domingo, 9 de abril de 2023

Daisetz Suzuki, Swedenborg e a natureza do Céu

"Céu é o amor divino, e o Inferno é o amor-próprio, enquanto nós, no meio, devemos decidir nosso lado por nós mesmos. Swedenborg chamou essa liberdade de equilíbrio."

DAISETZ T. SUZUKI, Swedenborg's View of Heaven and "Other-Power" 

Daisetz Teitaro Suzuki (1870-1966), renomado escritor e divulgador do Zen Budismo, publicou em 1913 um curto estudo (Swedenborugu) sobre o cientista, inventor, filósofo, visionário e místico sueco Emanuel Swedenborg (1688-1772). No texto, que foi traduzido para o inglês com o sugestivo título Swedenborg's View of Heaven and "Other-Power", Suzuki compara a concepção do Céu exposta por Swedenborg com algumas doutrinas budistas. 

As obras do sueco foram muito famosas e alcançaram larga influência em seu tempo, atraindo a atenção, embora crítica, até de Immanuel Kant. Swedenborg afirmava ter visões e se comunicar com o mundo dos mortos, o que rendeu a ele fama internacional. O próprio Kant, em uma carta de 1758 endereçada à Condessa Charlotte von Knobloch, dá conta de duas histórias amplamente disseminadas acerca de prodígios realizados por Swedenborg: comunicar-se com o marido falecido de uma viúva dando a ela a localização exata de um documento, e "ver" um incêndio em Stocolmo quando estava em Gothenburgo.

O ensaio de Suzuki não comenta essas manifestações de poder sobrenatural de Swedenborg, mas se atém ao significado de sua doutrina sobre o Céu e sobre o "Outro Poder" (Annan Makt, em sueco). Suzuki admite de início que o místico escandinavo não oferece uma definição clara do Céu em sua obra sobre o tema (De Caelo et Ejus Mirabilibus et de inferno. Ex Auditis et Visis). É possível afirmar, contudo, que o Céu pode se dar aqui neste mundo ou no post mortem, e que se caracteriza como um domínio ideal que não está nem separado e nem é equivalente ao mundo material que habitamos.

O Céu é o domínio, ou o estado, como Swedenborg o descreve, que comporta somente o bem do amor e a verdade da iluminação. A inocência que o caracteriza flui naqueles que abandonam seus próprios pensamentos e desejos. Quando agimos bem, e os outros reconhecem que fizemos uma boa ação, não há aí mérito nosso, pois o bem não nasce de nosso eu, e sim provém do Divino. Nada se realiza pelo próprio poder.

Swedenborg afirma que aqueles que estão em estado de inocência não atribuem nada a eles mesmos, e consideram todas as coisas recebidas dons provenientes de Deus, desejando nada além do que serem guiados por Ele e não por si mesmos. A inocência, Suzuki assevera, é a essência de todo o bem para o vidente sueco. E tal conhecimento não é fruto de sua própria mente. Swedenborg diz que entrou pessoalmente no Céu, e o contemplou fluindo diretamente de Deus.

Há uma doutrina da correspondência em Swedenborg. Nela, todos os entes do mundo têm significados que só podem ser captados por aqueles que conseguem realizar uma adequada correspondência entre seu aspecto interior e seu aspecto exterior. O canto de um pássaro possui a um só tempo um significado celestial e um significado infernal. Todos são livres para encontrar o Céu neste mundo por meio do desvelamento dos significados celestiais dos fenômenos. 

Este mundo de sofrimento pode ser também considerado uma Terra Pura*de luz tranquila, assevera Suzuki. O Céu é essencialmente o amor puro e a verdade pura. Estas, quando unidas perfeitamente, formam o indivíduo, cuja realização completa só se pode dar no domínio da bondade e da verdade divinas. Ainda segundo Suzuki, a doutrina da correspondência de Swedenborg é semelhante à doutrina dos fenômenos no Shingon, escola esotérica budista fundada entre os séculos XVIII e IX por Kûkai, na qual a realidade última e indizível do Dharmakâya (algo como o "corpo búdico") se revela em todos os objetos dos sentidos e do pensamento.

O mesmo poderia ser dito com relação à Terra Pura. Embora todas as coisas se interpenetrem sem obstáculos, o Céu não é o Inferno, e, por conseguinte, embora a Terra Pura encontre sua significação neste mundo de sofrimento, o Inferno não é o Paraíso. O princípio da correspondência não pode ser divorciado da consciência humana. Se Swedenborg ensina que a inocência é a essência do Céu, e que este não pode ser alcançado por mero conhecimento humano, e sim por uma iluminação que ultrapassa esses limites, não é possível alcançar o bem sem o Senhor.

A inocência é o Céu, então a sua negação, a não-inocência, é o Inferno. Acreditar na própria força e não no Outro Poder, conduz ao Inferno. E este surge quando o homem serve aos propósitos do ego, isto é, o amor próprio e o amor mundano. Swedenborg diz que o Inferno está em todos os lugares, e que suas entradas, como ele mesmo testemunhou, são absolutamente trevosas. Os que lá estão, contudo, não sentem essa escuridão, posto que a ela se acostumaram. Reina ali a maldade e o ódio, a sujeira e a devassidão. 

O seres humanos estão no meio do caminho entre o Céu e o Inferno, e podem escolher entre esses dois pólos. Tal liberdade, Swedenborg denomina equilíbrio. Só o ser livre pode agir de forma egoísta, com vistas à sua pura satisfação. O amor que há no homem vem de Deus. Somente quando ele age segundo esse amor pode haver a regeneração e a salvação. Mas esse amor é interno, diferente do amor às coisas externas que nasce da memória e funciona só pelo pensamento. Aquele que atribui tudo a si e confia exclusivamente em seu próprio poder já vive no Inferno, ainda que disso não se dê conta. 

O homem é livre para escolher o Inferno, porém o desejo pelo Céu está no ser humano como um ato livre do Outro Poder. Suzuki não formula nesses termos, mas creio que seja seguro dizer que Swedenborg concebe que o homem só possui o poder de se perder no Inferno pelo amor próprio e pelo amor mundano. Exercer esse poder próprio de escolha já é infernal na medida em que o ser humano assume a ilusão de que o que ele é e o que ele recebeu são frutos de seu próprio poder. Assim sendo, seria somente na aceitação interna de sua radical dependência ontológica que o homem poderia entrar no Céu.

Retornando ao texto de Suzuki, ele prossegue dizendo que por meio dessa liberdade, o cristão alcança arrependimento e ressurreição, enquanto o budista reconhece seus pecados e ganha o renascimento no Paraíso. O cristão é despertado pelas palavras das Escrituras, e o budista é despertado pelo nome do Amida Buddha. Na regeneração, o ser humano percebe que a alegria e tudo o mais que ele recebe e possui são provenientes do Outro Poder, e abandona enfim a cegueira da crença em seu poder próprio e autônomo.

Sendo um cientista de origem, o místico sueco não usa argumentos para fundamentar o que diz, mas, ao contrário, simplesmente descreve as suas experiências nessas dimensões da realidade tal como as testemunhou. Suzuki, encerrando o seu texto, observa que, do ponto de vista privilegiado de Swedenborg, o que parece externamente uma conversa amistosa, uma transmissão de afeto entre duas pessoas, pode ser, internamente, o choque entre duas pessoas com as costas voltadas uma para a outra. O mundo interno e o mundo externo estão, por assim dizer, separados desse modo.

Para quem vive no Céu, no entanto, tudo é claro e nada há de oculto.

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*Suzuki se refere aqui à Terra Pura do Amida Buddha.

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