quarta-feira, 25 de outubro de 2023

Dionísio Areopagita e a teologia negativa em "Os Nomes Divinos" (Livro II)

"Deus não é nem as partes, nem nenhuma das partes, tampouco é o todo ou a totalidade, dado que se assim fosse Ele seria dependente de algum outro. Não obstante, por uma razão diferente, Ele é todas essas coisas, pois o bem que está presente nelas Ele o possui também. Ele não possui o bem da mesma forma que elas (assim parecendo que o possui impropriamente), mas, antes, Ele o possui mais eminentemente e primordialmente. Mais eminentemente, isto é, em um grau eminentemente maior. E primordialmente, isto é, antes que elas o possuam no tempo e igualmente na natureza."

MARSILIO FICINO, Comentários

No segundo livro de Os Nomes Divinos, Dionísio Areopagita, o santo a quem se credita tradicionalmente a autoria desse texto, adverte o leitor de que a bondade, a vida, o ser, o domínio, a sabedoria e a justiça devem ser atribuídas a Deus igualmente nas Suas três Pessoas. A explicação é que há nomes que são atribuídos à Trindade inteira e nomes que pertencem a cada uma das Pessoas divinas separadamente.

Marsilio Ficino comenta que a Tearquia, o mais comum dos nomes de Deus invocados por Dionísio, significa a "primeira Deidade da divindade e o princípio de cada divindade". Note-se que a Deidade da divindade é o fundo comum às Pessoas divinas, o fundamento, a essência do ser divino. Em termos dogmáticos, trata-se da substância que torna a Trindade consubstancial, e não permite que se caia em um triteísmo. Não são três deuses distintos e separados, mas sim uma trindade de Pessoas que compartilham uma e a mesma natureza divina.

Os nomes que se referem a esse fundo substancial comum de Deus são atribuídos igualmente e sem distinção ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo. Todos eles, segundo Ficino, significam simples perfeição e excelência. Outros nomes há que só se aplicam às Pessoas separadamente, como Pai e Filho. Embora haja uma única natureza em ambos, a distinção se mantém somente na medida em que é necessário indicar a diferença entre o gerador (Pai) e o gerado (Filho). 

Dionísio enfatiza sua ortodoxia mostrando que as próprias Escrituras empregam por vezes um método de Diferenciação, e, por vezes, um método de Indiferenciação. Pertence exclusivamente ao Pai gerar e ao Filho ser gerado, o que não significa que o Filho seja de natureza inferior ao Pai (há uma só natureza divina), ou temporalmente posterior ao Pai. A diferença consiste no fato de que o Filho tem sua origem no Pai e não o contrário. 

Os nomes indiferenciados são aqueles que podem ser empregados para designar a totalidade da divindade, sem distinção entre as Pessoas. O primeiro tipo dos nomes indiferenciados é aquele no qual se indica a superabundância divina, como nos termos Supraessencial, Supradivino, Supravital. O segundo tipo é aquele no qual se indica uma relação causal entre Deus e as criaturas, como Bom, Justo, Existente, Sábio. Os nomes diferenciados são Pai, Filho, Espírito Santo, bem como aqueles que se referem à humanidade de Cristo.

Em Sua unidade última, Deus é aquele que ultrapassa toda afirmação e toda a negação. Nesse sentido, há uma só e a mesma natureza inefável que deve ser atribuída igualmente às três Pessoas. Uma unidade transcendente, sem confusão das Pessoas, analogamente às fontes de luz em uma casa que, apesar de serem diferentes umas das outras, seus raios unem-se sem nenhuma mistura. Quando as luzes forem separadas, nenhuma delas será diminuída em sua potência. 

Dionísio passa em seguida a expor as doutrinas de Santo Hieroteu, seu mestre, acerca da divindade de Cristo, que é a causa de todas as coisas, que preenche e preserva todas as coisas, sem ser parte ou todo. Mas é parte e todo no sentido de que compreende em Si mesmo todas as coisas, possuindo-as de modo eminente. Ele é a perfeição das coisas imperfeitas, e nas coisas perfeitas Ele é não-perfeito no sentido de que precede a perfeição  em excelência e em origem.

Hieroteu resume a doutrina dos nomes divinos nessa curta passagem. Retomando uma definição que formulamos anteriormente, a teologia negativa, ou teologia apofática, se caracteriza pela necessidade de negar a imperfeição para afirmar a perfeição e negar a perfeição para não afirmar a imperfeição. Como Hieroteu ensina, quando comparamos as coisas imperfeitas de nossa realidade com Deus, vemos que Ele é a perfeição. Todavia, ao mesmo tempo, percebemos que a noção de perfeição que possuímos é muito limitada quando comparada à perfeição divina. 

Deus excede infinitamente, e é a origem de, qualquer perfeição que possamos imaginar ou conceber. Nesse sentido, Deus não é dignamente representado por essa noção limitada de perfeição que possuímos. Para evitar que se pense a perfeição divina em termos limitados, é necessário afirmar que Deus é não-perfeito, isto é, excede infinitamente a perfeição, é supraperfeito. A linguagem negativa preserva a infinita e incomensurável perfeição divina negando que ela possa ser expressa mesmo pelo conceito mais alto e mais sublime de perfeição que possamos conceber.

Deus dá origem a tudo sem se tornar múltiplo. É ser em um sentido supraessencial. Marsilio Ficino explica que Deus "ultrapassa as coisas supraessencialmente, pois Ele não está colocado no mais alto grau desses seres com o restante situado no segundo e no terceiro graus". O ponto é que Deus não pode ser entendido como o grau máximo de uma linha gradativa ascensional da qual fazem parte todos os seres. A diferença entre Deus e as coisas não é de grau, como pode ser a diferença entre algo mais claro com relação a algo mais escuro.

As coisas deste mundo são por definição limitadas, o que faz com que esse seja o mundo do mais e do menos. Todos os entes estão em alguma relação de maior ou menor quantidade e/ou de melhor ou pior qualidade com outros entes. A variação é própria da limitação que caracteriza os seres desta realidade. Deus não está nessa relação de mais e de menos, mas sim como fundamento que torna possível o mais e o menos. 

Utilizando uma analogia, a cor vermelha pode ser mais ou menos intensa. Neste objeto A o vermelho é mais intenso e naquele objeto B é menos intenso. Todavia, ambos são vermelhos. O que torna possível que A seja mais intenso e B menos é o caráter da qualidade vermelho presente nos dois. Mas o vermelho, enquanto qualidade, não é nem mais intenso e nem menos intenso. Ele é o padrão que, estando em A e em B inteiramente (o vermelho está inteiro em ambos), permite que haja gradação de intensidade entre A e B. 

O vermelho, enquanto padrão qualitativo, não é diminuído ou acrescido, não sofre mudança alguma pelo fato de que o vermelho em A é mais intenso do que aquele presente em B. Nesse sentido, o vermelho transcende as limitações das suas manifestações em A e em B. O vermelho é a Forma, o Padrão, a Razão, a Medida, o Logos que permanece o mesmo justamente para que nos seres possa haver variação e gradação. É o metro que torna a medição possível, e para que haja medição é necessário que ele permaneça inalterado para que as coisas mensuradas possam variar nas suas medidas.

A transcendência de Deus não é a da medida, da gradação, como se Ele fosse simplesmente o maior de todos em uma escala de entes de mesmo tipo. Note-se que, mais à frente na Idade Média, Anselmo de Ostia, mui platonicamente, definirá Deus como "o ser do qual não se pode pensar nada maior". Isto é, Deus não é simplesmente o ser maior de todos. Deus está absolutamente fora de toda e qualquer gradação, dado que não se pode pensar nada maior que Ele. Em outros termos, nenhuma medida, por mais excelsa, faz jus a Deus.

Nenhuma intensidade de vermelho muda em nada o vermelho. Nesse sentido, o vermelho é o padrão absoluto pelo qual tudo que é vermelho é julgado. Nenhuma intensidade de vermelho no mundo, por mais excelsa que seja, pode "ultrapassar" o vermelho. Nem sequer faria sentido uma comparação desse tipo. O vermelho está inteiro nas coisas enquanto padrão, e simultaneamente está presente de modo limitado nas coisas enquanto grau de intensidade

Deus está presente nas coisas como Ser, Bondade, Razão, etc, mas se faz presente em medidas diferentes. Cada ente recebe os dons divinos segundo sua capacidade, dizem os platônicos. Isso significa que, por exemplo, se Deus dá o Ser aos seres, cada um terá uma dada proporção ou medida de Ser. Todos serão existentes, mas alguns terão a existência em grau maior do que outros. Um time esportivo tem existência somente na medida em que há jogadores, estes sim existentes de modo mais pleno.

Nada em Deus muda por conta das variações das coisas das quais é a causa. Uma vez que Ele está acima de tudo, então está acima até de todas essas perfeições que neste mundo se manifestam de modo múltiplo e gradativo. Não há determinações em Deus. O vermelho já é circunscrito, determinado, delimitado, pois o vermelho necessariamente não é o azul. Sequer essas limitações se apresentam em Deus. Por isso, como afirmava Ficino, Deus é "não somente indeterminado. Ele tem de ser também indeterminável."

Por fim, observe-se que na figura do Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, onde a natureza divina e a natureza humana estão unidas sem mistura ou confusão, realiza-se a síntese simbólica da realidade. Jesus, a perfeita Imago Dei, se manifesta aos homens como ser humano pleno, sem jamais perder nada de sua divindade. De um lado, há o homem, a limitação, a medida. De outro, o divino, o ilimitado, o infinito. O homem tem seu fundamento em Deus, e Deus se manifesta pelo homem. 

Cristo, uma só e mesma realidade, uma só hipóstase, simboliza o todo da Realidade, onde o limitado tem seu fundamento no ilimitado sem que haja qualquer tipo de mistura ou de confusão. Preservada está a transcendência absoluta de Deus ainda que esteja imanentemente presente no todo singular que é Cristo. Nesse sentido simbólico, a Realidade é um todo no qual estão presentes, unidos sem mistura ou confusão, o limitado e o ilimitado. O segundo é o fundamento transcendente do primeiro. O limitado é a Imago do ilimitado.

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domingo, 15 de outubro de 2023

Eric Voegelin e a origem do cientificismo

"Aqui podemos observar em estado bruto o fascínio do poder que transpira da nova ciência: é tão esmagador que chega a cegar a consciência de alguém para os problemas elementares da existência humana. A ciência torna-se um ídolo que vai magicamente curar todos os males da existência e transformar a natureza do homem."

ERIC VOEGELIN, The Origins of Scientism

O filósofo político alemão, radicado nos Estados Unidos, Eric Voegelin, em um artigo publicado em 1948 intitulado The Origins of Scientism analisa o fenômeno do cientificismo* e aponta as suas consequências filosóficas e espirituais. Enquanto movimento intelectual, a sua origem se encontra já na segunda metade do século XVII. Acompanhando o sucesso da Revolução Científica, o cientificismo caracteriza-se por um fascínio com a nova ciência a ponto de desprezar ou mesmo negligenciar a preocupação com as experiências do espírito.

Simultaneamente, criou-se a impressão de que a ciência seria capaz de fornecer uma visão de mundo que substituiria completamente a visão da ordem religiosa da alma. E, no século XIX, a culminação desse desenvolvimento é a proibição explícita das questões de natureza metafísica. Voegelin aponta três dogmas principais do cientificismo tal como ele se apresenta na contemporaneidade:

(1) a noção de que a ciência matemática dos fenômenos naturais é o modelo de toda e qualquer ciência; (2) a afirmação de que todos os âmbitos do Ser são acessíveis aos métodos das ciências naturais; (3) o dogma afirma que todas as realidades não acessíveis aos métodos das ciências naturais são irrelevantes, na sua forma mais branda, ou francamente ilusórios, na sua forma mais radical. As consequências filosóficas desses dogmas são a negação da dignidade das pesquisas acerca da substância das coisas na natureza, no homem e na transcendência, e, como resultado, a negação da realidade da substância.

Essa negação da substancialidade fôra notada já no século XVI por Giordano Bruno que, ao tratar da matematização da realidade sensível em suas obras. O teor da crítica de Bruno provém não da negação da possibilidade do emprego da matemática no estudo dos entes sensíveis, e sim da percepção clara de que a quantidade é um acidente das substâncias (como dizia Aristóteles) e não a sua essência. Ademais, a multiplicidade não alcança a essência das coisas, e o homem que nega aquilo que não é perceptível sensivelmente acaba por negar sua própria substancialidade.

Cabe uma breve explicação do sentido da crítica de Bruno. O que o filósofo aponta é que as características quantitativas de um ente corpóreo (número, altura, comprimento, largura, etc.) não são capazes de definir o tipo de ser que esse ente é. Por exemplo, um homem que tem a mesma altura de um armário não é definido como ser humano pelo fato de ter a mesma altura de um armário e vice-versa. O que o define como ser humano é a sua essência ou substância. Uma ciência que se restringisse a tratar dessas características quantitativas estaria necessariamente se restringindo ao nível mais externo da realidade.

Em outros termos, o que Bruno e Voegelin apontam é que uma ciência que só estuda as quantidades no mundo natural seria incapaz de determinar uma ontologia, ou seja, de dizer exatamente o que há no mundo e o que as coisas são substancialmente. A quantidade é um acidente, uma propriedade que não existe por si mesma e independentemente de um supósito, de algo que lhe conceda suporte. É possível medir sem saber o que se está medindo. Ninguém precisa saber a definição correta de ser humano para medir a altura de um homem.

Consequentemente, a quantidade está no âmbito do fenômeno, daquilo que é apreendido diretamente. Já a substância de uma coisa não é captada só pela observação daquilo que ela apresenta aos sentidos diretamente, mas, ao contrário, apesar de iniciar nos sentidos, a apreensão do que é uma coisa é obra do espírito que intelige ("lê dentro") a estrutura intrínseca que torna aquela coisa o que ela é essencialmente. Voegelin considera essa rejeição científica em tratar da substância das coisas e se focar exclusivamente no fenômeno um ingrediente essencial da mentalidade cientificista.

A atitude acima descrita se espraia para além das ciências naturais, constituindo movimentos intelectuais como o positivismo e o neopositivismo, bem como modernos movimentos políticos de massa como o comunismo e o nacional-socialismo. Afinal, Voegelin aponta, o próprio Lênin havia declarado que o sentido da História é a "transformação da coisa-em-si-mesma em coisa-para-nós, a transformação da essência das coisas em fenômeno". Desse modo, o que importa cientificamente é tão somente o que pode ser acessado por meio dos fenômenos, nunca as naturezas intrínsecas das coisas.

A efetividade da ciência moderna reforça essa tendência. Tomando o caso paradigmático da vitória da física newtoniana, Voegelin analisa a questão da relatividade do movimento. Desde antes de Copérnico os modelos astronômicos dos céus não eram tomados como exatas descrições de como as coisas realmente eram na realidade. Daí que o próprio Copérnico admite que, a depender do referencia adotado, os cálculos matemáticos podem ser simplificados utilizando ora o sistema heliocêntrico, ora o sistema geocêntrico.

Giordano Bruno enfatiza, em seguida, que em um universo cujo espaço é infinito não há nenhum centro ou posição absolutas. A escolha do lugar para a origem das coordenadas é arbitrário. Leibniz, tomando a questão, reafirma que o princípio do movimento depende da exigência de que um corpo seja tomado como em repouso para que o outro seja denominado como em movimento. Ocorre que, no âmbito do movimento relativo, essa escolha é meramente uma hipótese. 

Isto é, como o movimento precisa de um referencial em repouso, e nunca se sabe realmente se um corpo está em repouso, a escolha de um referencia será orientada pelo grau de simplicidade na descrição dos acontecimentos. Em dada situação, uma descrição pode ser mais simples do que outra, a depender do referencial adotado. Isso não torna a descrição mais simples mais verdadeira do que a alternativa. Há uma equivalência entre as hipóteses, de tal modo que, como Leibniz afirma em carta a Huygens, a escolha entre o heliocentrismo e o geocentrismo é matéria de grau de simplicidade descritiva.

A introdução do conceito de um espaço absoluto por Isaac Newton configura-se em uma tentativa de resposta a esse problema. Se todas as posições no espaço empírico, aquele acessado por nossos sentidos, são determinadas pela escolha de um referencial tomado arbitrariamente como em estado de repouso, há que haver um referencial absoluto do movimento que não é alcançado pelos sentidos. Enquanto do ponto de vista prático a região das estrelas fixas pode fazer convenientemente o papel de referencial sensível, do ponto de vista ontológico nada pode ser dito realmente em movimento ou em repouso sem um referencial absoluto.

O problema fica mais complexo se considerarmos que a própria definição do princípio de inércia depende do conceito de repouso algum sentido. Não havendo repouso real, como sustentar que "um corpo permanece em repouso ou em movimento uniforme em linha reta até que ele seja compelido a mudar seu estado pela ação de outras forças impressas sobre ele"? A questão, novamente, não é prática, mas ontológica. Não havendo repouso real, não há movimento real.

Não obstante a importância dos problemas teóricos, Voegelin aponta também razões teológicas na postulação do espaço absoluto por Newton. A redução da matéria à pura extensão realizada por Descartes, e a consequente concepção do universo como uma máquina governada por leis mecânicas cegas, pareceram a Newton como um expulsão de Deus do quadro da realidade. Deveria haver um lugar para Deus no esquema das coisas físicas. 

Então, Newton concebe o espaço absoluto não como pura matéria extensa, mas como o sensorium divino, isto é, o modo como Deus "percebe" e engloba todas as coisas. A necessidade mecânica não poderia produzir a variedade de coisas que testemunhamos somente pode ser explicada pela vontade e as ideias do Ser Absoluto. Ironicamente, os newtonianos, principalmente após a obra de divulgação de Voltaire, esqueceram totalmente as intenções teológicas do mestre e mantiveram somente a afirmação do espaço absoluto. O mundo tornou-se de fato uma máquina material obedecendo a uma lei universal. 

Newton dispensa-se de discutir as implicações metafísicas de suas teorias físicas por meio de sua famosa negação de inventar hipóteses. Todos os fundamentos da física deveriam ser deduzidos exclusivamente da experiência. Porém, a crítica filosófica do espaço absoluto realizada por Berkeley aponta justamente para o fato de que o espaço absoluto nada tem de experimental, dado que pelos sentidos só discernimos movimentos relativos. E, pior, o espaço destituído e abstraído dos corpos percebidos pelos sentidos não é mais do que um mero nada. 

Como a crítica filosófica não persuade o cientista. Este passa a exigir, como Euler, que os filósofos simplesmente aceitem as leis mecânicas como o ponto de partida absoluto de toda investigação natural. Toda questão deve ser abandonada, por mais que a crítica seja definitiva. O filósofo e o cientista encontram-se em um impasse, afirma Voegelin. O filósofo deve ou tentar aclarar a confusão feita pelos cientistas nos seus fundamentos ou deve simplesmente capitular e aceitar o nonsense metafísico e epistemológico. 

A resposta de Leibniz é distinguir entre aquela força intrínseca ao ser da coisa, a vis primitiva, e a força fenomênica, a vis derivativa. A primeira corresponde à essência do ente, sendo objeto da metafísica, enquanto a segunda corresponde às forças observáveis dos seres em interação com os outros, objeto da física. Sobre estas versam as leis naturais que são matematizáveis, muito embora no mundo real não existam entes matemáticos puros na natureza. Não podem ser encarados a não ser como instrumentos para cálculos exatos e abstratos.

Seja como for, a solução de Leibniz é esquecida e vence o mecanicismo de Newton que, como consequência, afeta profundamente as estruturas políticas e econômicas do ocidente. A ciência torna-se tecnologia, há a industrialização da produção e o aumento da população, acontece o nascimento de novos grupos sociais como o proletariados industrial e o proletariado intelectual, as decisões são tomadas cada vez mais longe do homem comum, urbanização da sociedade, etc. O avanço da ciência após 1700, é o fator isolado mais importante na transformação das estruturas de poder e de riqueza.

Ademais, a utilidade da ciência, diz Voegelin, foi o maior incentivo para que fossem colocados à disposição do cientista esses meios de poder e de riqueza. É óbvio que essa utilidade sempre esteve presente na história humana, pois o conhecimento das relações entre causa e efeito nos permite traçar ações com meio a fins determinados. O problema é que essa mentalidade racional-utilitarista alcançou as características de um câncer em crescimento. O domínio da natureza se tornou, ou deve se tornar, a única preocupação da humanidade e a única forma de estrutura da sociedade.

Voegelin adverte que "é preciso que nos resguardemos contra o erro tão frequente em que caíram os críticos dos movimentos totalitários: a crença de que uma ideia é politicamente desimportante porque filosoficamente se trata de um claro disparate. A ideia que a estrutura e os problemas da existência humana podem ser superados na sociedade histórica pelo segmento utilitário da existência é certamente um puro absurdo. (...) Não obstante, o fato de que a ideia é uma tolice não a impediu de se tornar a inspiração do mais forte movimento político de nossa era."

A mesma ideia acompanha não somente os movimentos totalitários, mas também os movimentos liberais e progressistas na medida em que consideram que os males trazidos pela ciência devem ser curados com mais ciência. A ciência que controlou a natureza deve agora controlar a sociedade em nome da construção da sociedade perfeita. Mas o reino dos fenômenos, o âmbito da maestria utilitária, não funciona da mesma forma que o reino da substância. Nenhuma compreensão da substância humana dará a chave para o domínio da sociedade e da história.

O desejo de operar no âmbito da substância como no âmbito do fenômenos é a definição de magia. A conjunção entre ciência e poder insinuaram na civilização moderna um forte elemento mágico. A restrição da experiência humana ao campo da utilidade, da ciência e da razão corresponde a operar sobre a substância do homem por meio do instrumento da pragmática vontade planejadora. O ápice dessa operação mágica é o plano de criar o super-homem, übermensch, que substituirá enfim a triste criatura de Deus, segundo defendido por Condorcet, Comte, Marx, Nietzsche, o comunismo e o nacional-socialismo.

A absolutização da ciência expressa o desejo de se encontrar uma orientação absoluta da existência humana na experiência meramente intramundana. Essa orientação só pode se realizar às expensas de considerações acerca do espírito. A desordem existencial encontra na recusa de Newton, a famosa hypotheses non fingo, uma de suas fontes mais fortes. Voegelin bem percebe e admite que se essa recusa se limitasse a uma medida metodológica dentro das ciências dos fenômenos não haveria grandes problemas. 

Quando, porém, essa  atitude é expandida para o reino da experiência humana, os efeitos são desastrosos. O primeiro efeito é a crença de que a existência humana pode ser orientada em um sentido absoluto por meio da ciência, o que torna desnecessário o cultivo de qualquer conhecimento para além da ciência. A ignorância dos problemas que são existencialmente importantes acompanha passo a passo as façanhas maravilhosas da ciência. 

Em segundo lugar, a orientação existencial não pode ser alcançada pela ciência dos fenômenos. Ela requer a formação da personalidade por meio de instituições. Uma vez que mesmo as instituições educacionais estão sob o jugo científico, há uma força que ativamente obstaculiza o cultivo da substância humana e corrói os elementos sobreviventes da tradição cultural. E no quesito do cultivo da substância, os homens diferem em capacidade. 

Os cultores do pathos cientificista são justamente os deficientes nessa dimensão, e a sua penetração cultural cria um ambiente que privilegia os tipos humanos deficientes. Essa reestratificação que escapa à descrição em termos de classes sociais passou desapercebida, e deve ser expressa em termos de substância humana com o termo eunuquismo espiritual. O século XIX viu a ascensão desse tipo humano deficiente que preparou o terreno para a anarquia espiritual do século XX.

Em terceiro lugar, aparece o arrogante diletantismo em matérias filosóficas. Voegelin dá como exemplo importante do início desse ambiente intelectual a resposta de Clarke a Leibniz acerca das objeções filosóficas deste último ao conceito newtoniano de espaço absoluto. O que o porta-voz de Newton no debate responde a Leibniz, "eu não compreendo", torna-se uma atitude padrão. A incompreensão de Clarke não significa que ele tenha se dado conta de sua ignorância em matéria filosófica, mas, ao contrário, significava que não compreender era uma argumento a favor de suas próprias posições. 

Voegelin aponta aqui para o fenômeno que é ainda muito comum no qual a afirmação de ignorância ou de incompreensão parece adquirir o valor de uma refutação da tese alheia. O que seria meramente uma falácia lógica, um argumentum ad ignorantia, torna-se por si mesma uma demonstração de bom senso e de respeitabilidade intelectual. Em vez de responder à objeção, o interlocutor simplesmente alega que sequer compreendeu o que foi dito por seu adversário, insinuando que este afirmou algo sem sentido que não precisa e não deve ser discutido seriamente.

A atitude descrita acima é bem representada pela arrogância e pela condescendência com a qual os membros do Círculo de Viena encaravam quaisquer declarações que escapassem dos estreitíssimos limites de sua concepção de sentido das sentenças. Rudolf Carnap, em seu Pseudoproblemas na Filosofia, como o título indica, pretendia indicar quais eram as perguntas que poderiam ou não ser feitas legitimamente. Toda proposição que estivesse além ou aquém da sua exigência de conteúdo fatual era considerada uma pseudoproposição.

Segundo Carnap, todas as ciências do real reconheciam a exigência de conteúdo fatual para as suas proposições, e que apenas no domínio da filosofia e da teologia eram aceitas proposições sem tal conteúdo. No suposto trabalho de saneamento da filosofia levado a cabo por Carnap, uma experiência espiritual perfeitamente compreensível como a apresentada por Martin Heidegger em "O que é Metafísica" com a expressão "o nada nadifica" (Das Nichts nichtet) se tornava o exemplo de uma tese cuja mera incompreensão (sincera ou não) seria suficiente para descartá-la como nonsense. 

Voegelin mostra que o prestígio da física de Newton explica em grande parte a vitória social do cientificismo como limitação dos horizontes mental e espiritual do homem. Tudo na realidade sendo reduzido à ciência do fenômeno, mesmo a experiência existencial humana, qualquer outro saber deve ser eliminado ou considerado sem sentido. A consequência é que a limitação mental dos propugnadores dessa tese (graças aos sucessos técnicos, práticos e utilitários da ciência moderna), torna-se uma norma social e favorece a ascensão daqueles que são espiritualmente eunucos.

O diletantismo filosófico desses eunucos nos campos da psicologia materialista, da antropologia filosófica e das ideias políticas é socialmente efetiva, enquanto o argumento do filósofo não o é. Voegelin considera que a vitória do espaço absoluto de Newton foi o primeiro exemplo do sucesso de uma teoria diletante. O cisma se completa meio século após Schelling. Os eunucos formam dali em diante as ideias para as massas. Nos sistemas totalitários o cisma toma a forma da eliminação física dos adversários dos continuadores da tradição.

Friedrich Hayek mostrara muito bem em seu The Counter-Revolution in Science os planos de Condorcet, Saint-Simon e Comte de uma "organização científica da sociedade". Para tanto, nenhum obstáculo deveria se impor ao projeto propugnado de modo tão racional e benéfico a todos. Explicando as teses de Saint-Simon, Hayek cita o francês que via que "a ideia vaga e metafísica de liberdade (...) impede a ação das massas sobre o indivíduo (...) e é contrária ao desenvolvimento da civilização e à organização de um sistema bem ordenado."

Hayek mostra que "Saint-Simon enxerga mais claramente do que a maioria dos socialistas posteriores que a organização da sociedade para um propósito comum, o que é fundamental a todos os sistemas socialistas, é incompatível com a liberdade individual e requer a existência de um poder espiritual que escolhe a direção na qual as forças naturais deverão ser aplicadas." Comte não fica atrás em seu desprezo pela liberdade de consciência. Para ele, assim como na astronomia, na física, na química e na fisiologia não há liberdade de consciência, esta será eliminada quando a política for elevada ao nível de ciência natural.

O cientificismo, permitindo a ascensão dos eunucos espirituais e de sua mentalidade restrita, abriu o caminho para os projetos de organização científica da sociedade, cujos frutos malditos foram a violência e o extermínio nos campos de concentração e nos gulags. Os problemas humanos são sempre espirituais e simbólicos, e a restrição dos horizontes mentais a uma direção existencial intramundana resulta em uma castração substancial do ser humano.

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Leia também:

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* Cientificismo ou cientismo.

quarta-feira, 11 de outubro de 2023

Dionísio Areopagita e a teologia negativa em "Os Nomes Divinos" (Livro I)

"Provamos, ao comentar a Teologia Mística, com base em Platão tanto quanto em Dionísio, que o princípio do universo deve ser mais apropriadamente designado como o Uno em si mesmo e o Bem. Mostramos também que tal princípio é superior ao intelecto e a qualquer inteligível, quão eminente possa ser. Portanto, nenhum intelecto alcança o Bem por um ato intelectual, mas por meio de uma união que é mais verdadeira e melhor que o entendimento."

MARSILIO FICINO, Comentários aos Nomes Divinos

Os tratados atribuídos a Dionísio, o pagão convertido ao Cristianismo pelo apóstolo Paulo no Areópago ateniense (Atos, 17), tiveram uma influência incomensurável na mística e na teologia cristãs desde o seu aparecimento. Textos como a Teologia Mística, Hierarquia Celeste, Hierarquia Eclesiástica e Os Nomes Divinos, representam uma das fontes, junto com Agostinho de Hipona, do neoplatonismo que estará presente durante todo o curso da Idade Média e das épocas posteriores. Não à toa, o mago, padre e filósofo renascentista Marsilio Ficino, em seus comentários aos Nomes Divinos, considerará Dionísio como a culminação da doutrina platônica, "doctrine Platonice culmen". 

A questão central do tratado acerca dos nomes divinos é esclarecer como devem ser entendidos os diversos termos e expressões que a Deus são atribuídos nas Sagradas Escrituras. Sendo o princípio último de tudo o que é real e de tudo o que é possível, o Senhor necessariamente não pertence à classe dos entes deste mundo, e, portanto, não sofre de suas deficiências e de suas limitações. Dito de outro modo, o Princípio é necessariamente superior àquilo que ele principia. 

Assim sendo, nenhum dos termos e das expressões empregados para designar Deus adequam-se a Ele como se adequam às coisas das quais Ele é o Princípio. Dionísio inicia seu discurso já advertindo que, como regra, só devem utilizar-se aqueles termos e nomes revelados pelas Sagradas Escrituras. Essa admissão dos nomes bíblicos deve se dar de uma forma inefável, ultrapassando tanto as nossas capacidades racional-calculativas quanto nossa capacidade intelectiva.

A razão para isso é que a natureza divina é "supraessencial" (ὑπερούσιος, superessentialitas), isto é, está para além das essências. As essências correspondem às naturezas das coisas, ao seu modo de ser, ao tipo de ser que elas são. Deus, na Sua natureza indizível, ultrapassa infinitamente quaisquer essências das coisas limitadas das quais Ele é o princípio. Na medida em que só podemos conhecer o que é limitado, o conhecimento da natureza divina para nós equivale à ignorância. 

Podemos e devemos crer na infalibilidade das Escrituras e empregar somente os nomes ali revelados. Daí não se segue, entretanto, que haja qualquer possibilidade de se compreender Deus como compreendemos algum ente da realidade que nos cerca. A incompreeensibilidade divina é insuperável para nossos poderes de entendimento. Não é possível conhecer os inteligíveis pelos sentidos ou pela imaginação, pois eles são realidades incorpóreas, intangíveis e sem forma (αμορφία).

Analogamente, não é possível conhecer intelectualmente o Princípio que ultrapassa os inteligíveis, o Uno supraessencial, o Intelecto que ultrapassa o intelecto, νοῦς ἀνόητος. Sendo a Causa Universal  da existência, Ele mesmo não existe, pois está para além de todo Ser. Isto é, se consideramos como Ser a característica mais fundamental de tudo aquilo que existe ou pode existir, e sabemos que cada ser é limitado individualmente e em sua essência (seu tipo de ser), então mesmo a atribuição de Ser ou de existência não se aplicam ao Princípio.

Marsilio Ficino, comentando essa passagem, esclarece que "mesmo os Aristotélicos pensam que essência e ser, como os mais comuns atributos, são atribuídos às coisas pelo princípio que é mais comum, e pela causa que é mais universal e mais poderosa. Os Platônicos, por sua vez, supõem exatamente que o primeiro princípio é separado da essência e do ser". Diferentemente dos aristotélicos, os platônicos não veem a fonte do Ser e das essências como um ser, mas, ao contrário, como aquilo que ultrapassa todo o Ser.

Ficino se refere ao fato de que para os platônicos o mundo do Ser é sempre o mundo da multiplicidade. No momento em que um ser X se afirma na existência como X, ele já nega todas as possibilidades de não-X (A, B, C, D...). Consequentemente, o Ser é o âmbito no qual se instaura a limitação, pois ser X implica a limitação de não ser quaisquer das possibilidades de não-X. Para um platônico, então, o Princípio não pode se encontrar na dimensão do Ser, na multiplicidade e na limitação, mas sim naquilo que ultrapassa o próprio Ser.

Na Enéada 5, Plotino identifica o Ser ao Intelecto (νοῦς), o âmbito das verdadeiras substâncias, as Ideias eternas e absolutamente estáveis. A sua estabilidade e a sua real existência provém da definição e da forma. Esse é o cosmos noético, o mundo dos inteligíveis, que empresta inteligibilidade a todos os entes. Plotino afirma que o Ser não pode estar suspenso na indefinição, isto é, tudo aquilo que possui ser é ao mesmo tempo algo inteligível, compreensível, graças à definição que lhe fornece a sua essência, seu tipo de ser.

A inferência é clara: só possui inteligibilidade aquilo que é definido, portanto limitado. Só compreendemos o que é inteligível, portanto aquilo que está para além do mundo da limitação é para nós incompreensível. Plotino ensina que Platão denominava "Pai da causa" aquilo que estava na origem do Intelecto ou Ser, a saber, o Bem que é Supraessencial. O Uno, ou o Bem, dado que é o fundamento da multiplicidade, é anterior à Identidade e à Diferença, e ao Número. 

"Antes da Díada está o Uno. A Díada vem em segundo, e, tendo vindo do Uno, o Uno impõe definição à ela, enquanto o Uno mesmo é indefinido", afirma Plotino. E acrescenta que Parmênides não estava longe disso quando identificou o Ser ao Intelecto, e afirmou que só há pensamento dentro da Esfera do Ser, que tudo contém e nada é externo à ela. Platão, no Parmênides, fez a mesma coisa, quando distingue o Um, propriamente dito, do um-muitos (o Ser). Aristóteles, embora ensinasse que o primeiro princípio era separado e inteligível, ao afirmar que ele pensa a si mesmo, não pôde mais fazê-lo o primeiro princípio de todas as coisas. 

Ficino comenta que pela luz natural da razão humana podemos saber que Deus existe, o que Ele não é, o que Ele cria e como é Sua governança do mundo, e, por fim, qual a condição das coisas com relação a Ele. Mas pela razão natural é impossível saber a Sua natureza. A razão natural é poder de conhecimento que todos os seres humanos possuem por serem seres humanos. Dado que a nossa razão discursiva e o nosso intelecto só alcançam as essências limitadas, elas não podem penetrar na vastidão infinita do Princípio. 

A única forma de ultrapassar tais limites é um tipo de "união divina" por meio de "um tipo de luz que é mais que natural", afirma Ficino. É preciso compreender que essa união, experimentada inclusive por Plotino quatro vezes em sua vida, implica no desaparecimento de toda dualidade, mesmo aquela que há entre sujeito e objeto. Não à toa, ao fim dessa unio mystica, nada ou quase nada pode ser dito por aquele que a experienciou. Tudo permanece um mistério insondável tanto para o agraciado por essa união quanto para aqueles que tentam compreender o que se passou com o místico.

Dionísio prossegue afirmando que, mesmo com todos os nomes revelados pelas Santas Escrituras, a natureza divina permanece supraessencialmente inacessível. A luz do Princípio se difunde e alcança as coisas de acordo com as suas respectivas capacidades. Só Deus conhece Deus. As coisas O conhecem somente na medida de seu próprio ser. A doutrina neoplatônica aqui exposta é a da famosa participação. 

Participar é ter parte em algo. É receber parte de ou atuar de modo limitado em uma realidade. Nunca há identidade entre o participante e o participado, isto é, o participante sempre está no âmbito da parcialidade e da limitação. Se digo que Pedro e João são dotados de Razão, não quero com isso afirmar que eles são idênticos à Razão. Pedro e João possuem não a Razão de forma absoluta, mas somente de forma parcial. Ambos possuem o mesmíssimo conjunto de características essenciais da Razão, só que sempre em medida limitada. 

Assim, a luz divina se manifesta igualmente em todos os seres sem que isso implique que os seres sejam essa luz infinita. O seu próprio ser é uma limitação, um "afunilamento" de uma realidade que, em si mesma, é infinita e sem limites. Ficino expressa essa verdade dizendo que "o conhecimento de Deus em Si mesmo existe em Deus acima das essências. Não obstante, o conhecimento de Deus nas coisas subsequentes não transcende os limites da essência". Deus somente conhece Deus tal como Ele é. Nós conhecemos Seus rastros no mundo. Vemos os raios de luz, não o próprio Sol. 

As coisas dependem absoluta e ontologicamente de Deus. Em seu comentário, Marsilio Ficino descreve essa dependência nos seguintes termos:

"Tudo aquilo sobre o que falamos nas coisas depende inteiramente de Deus, e igualmente Deus está presente como o mais profundo interior em todas as coisas (...) Olhe para uma imagem, se houver, em um espelho. Ela (a imagem) depende de tal modo da pessoa viva, que sua essência, poder, mudança, e repouso são a própria pessoa - a pessoa viva que está olhando a si mesma no espelho. Muito mais, então, Deus, Ele próprio, é a essência das coisas, a vida, o poder, o ato, a perseverança, a perfeição, a reforma. E, nas almas, Ele é sua pureza, iluminação, perfeição e divindade."

A analogia de Ficino significa que a imagem no espelho não é a pessoa viva que olha a si mesma pelo seu reflexo. A imagem (εἰκών, ícone) é uma representação, uma imitação da pessoa que se posta diante do espelho. Ela depende de modo absoluto da pessoa da qual é a imitação. Mas não há identidade entre ambas. A imagem participa, possui algo, da pessoa real. Trata-se de semelhança, jamais de identidade. A pessoa é a essência da imagem no sentido de que é a pessoa que transmite, sempre parcialmente, tudo aquilo que sustenta a existência tênue e fugidia da imagem.

A representação não existe a não ser a partir do representado. Ela é uma figura limitada, circunscrita e insubstancial do ente verdadeiro da qual é uma representação. A imagem esculpida de Atena jamais será a deusa de glaucos olhos. Não haveria a escultura sem a deusa que ela representa. Porém, a estátua é uma imagem da venerável deusa que imita alguns de seus atributos, sem jamais igualar-se substancialmente àquela que saiu da cabeça de Zeus completamente armada.

Ficino recorda que, por mais que Deus esteja no mais profundo das coisas, Ele é o Princípio supraessencial, e que não há comensurabilidade entre Ele e as criaturas. Dionísio afirma que Deus é o "princípio acima do princípio" por conta de Sua supraessencialidade. Ele é a Vida de tudo aquilo que vive, o Ser de tudo aquilo que existe, a Origem e a Causa de tudo que existe, existiu e vai existir. Deus é analogamente a pessoa diante do espelho que é a fonte da tênue existência da imagem refletida.

A inefabilidade e a incognoscibilidade do Princípio foram recobertas simbolicamente pelas Escrituras com termos provenientes do mundo sensível, como véus sagrados*, roupagens que nos permitem acessar imperfeitamente o Inacessível. Dionísio faz alusão a um tratado de sua autoria intitulado Teologia Simbólica que, infelizmente, não chegou a nossos tempos. Ele ali considera os nomes divinos apresentados nas Escrituras como símbolos. Qual seria o sentido desses símbolos? 

A filósofa, teóloga, santa e mártir Edith Stein, em um estudo dedicado à teologia simbólica de Dionísio Areopagita (curiosamente um dos seus últimos textos antes de sua prisão e de seu assassinato em Auschwitz), aponta que os Mistérios Divinos se manifesta sob os véus das espécies sensíveis. Os símbolos das Escrituras demandam interpretação para que não sejam tomados em sentidos grosseiros e literalistas. Aquele que souber compreendê-los encontrará neles muitos traços de luzes reveladoras:

"Tal é justamente o sentido desses símbolos: trata-se afastar aquilo que é santo do olhar profanador dos tolos, e de apresentá-lo àqueles que buscam a santidade, que se libertaram das representações infantis, e que adquiriram uma sabedoria suficiente para entrar na consideração da simples Verdade."

Dionísio prossegue no seu texto reafirmando a incognoscibilidade sensível, imaginativa, racional e intelectiva de Deus. O Uno, o Supraessencial, o Bem Absoluto é inacessível até aos anjos, e as comunicações místicas que esses seres têm com Deus estão para além da descrição e do seu conhecimento natural. Do mesmo modo, aquelas entre as almas que entram nesses estados de união são introduzidas e deificadas, por meio da cessação de suas atividades naturais, na Luz que ultrapassa a Divindade, e só concebem celebrar seus louvores negando a Deus todos e quaisquer atributos.**

Deus é "a Causa de todas as coisas, e, ainda assim, Ele mesmo não é nada, pois transcende supraessencialmente todas elas", afirma o Areopagita. Não é justo celebrar a Supraessência da Divindade como Razão, Poder, Mente, Vida ou Ser. Os escritos sagrados afirmam que Deus possui a um só tempo muitos nomes e, ainda assim, permanece sendo o Inominável. Os nomes que Ele recebe são os reflexos d'Ele nas coisas. Na qualidade de Bem, Deus é a Causa, a Origem e o Fim de todas as coisas. 

Consequentemente, todos os nomes Lhe pertencem, dado que as perfeições com as quais O nomeamos têm sua exclusiva origem Nele. Todas as coisas, enquanto contidas no Princípio, são o próprio Princípio. Ficino comenta que "todas as coisas estão e igualmente não estão em Deus, da mesma forma que uma casa está em um arquiteto, como as formas dos membros estão no vegetal e na natureza seminal, como o calor está no Sol, os números no número um, como o comprimento de uma linha está contida no ponto".

Em Deus, nenhuma das coisas residem na forma finita na qual existem aqui ou são imaginadas aqui. O que é múltiplo nas coisas, em Deus é absoluta Unidade. Pela via da excelência, Deus é todas as coisas em tudo. Pois Nele tudo é absoluto poder, o próprio Deus ilimitado. Ficino usa uma fórmula próxima da coincidentia oppositorum empregada por Nicolau de Cusa. Em Deus tudo é Deus. Nada disso implica qualquer identificação substancial entre o Princípio e o principiado. 

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Leia também: 

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* Na Kabbalah, um dos símbolos da manifestação das coisas é o Pargod, o véu visível por trás do qual se esconde o Ain Soph, a natureza imanifestada e imanifestável, indizível e incompreensível de YHWH. No mundo muçulmano, o tema dos véus de Al'lah é também frequente.
** Compare-se essa negação dos atributos divinos às doutrinas de Ibn Sina e de Moisés ben Maimônides sobre o mesmo tema: 
Νεκρομαντεῖον: Ibn Sina e a natureza de Deus (oleniski.blogspot.com)
Νεκρομαντεῖον: Maimônides, Torá e a negação dos atributos de Deus (oleniski.blogspot.com)

terça-feira, 3 de outubro de 2023

Meister Eckhart, a alma e a unicidade divina

"Posso adquirir a sabedoria, e posso também perdê-la. Mas tudo aquilo que está em Deus, é Deus. E isso não pode escapar-Lhe."

MEISTER ECKHART, Sermão 3

O místico, teólogo e frade dominicano alemão medieval Meister Eckhart, em seu Sermão 2, interpreta simbolicamente o texto evangélico de Lucas 10, 38 segundo o qual Jesus havia subido a uma aldeia e ali havia sido recebido por uma mulher que era uma virgem. A virgindade designa o ser humano cuja alma é tão vazia de imagens estrangeiras quanto vazio seria antes de haver existido.

O tema do vazio é caro a Eckhart e se refere tanto a Deus quanto à alma quando unida àquele mesmo fundamento último, uno e indizível. Em Sua essencialidade simples, Deus é puro vazio, não-ente, e o homem, na medida em que mantém-se apegado a qualquer coisa que não seja Deus, mostra não haver ainda alcançado a Gelassenheit, o desapego absoluto no qual todas as coisas são transcendidas no vazio divino. A alma é ali tão vazia como era antes mesmo de sua própria existência.

A questão é saber como um homem pode estar tão desapegado de tudo quando está neste mundo cercado de entes. Para Eckhart nada há aí de impossível, pois não se trata de negar as coisas depois que a alma e elas vieram à existência. Bem diferente disso, a Gelassenheit significa retornar intimamente ao seio indiviso de Deus, a raiz de todas as coisas, antes que todas as coisas tomassem existência. Em outros termos, o vazio de Deus não nega as criaturas, mas, ao contrário, é o seu fundamento e as contém como seu princípio derradeiro.

Nesta vida é possível viver de tal modo que não se considere como propriedades quaisquer das nossas ações realizadas. E, mais ainda, é possível viver na eternidade, lá mesmo onde indizivelmente não há outra coisa senão o Filho sendo gerado eternamente pelo Pai. A virgindade é, assim, a afirmação exclusiva de Deus que, por assim dizer, reabsorve todas as criaturas em Si mesmo no próprio ato de Seu aparecimento. 

Dito de um modo filosófico-metafísico, o Ser só "aparece" no desaparecimento dos entes. Usando uma analogia, aquele que tem diante de si uma paisagem só pode contemplá-la inteiramente se não enxerga esta árvore ou aquela pedra. Isto é, o Todo só se encontra quando a parte desaparece. Se o foco permanece nisto ou naquilo, a paisagem se perde como totalidade. Mas se isto e aquilo "desaparecem" como objetos de foco, a paisagem "aparece" como totalidade em que tudo está nela contido, ainda que de forma não distinta ou separada.

O vazio de Deus não é infrutífero, entretanto. Não é o Nada da negação absoluta de todo ser real ou possível. O vazio da alma não pode, por conseguinte, ser ele mesmo infrutífero. Eckhart ensina que é por isso que a virgem da passagem evangélica é chamada de mulher. Os frutos da gravidez dessa mulher são as ações realizadas pela alma vazia sem nenhuma pretensão de propriedade, dado que advém exclusivamente da vontade divina. O fruto máximo é, obviamente, o Cristo, que é gerado pelo Pai ali naquele fundo indizível e insondável de Deus.

Eckhart reafirma em seguida sua doutrina de que "há na alma humana uma potência que não é tocada nem pelo tempo, nem pela carne, que emana do espírito  e permanece no espírito e é absolutamente espiritual." Surpreendente ensinamento segundo o qual há na alma algo mais alto ou mais profundo que a alma e suas potências mais humanas como o intelecto e a vontade! O espírito, spiritus, Geist em alemão, designa a mens de Agostinho, geralmente traduzida como alma ou mesmo mente. 

Na metafísica de Eckhart, mens ou Geist adquire o significado de um fundo na alma que não é tocado por nada, fora das variações da vontade ou das intelecções. É nessa potência abscôndita que se encontra o Deus Absconditus, onde o Pai eternamente engendra o Filho que é Ele mesmo. Nesse fundo indizível e inexprimível anterior a todas as diferenciações, alma e Deus se encontram em um Grund, ground, fundamento. 

Filosoficamente, esse fundo pode ser designado mais precisamente como Urgrund, fundamento primeiro ou originário de todas as coisas. O Urgrund só se encontra quando todas as coisas desaparecem, inclusive a própria alma naquilo que ela possui de cambiante e de determinado. Eckhart afirma que se só por um instante a alma contemplasse Deus como Ele é nesse fundo, a alegria seria tanta que, ainda que a alma fosse condenada a uma vida de sofrimentos mais atrozes do que quaisquer outros infligidos na história a um homem, ela suportaria tudo até o fim.

Sem dúvida, o que seriam os sofrimentos humanos diante da beatitude divina? Ivan Karamazov pode querer devolver o seu ticket para o Paraíso se isso implicar no sofrimento de tantos inocentes. O problema é que não existe comensurabilidade entre o temporal e o eterno, de modo que o instante que não perdura, e que não pode perdurar entre dois agoras sob pena de tornar-se tempo, é inimaginável (imaginação é proveniente dos sentidos). 

Comumente, podemos, no máximo, inteligir, compreender o significado do conceito de instante que caracteriza a eternidade. Se o experienciássemos em um só instante, todo o tempo desapareceria e, com ele, todo o câmbio que gera a possibilidade do sofrimento. Eckhart, contudo, não se limita a dizer que os sofrimentos, por mais atrozes que sejam na dimensão temporal, nada são quando tomados na eternidade divina. 

Mesmo que Deus, depois de haver permitido a um homem contemplá-Lo nesse instante eterno, negasse a ele em seguida o Reino dos Céus, tal homem teria recebido maior salário por todo o seu sofrimento. O homem unido a Deus nesse nunc aeternitatis, nesse agora eterno, jamais envelheceria, pois o instante em que Deus cria o primeiro homem e aquele em que o último homem desaparece coincidem perfeitamente no Senhor. E mais, ele nunca sofreria ou se abalaria com nada, e teria nele mesmo todas as coisas de modo substancial.

O significado dessas declarações surpreendentes é mais simples do que parece à primeira vista. Se o homem vive unido a Deus nesse Urgrund, nesse fundamento originário, ele e Deus são uma só realidade. Isto é, nesse fundo comum anterior a toda diferenciação, tudo é Um, nada há de distinto e de determinado (aquilo que tem termo, fim, limite). Ali, no fundo indizível onde Deus é puro Um, todas as coisas estão contidas substancialmente, ou seja, tudo o que pode e o que não pode existir está unido indistintamente naquele que é o único que realmente existe no sentido mais excelso do Ser. 

A pouca substancialidade que os entes possuem, o que caracteriza a sua indigência ontológica, eles a recebem exclusivamente de Deus. Nenhum ente possui o poder de existir como uma propriedade de sua essência. Consequentemente, em Deus convivem todas as possibilidades antinômicas justamente porque elas ainda não se realizaram, não se tornaram reais no mundo temporal. O homem unido a Deus nesse fundo é ele mesmo o próprio Deus, e possui tudo o que está contido na onipotência divina.

Regressar ao fundamento originário, por assim dizer, é desaparecer para si mesmo, é despojar-se de seu próprio ser limitado, tênue e diminuto, para "tornar-se" o próprio Deus na Sua unicidade suprema que não admite qualquer possibilidade de um outro. Como Eckhart adverte na sua interpretação simbólica da passagem evangélica, nada impede que essa realidade seja vivida neste mundo, em meio aos entes que nos cercam e que parecem esconder a face divina. 

O homem liberto em vida (jīvanmukta) é exteriormente idêntico a qualquer homem que come e bebe, acorda e dorme, e vive entre os outros homens. Os entes só são obstáculos para aquele que os toma ou quer tomar para si como coisas que lhe são próprias. Não somente os objetos externos, mas também seu corpo e aquilo que lhe é interior, como a vontade própria e até mesmo o fato de sua existência. Nada nos pertence, até mesmo o nosso ser. Reconhecido isso, retorna-se ao fundamento originário nesta vida, e se vive como se não se vivesse mais.

"Se alguém quiser seguir-me, negue-se a si mesmo", diz o Cristo. O si mesmo a ser negado é, segundo Eckhart, muitíssimo mais radical (radix, "raiz" em Latim) do que a renúncia ao pecado e aos desejos desordenados. É uma renúncia a tudo que comumente pensamos ser nosso, inclusive, e mais fundamentalmente, o nosso próprio ser como um suposto ente independente e que existe por si mesmo. "Pois quem quiser salvar a sua vida a perderá; mas quem perder a vida por minha causa, este a salvará". O homem só salva a sua vida perdendo o seu ser no Um divino, e, desse modo, tornando-se o próprio Um.

Eckhart prossegue dizendo que essa potência do espírito que ele por vezes adjetivou como separada e livre, luz do espírito, pequena fagulha, na verdade não é isso e nem aquilo, é livre de todo nome e destituída de toda forma. "É tão completamente una e simples quanto Deus é uno e simples",* afirma o místico alemão. Tão acima está de "todo modo e de todas as potências", ela que é o Um, que nenhum modo ou potência, nem o próprio Deus a pode contemplar. 

Novamente, uma afirmação chocante é apresentada. Sim, compreende-se que todo o modo e toda a potência, na medida em que são realidades distintas e delimitadas, não podem participar do ens realissimum que é igualmente ens simplissimum. Não obstante, o próprio Deus não pode contemplar Sua própria simplicidade? A fim de compreender Eckhart, é necessário recordar que a beatitude se encontra justamente naquele fundo indizível "anterior" à própria geração eterna do Verbo. 

O belíssimo prólogo do Evangelho de João diz: "No princípio (ἀρχῇ, arkhêi) era o Verbo, e o Verbo estava em Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez". Há uma plena comunidade de natureza (ὁμοούσιος) entre Pai e Filho desde toda a eternidade. Por outro lado, há diferença entre as hipóstases, as Pessoas divinas, na medida em que o Pai não é o Filho. E foi pelo Verbo que tudo que há foi criado. 

A geração do Filho não é uma criação ex nihilo, a partir do nada. As criaturas é que foram tiradas do nada para o ser. O Verbo, ao contrário, está em Deus desde toda a eternidade, ou seja, atemporalmente. Não houve um momento no qual o Filho não fosse coetâneo ao Pai justamente porque em Deus não há momentos, variações de antes e depois. Então, quando Eckhart diz em outro escrito que quer conhecer Deus antes que Deus seja Deus, ele não está dizendo que Deus tenha mudado de condição, como se houvesse passado de não-Deus a Deus.

Similarmente, mas não de modo idêntico, o Intelecto (νοῦς) emana do Uno (ἓν), nas Enéadas de Plotino, desde toda a eternidade. Não há nenhum tipo de mudança ou de movimento, como se algo saísse do Uno após estar contido nele. O Uno é o fundamento da realidade, isto é, é o princípio que sustenta todas as coisas, é absolutamente coetâneo àquilo que ele fundamenta. Usando uma analogia, os fundamentos de um prédio são simultâneos ao prédio, dado que sem eles nenhum dos andares que compõem o edifício podem permanecer onde estão.

Todavia, em certo sentido, Deus é Deus somente para as criaturas, enquanto seu Criador. A relação Criador-criatura só existe na criatura. É o ser criatural das coisas que "torna" Deus Criador, pois, em Sua essência divina, nada exige que Deus crie o que quer que seja. Estritamente nesse sentido, Deus se torna Deus somente na Sua relação causal com as criaturas. Não se trata, de novo, de uma mudança temporal em Deus, como se em algum momento Ele não fosse o Criador. 

Trata-se apenas do fato de que os termos Criador e Deus não designam a natureza insondável de Deus, mas tão somente a relação que nós, criaturas, temos com Ele. Deus é Deus para nós, não para Ele mesmo. Quando Eckhart deseja encontrar-se em Deus antes que Deus fosse Deus, ele deseja penetrar na puríssima simplicidade divina em si mesma, onde não há nenhuma relação ou distinção. Na tradição apofática neoplatônica cristã que remonta a Dionísio Areopagita, até o nome Deus não cabe na excelsa e insondável natureza divina. 

Dito de outro modo, até Deus pode ser um obstáculo para se conhecer Deus. Temos agora a chave  para compreender o que Eckhart ensina ao afirmar que esse fundo indizível do divino não pode ser acessado por nenhuma potência ou modo, e que nem o próprio Deus a pode contemplar segundo o modo das Pessoas. Se as Pessoas da Trindade são diferenciações, apesar de possuírem igualmente a mesma natureza divina, então a penetração no fundo, no Urgrund, só pode se dar quando Deus "deixa de ser" Trindade. 

Eckhart é cristão, não está dizendo que a Trindade seja diferente de Deus. O que ele está querendo expor é que a natureza divina, a divinitas, que é a mesma nas três Pessoas, é simplíssima e sem diferenças: "eis a razão pela qual, se Deus quiser alguma vez lançar ali um olhar, isso custará necessariamente todos os Seus nomes divinos e Suas propriedades pessoais". O mestre alemão não está insinuando nenhuma mudança ou ignorância em Deus. Ele está usando a linguagem humana, apropriada aos entes limitados desse mundo, para expressar a intimidade ilimitada da vida divina.

Obviamente, Deus conhece a Si mesmo do modo mais perfeito possível desde toda a eternidade. O místico alemão jamais negaria isso. Ocorre que a contemplação de Eckhart desce, atravessando toda e qualquer diferenciação, inclusive a das Pessoas da Trindade, para alcançar o fundo originário da essência divina, esse "Um sem modo ou propriedade". E é nesse fundo simplíssimo que a alma e Deus se encontram como que em um terreno comum. 

No Sermão 3, Eckhart repete o tema da nobreza da alma ao asseverar que os mestres do passado não encontravam nenhum nome para designá-la. O seu fundo se encontra lá onde Deus "ainda" não se tornou Deus, onde a verdade e a cognoscibilidade "ainda" não se manifestaram, onde não há emprego de quaisquer nomes. Deus é uma fixação (fixatio) à Sua pura essencialidade, que nada admite de externo. Deus é uma "insistência em si mesma, onde não há isto ou aquilo. Pois tudo o que está em Deus é Deus."

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* Na linguagem vedantina, neti neti (nem isso, nem isso), amurtah (sem forma, sendo que "nome e forma", nama-rupa, são as características essenciais do mundo fenomênico). A alma é tão una e simples quanto Deus é uno e simples, Atman Brahman são uma só e a mesma realidade. O fundamento último, Brahman, por sinal, é o Um sem segundo.

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Νεκρομαντεῖον: Meister Eckhart (oleniski.blogspot.com)

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