas a causa disso não é uma pretensa inviolabilidade de sua armadura argumentativa, mas sim a sua constantemente renovada recusa a pôr-se em combate.

Contra qualquer argumento que seja usado por seu adversário, o pirrônico sempre pode “dar um passo atrás” e retirar de suas declarações qualquer peso afirmativo simplesmente suspendendo o juízo. Através dessa estratégia, ele é capaz sempre de alegar que humildemente só declara seu estado mental e não postula qualquer pretensão à verdade. Essa mesma resposta é estendida, como bem mostrou Miles Burnyeat, até mesmo às regras lógicas e racionais que estão na base do próprio discurso argumentativo-racional. Não é necessário salientar aqui o quanto essa manobra é defectiva.

A postura demissionária do ceticismo tem seu preço. Recusando-se ao combate filosófico, o pirrônico se abstém das fadigas da luta e espera com isso alcançar a quietude ou imperturbabilidade. Mas, ao mesmo tempo, ele se condena ao mutismo estéril. Não é capaz de dizer nada além de um desinteressante relatório de seu estado mental momentâneo ou conselhos de prudência inócuos. Por essa razão não existe (seria melhor dizer que não é possível existir) uma escola cética, mas somente um estado cético.

Nesse estado, o investigador não consegue decidir-se entre duas ou mais alternativas teóricas formuladas como respostas possíveis a uma determinada questão. Por causa disso, sente-se irresistivelmente impelido a suspender o juízo sobre a questão. Essa suspensão não é mais do que momentânea, ela se refere ao seu estado atual e não o compromete com qualquer ideia de insolubilidade do problema a que se dedicou a investigar. O máximo que pode afirmar é que, até o momento, nenhuma solução se apresentou a ele com evidência e força suficientes para convencê-lo. Não significa que no futuro, ou mesmo no segundo seguinte, uma nova investigação o conduza a uma resposta positiva.

Qualquer investigador honesto acharia racional essa atitude na situação postulada. Não havendo evidências suficientes para uma decisão, deve-se suspender o juízo e continuar buscando a resposta. Nesse ínterim, a regra de agir não-dogmaticamente segundo as leis e os costumes é uma solução adequada. Contudo, se é isso que o ceticismo pode afirmar, então se confirma patentemente sua total irrelevância. Pode-se mesmo questionar a necessidade de chamar de cético alguém que esteja passando por uma experiência do gênero descrito no parágrafo anterior.

A despeito das declarações e protestos dos pirrônicos e neopirrônicos, o ceticismo sempre foi uma tentativa enrustida de negação do conhecimento. O que impediu e impede uma afirmação clara nesse sentido é tão somente a consciência da contradição performativa envolvida nela. O cético então pretende se equilibrar numa linha tênue entre a sub-reptícia negação do conhecimento e a recusa consciente em formular essa mesma negação em termos de uma teoria filosófica. 

É aí que a suspensão do juízo entra como uma estratégia visando camuflar as intenções reais do partidário do pirronismo. Como a contradição implicada na afirmação da impossibilidade do conhecimento só se efetiva no momento em que o sujeito a declara na forma de uma teoria, então o cético considera que a não-declaração ou a declaração sem pretensões téticas é suficiente para evitar a sua refutação. 

O ceticismo pirrônico retira sua atração justamente dessa ambiguidade que torna impossível sua refutação como uma teoria filosófica comum. A irrefutabilidade é frequentemente tomada como evidência da verdade de uma tese. Não é difícil demonstrar que essa suposição comum é errônea. Alguém pode afirmar a tese segundo a qual “há um livro que contém todos os segredos do mundo” e alegar, com justiça, que ela é completamente irrefutável. Isso porque não existem meios de negar que, ainda que até hoje não se tenha encontrado tal livro, nada impede que ele exista em algum canto do universo ainda inexplorado. Certamente esse fato não permite a inferência da verdade dessa tese.

A irrefutabilidade do ceticismo provém de sua reiterada recusa a afirmar qualquer tese. Ela é análoga à invencibilidade de um lutador que jamais entrou em um combate que não fosse simulado. Sem dúvida, ninguém daria um cinturão de campeão a um lutador desse gênero. Da mesma forma, a pretensa irrefutabilidade do ceticismo não permite que daí se infira sua verdade. O pirronismo é, na verdade, a recusa sistemática da possibilidade da refutação.
...

Leia também:


(Para uma discussão mais detalhada, vide "O Problema de Gettier e o Ceticismo", disponível em: https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/Busca_etds.php?strSecao=resultado&nrSeq=17904@1 )