quarta-feira, 23 de julho de 2014

Raskolnikov e a ilusão das idéias



"Eu insinuei pura e simplesmente que o homem extraordinário tem o direito...ou seja, não o direito oficial, mas ele mesmo tem o direito de permitir à sua consciência passar... por cima de diferentes obstáculos, e unicamente no caso em que a execução de sua idéia (às vezes salvadora, talvez, para toda a humanidade) o exija."

RODION RASKOLNIKOV in FEDOR DOSTOIEVSKI, Crime e Castigo, p.268 (Trad. de Paulo Bezerra, Ed. 34)


Rodion Raskolnikov, protagonista do romance Crime e Castigo de Fedor Dostievski, é um doente. Convém, contudo, não patologizar demais o seu mal. Sua doença não é tanto uma moléstia do corpo ou da psiquê. Ele tem uma pneumopatologia, uma doença do espírito. Seu mal é o orgulho que se manifesta em uma autoimagem exacerbada que é posta em xeque pela consciência aguda de sua condição real de miséria e de impotência.

Tudo gira em torno disso. É porque ele se considera um Napoleão, alguém cujas riquezas interiores e cujas capacidades o tornariam diferente do resto da comezinha humanidade ("piolhos", como a denomina) que Raskolnikov se acha no direito de matar a velha usurária. É um drama sobre uma dignidade hipotética imaginada por um jovem diante da realidade cruel que se recusa a se conformar à imagem exaltada que tem de si mesmo.

O que fazer? Se a realidade se recusa a cooperar, é necessário fazê-la curvar-se diante de sua dignidade hipotética. O primeiro erro de Raskolnikov é atribuir-se uma excelência que ele ainda não havia demonstrado através de feitos concretos e agir como se fosse realmente alguém especial. O segundo foi crer que Napoleão pode fazer o que bem entende simplesmente por ser Napoleão.

Nas obras de Dostoievski, boa parte de seus personagens mais perturbados e atormentados são oprimidos por idéias, filosofias e teses. São precipuamente adeptos de pensamentos hipotéticos, de esperanças utópicas, de desejos irrealizáveis, de teorias grandiloquentes sobre eles mesmos e sobre o mundo. Não seria errado afirmar que eles são como possessos.  

Não são mais pessoas, mas porta-vozes de idéias abstratas que não somente fluem por suas bocas como também os consomem na medida em que exigem sua realização concreta naqueles indivíduos. Verkhovenski, Kirilov, Chigaliov, Stavrogin, Ivan Karamazov e Raskolnikov são quase ilustrações de suas próprias idéias, como silogismos concretos e individuais que explicitam as premissas que se encontram em suas próprias mentes. 

Raskolnikov crê tanto nas idéias que chega a inverter a ordem da realidade temporal e supor como real o Napoleão apenas potencialmente contido naquele general obscuro que ainda não havia vencido em Austerlitz ou invadido a Rússia. Napoleão estava destinado a ser Napoleão antes mesmo de sê-lo. Os homens grandes são destinados naturalmente a serem grandes, de tal modo que nada deve impedi-los e nem interpôr-se em seu caminho.

Napoleão foi quem foi por conta de seus feitos militares extraordinários. Feitos concretos e determinados. E Raskolnikov? De que grande feito poderia gabar-se? De nenhum, por certo. Resta evidente que também Napoleão não poderia ter se tornado o que se tornou por suas realizações e sim porque tais realizações eram expressões inequívocas de uma grandeza que já estava nele, de uma destinação natural, de algo próximo a um imperativo que para realizar-se concedia um salvo-conduto a quem porventura fosse o seu portador. 

Raskolnikov é monstruosamente pretensioso, orgulhoso e, acima de tudo, iludido. Somente a humilhação e a aceitação da realidade poderiam salvá-lo. Sonia Mermeladov aparece-lhe como a realidade. Ela sim é especial, alguém que enfrenta a realidade desesperadora mantendo a dignidade e o amor. Ela faz algo pelo seu próximo, por seus irmãos e seu pai. Concretamente e não hipoteticamente. Ela é grande e Raskolnikov apenas sonha ser grande.

Sonia exerce sua grandeza nos atos mais comezinhos e tristes da vida. Ela não é cindida entre a pretensão e a realidade. Por isso Raskolnikov ajoelhar-se-á diante dela. A meretriz o salva porque ela é mais real do que tudo o que ele imaginava de si mesmo. "As prostitutas e os publicanos vos precederão no Reino dos Céus" (Mt 21,31).

Sonia é o bom samaritano da parábola evangélica e Raskolnikov é homem ferido pelos bandidos, ferido pelas consequências de suas próprias idéias. Quem salvou o homem judeu na estrada senão o seu mais odiado inimigo, o samaritano? Quem salvará Raskolnikov de suas pretensões ilusórias de grandeza? A pior imagem da degradação que a realidade pode assumir: a prostituta explorada pelo próprio pai.

Assim como o samaritano é grande por conta de seus atos concretos de piedade, Sonia mostra sua grandeza em atos de amor por seus irmãos e por sua madrasta, em atos de perdão para com seu pai e em atos de piedade e de misericórdia com Raskolnikov. E ela acompanha o jovem estudante até à prisão, onde, por fim, ele se arrepende plenamente de seus erros.

Raskolnikov é um homem dividido, um homem cindido justamente porque ainda não é um homem de verdade. É um garoto pretensioso e incapaz de aceitar a realidade. Mas seu drama é uma encruzilhada moral no mais alto sentido do termo.