domingo, 6 de agosto de 2017

"The Pre-Persons" de Philip K. Dick: aborto e o que faz de um humano um humano?




"O Congresso inaugurou um teste simples para determinar a idade aproximada na qual a alma entrou no corpo: a habilidade de formular matemática mais elevada, como álgebra. Até esse ponto, era só um corpo, instintos animais e corpo, reflexos animais e respostas a estímulos. Tal qual os cães de Pavlov quando perceberam um filete de água infiltrado sob a porta do laboratório de Leningrado. Eles 'sabiam', mas não eram humanos."

PHILIP K. DICK, The Pre-Persons, In. The Collected Stories of Philip K. Dick, Vol. 5 (pag.277)

No conto intitulado The Pre-Persons (1973), Philip K. Dick fala de uma sociedade americana futura na qual as crianças podem ser rejeitadas pelos pais e abortadas até os doze anos. São exatamente as pré-pessoas do título. Como não são ainda pessoas, elas podem ser descartadas a qualquer momento por seus progenitores. Uma vez rejeitadas, elas são recolhidas por caminhões estatais e mortas em câmaras por sufocamento.

A questão central do conto, como a maioria dos textos de Philip Dick, gira em torno do conceito da realidade. No caso em tela, o conceito do que é ser realmente humano. O que torna um ser humano humano é uma longa discussão que remonta aos primórdios da filosofia. O problema é ontológico e conceitual: o que torna algo um legítimo representante de uma determinada espécie ou classe?

Em outros termos, há um conjunto de características essenciais tais que X pode ser considerado um Y. Por exemplo, um homem pode ser gordo ou magro, alto ou baixo, negro ou branco, brasileiro ou egípcio, mas nenhuma dessas características o exclui da comunidade dos homens. As características acima elencadas são acidentais no sentido de que nenhuma delas define o ser humano. Contudo, só posso afirmar a humanidade de todos esses homens justamente porque intuo que há algum conjunto definidor de características que os torna todos homens. 

Na definição tradicional, o homem é um animal racional. Isto é, o homem é animal tanto quanto o golfinho ou o gato, mas tem em si mesmo algo que não pertence à pura animalidade: a racionalidade. E esta é, entre outras coisas, a capacidade de conceber conceitos abstratos, formular com eles juízos sobre a realidade e encadeá-los logicamento em argumentos. O que define o homem, ou seja, a sua definição, é justamente a sua generalidade (animal) e sua especificidade (racional). E aquilo que lhe é específico marca a sua espécie, no sentido lógico e ontológico.

Ora, é claro que nem todos os homens parecem ser racionais. Alguns, graças a deformações materiais de diversos gêneros, jamais chegam a atualizar essa capacidade racional. Podem ser considerados homens? E as crianças, como ainda não desenvolveram completamente essa capacidade, podem ser consideradas humanas?

Note-se que a questão do pertencimento à classe dos homens não é somente uma questão lógico-teórica. Pertencer à humanidade é também ter certos privilégios e certos deveres. Um homem não pode ser morto impunemente. Ou seja, ser humano é possuir uma certa dignidade ontológica que o distingue de todo e qualquer outro ente só pelo fato de pertencer a essa classe. Matar um ser humano tem um peso moral diverso de matar um outro ser vivo.

Mas se o ente não é um ser humano ainda, então ele pode ser tratado como são tratados os entes vivos não-humanos? No conto de Dick, o início da humanidade foi convencionada aos doze anos pelo governo e por uma Igreja dos Vigias. Segundo sua doutrina, referendada pelo Estado, a alma entra no corpo da criança somente aos doze anos. Resta, então, que, antes desse limite, as crianças pode ser simplesmente rejeitas, descartadas, levadas pelo governo e mortas, se não houver ninguém que as adote.

A sociedade americana do conto de Dick definiu a humanidade por um estágio cronológico de desenvolvimento (doze anos). A pergunta óbvia é se um estágio de desenvolvimento é condição necessária e suficiente para definir o que é ser humano. E se não for, nada impedirá que esse estágio limite seja modificado, adiantado ou postergado.

Esse é um dos medos que Walter, o protagonista do conto, traz dentro de si. Ele já passou da idade limite de doze anos. Não pode mais ser rejeitado e abortado. Todavia, Walter não se sente seguro, pois nada parece garantir que o limite não seja eventualmente modificado. Seu temor é que, mais cedo ou mais tarde, ele esteja incluído na faixa das pré-pessoas.

Inspecionando a si mesmo, Walter percebe que não era muito diferente dois anos antes, quando ainda era considerado uma pré-pessoa. Sente que era tão humano como o é agora. A arbitrariedade da escolha da idade limite da humanidade aparece-lhe de forma patente e o leva a questionar a sanidade dos cidadãos daquela sociedade que permite que seus filhos sejam mortos com base em tão frágil critério.

A fim de justificar a escolha dos doze anos como idade limite para o aborto, o governo instituiu um teste simples: a capacidade de compreender e de executar operações matemáticas mais complexas, como a álgebra. Em tese, só um ser humano pleno (com alma, como é dito no conto) seria capaz de realizar tais operações abstratas. Logo, todo aquele que ainda não alcançou a idade em que essa capacidade manifesta-se, não é um ser humano.

Há, pelo menos, dois sentidos diversos de “humano” e dois sentidos de “homem”implicados na escolha acima. Em um sentido, trata-se daquilo que caracteriza um indivíduo como humano, isto é, como pertencente à classe humana, como instância singular do gênero “humanidade”. Em outro sentido, “homem” adquire o sentido de indivíduo adulto plenamente maduro e funcional.

A afirmação “o bebê é humano” indica o pertencimento ao gênero humano. Já a afirmação “o bebê não é um homem” indica que não se trata de um indivíduo adulto, maduro e independente. Em outros termos, no primeiro sentido trata-se da natureza da coisa e no outro do seu grau ou estágio de desenvolvimento. A questão em torno da qual orbita The Pre-Persons é justamente a percepção de que o que vale realmente como definição do homem é sua natureza e não o seu grau de desenvolvimento. Mas, no discurso do governo e da sociedade do conto, conscientemente ou não, esses sentidos se confundem.

A natureza humana manifesta-se, entre outras coisas, na forma como as circunvoluções da matéria se organizam cada vez mais segundo uma lei que rege seu desenvolvimento desde seu estágio mais embrionário até à formação de um indivíduo adulto maduro.O que distingue Walter dos outros seres vivos é sua humanidade, e não o grau de desenvolvimento em que se encontra no momento. A questão sobre quando ele será capaz de realizar operações de álgebra não é suficiente para demarcar a humanidade e nem para decidir a questão da moralidade de sua eliminação física pelo Estado.

O desenvolvimento de um ente está subordinado à sua natureza e não o contrário. Se Walter desenvolve-se como um ser humano, é porque possui a natureza humana. Não é o processo de desenvolvimento que gera ou define a natureza, mas a natureza que rege e define o processo. Interromper a vida de garotos antes dos doze anos é interromper um processo de desenvolvimento regido por uma natureza já presente.

A arbitrariedade da idade limite é explicitada quando Ed Gantro, um homem de mais de trinta anos com formação universitária em matemática, tem seu filho recolhido pelos temidos caminhões estatais. Para salvar o filho e para escancarar o absurdo do critério utilizado pelo governo, ele declara que, por conta de um acidente, perdeu totalmente a capacidade de fazer qualquer cálculo para além da aritmética mais simples. Ele, portanto, perdeu a sua humanidade. É uma pré-pessoa e deve ser eliminado.

A imprensa é chamada e, apesar das tentativas de negação por parte dos agentes do governo, o fato escandaloso de que um adulto foi preso como uma pré-pessoa é divulgado. Não há alternativa senão libertar a ele e ao filho e fingir que nada daquilo aconteceu. Mas a exposição desejada por Ed Gantro já aconteceu e ali ele considera que ocorreu uma vitória contra o establishment estatal.

A convicção partilhada pelos personagens do conto contrários à eliminação física das pré-pessoas (e que transparece ser a convicção do próprio Philip Dick) é a de que, no fundo, o que está por trás dessa medida, exteriormente defendida como solução econômica para a superpopulação, é um ódio instintivo pelo indefeso e pelo desamparado. Bebês e crianças são indefesos, ergo podem ser eliminados sem culpa moral. O humano seria definido pela capacidade de defender-se.

Isto é, quando não é mais possível (ou, pelo menos, não tão fácil), fazer com o outro o que se deseja sem esperar resistência, a ele é concedido (a contragosto) o privilégio do pleno pertencimento à humanidade. É simplesmente a lei do mais forte escondida sob as respeitáveis vestes da religião, da lei e da ciência.