sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Comentário curto ao Mênon de Platão (parte 3)


Curiosamente, depois da evidência do conhecimento geométrico do escravo, Mênon muda de novo o rumo do diálogo, desejando retornar à questão inicial acerca da possibilidade de ensino da virtude. Sócrates adverte que, se fosse por seu desígnio, não procederiam de tal forma, pois como alguém pode saber se algo é ou não ensinável se não sabe qual a natureza da coisa da qual se questiona ser ou não ser ensinável? É mister captar o eidos de algo antes de saber se esse algo é ensinável.

Para agradar Mênon, Sócrates deixa de lado a indução e a definição e admite o uso de um argumento hipotético, inspirado pela geometria: dadas tais condições, tais serão as consequências. Em outros termos, o raciocínio aqui empregado é se P, então Q. A negação de Q implica logicamente a negação de P (Modus Tollens). Ocorre que a afirmação de Q não implica a verdade de P. O resultado da argumentação será ou uma negação de P ou uma afirmação ainda hipotética de P.

Já que Mênon não sabe o que é virtude, mas deseja mesmo assim saber se ela é ensinável, Sócrates formula uma hipótese útil segundo a qual se a virtude for ciência, será ensinável. Obviamente, se a virtude não for ensinável, não será ciência. O termo ciência é empregado aqui no sentido de um conhecimento certo (ἐπιστήμη, episteme) contraposto à mera opinião (δόξα, doxa). A questão seguinte é saber se a virtude é uma ciência.

Ora, a virtude é reconhecidamente um bem e se a ciência engloba todos os bens, a virtude será englobada pela ciência. O bem, por sua vez, é proveitoso e as coisas boas são proveitosas. Ocorre que as coisas proveitosas podem ser danosas em alguns casos. Sendo assim, há algo que torna as coisas proveitosas benéficas em certos momentos e cuja ausência as torna danosas em outros momentos. As coisas boas serão proveitosas somente na medida em que forem acompanhadas da compreensão de seu uso adequado de acordo com as circunstâncias. Por exemplo, a coragem é um bem, mas se for desacompanhada da compreensão de seu uso adequado, torna-se temeridade, algo que é nocivo.

Sócrates afirma então que o que torna benéficas as coisas proveitosas é a compreensão (φρόνησις, phronesis) e que a ausência de compreensão torna danosas as coisas proveitosas. A virtude é um bem e o bem é proveitoso. Mas quando consideramos tudo o que é proveitoso entre as coisas internas e externas à alma, percebemos que as coisas boas só são proveitosas quando acompanhadas pela compreensão. As coisas são boas na medida em que são regradas pela compreensão. Se a virtude é boa, então é regrada pela compreensão. Virtude é phronesis.

Agora, dado que a virtude é phronesis, não parece que os homens possam ser virtuosos por natureza. E se não são virtuosos por natureza, não seria o caso de que os homens são virtuosos por ensino? Se a virtude é ensinável, ela é ciência. Parece que foi confirmada aqui a hipótese útil segundo a qual se a virtude for ciência, será ensinável. Se a virtude é ciência, ela é um bem; os bens são proveitosos, e aquilo que é bom só é proveitoso na medida em que é regrado pela compreensão. A compreensão, portanto, é o fundamento do proveitoso, do bem, da ciência e, portanto, da virtude.

Mas Sócrates não está satisfeito e formula uma dúvida que desempenhará o papel dialético de uma razão contrária à tese de que a virtude é uma ciência. Se a virtude é ensinável, então haverá mestres e discípulos da virtude. Se não houver mestres e discípulos, a virtude não será ensinável. Novamente a estrutura é de um condicional se P, então Q. Não se dando Q, então P não será verdadeiro. 

A dúvida de Sócrates se baseia na ausência de mestres e de discípulos em matéria de virtude. A evidência que ele apresenta é sua própria busca infrutífera por mestres da virtude. Sócrates declara que procurou e não encontrou ninguém que pudesse ensinar outrem a ser virtuoso. Mas a evidência é, no máximo, pessoal e circunstancial. Não é possível inferir que não haja professores de virtude só porque alguém os buscou e não os encontrou. Toda força do argumento reside na confiança tanto no testemunho de Sócrates acerca da sinceridade de sua busca quanto na sua capacidade de reconhecer os supostos mestres da virtude.

Sócrates parece perceber a fragilidade de seu argumento e convoca um outro interlocutor, Ânito, filho de um homem rico e alegadamente sábio, para participar da discussão. O filósofo apresenta a Ânito a tese clássica segundo a qual quem deseja aprender uma arte (τέχνη, techné) deve procurar um mestre reconhecido naquela arte. Por conseguinte, se alguém quer aprender virtude, deve procurar aqueles que se identificam como professores nessa matéria. Sócrates refere-se aqui aos sofistas, aqueles que sabidamente alegavam ser professores de virtude e que se dispunham a transmitir seu conhecimento aos jovens gregos mediante pagamento.

Ânito, ao ouvir falar dos sofistas, afirma que nenhum dos seus e nem seus amigos teve qualquer contato com esses professores da virtude. Sócrates pega o gancho e indaga se os sofistas não somente não realizam aquilo que prometem realizar, mas que também estragam o que deveriam aperfeiçoar. Em seguida, afirma que Protágoras, o famoso sofista, ganhou mais dinheiro que o igualmente famoso escultor Fídias que, por sinal, realmente entregou as obras que prometeu.

Se o que Ânito diz é verdade, então Protágoras corrompeu a juventude grega por quarenta anos sem ser incomodado. O contraste com o julgamento futuro de Sócrates é evidente, pois o filósofo será acusado exatamente de corromper os jovens atenienses. É como se, anos antes de seu próprio julgamento,  no qual Ânito seria um dos acusadores, Sócrates acusasse Atenas de haver permitido que um sofista enganador corrompesse a juventude livremente. O efeito retórico é poderoso. Atenas teve bem debaixo de seu nariz um aliciador e condenou um inocente.

Terminada a digressão socrática sobre Protágoras, a discussão retorna a Ânito, e este admite que não conhece diretamente os sofistas. A evidência contra os sofistas é fraca, baseada na opinião de Ânito que confessa não conhecer de perto esses supostos professores. O que torna o discurso de Sócrates um mero condicional apoiado no testemunho de alguém que não conhece realmente os sofistas. 

Retomando o curso da discussão, contra a tese de que a virtude é ensinável, Sócrates levantou a dúvida de que houvesse realmente professores de virtude, pois ele mesmo não os havia encontrado, debalde seus esforços. O testemunho de Ânito contra os sofistas, alegadamente mestres da virtude, não reforça a dúvida Sócrates. O argumento do filósofo é fraco, baseado somente em sua experiência pessoal, e o testemunho de Ânito não é sequer baseado em algum contato com os sofistas. Entretanto, a questão se há ou não mestres e discípulos em matéria de virtude permanece. 

Sócrates conclama Ânito a dizer quem ele considera que seriam os professores de virtude em Atenas, dado que já haviam abandonando explicitamente a discussão sobre os sofistas. O interlocutor responde que seriam mestres da virtude quaisquer dos homens de bem da cidade. Sócrates responde que a discussão não é exatamente sobre se há ou não homens bons em Atenas, pois certamente há e houve sempre homens bons. A questão em debate é saber se a virtude é ensinável e, por conseguinte, se esses homens bons são ou foram capazes de transmitir a outrem, como a seus filhos, o conhecimento da virtude.

O tipo de argumento utilizado por Sócrates será novamente a confrontação da tese de Ânito com exemplos contrários. Temístocles, reconhecidamente sábio, conseguiu tornar seu filho um homem sábio? A resposta é negativa. O filho de Aristides, o justo, é sábio? Resposta negativa. E o filho de Péricles? Também aqui a resposta é negativa. Ânito se irrita com Sócrates e o acusa de falar mal desses grandes homens. 

Sócrates deixa o emburrado Ânito de lado e retorna a Mênon. Parece realmente não haver professores de virtude, pois o próprio Sócrates nunca os encontrou, os sofistas foram descartados e mesmo os homens bons parecem não ser capazes de ensinar a virtude sequer a seus filhos. A tese de que a virtude é phronesis, compreensão, implicava que a virtude seria ensinável, mas, como opôs Sócrates, aquilo que é ensinável possui mestres e discípulos, algo que parece não ser o caso nem mesmo quando se trata de homens reconhecidamente bons. 

O filósofo ateniense pergunta a Mênon se ele conhece algo como a virtude cujos pretendidos mestres não somente não são reconhecidos como tais, mas que também aqueles que são reconhecidos como virtuosos não concordam entre si acerca da possibilidade de seu ensino. Ele responde negativamente. Se nem os homens bons são professores de virtude, então parece não haver mestres da virtude, o que confirma a objeção socrática de que aquilo que não possui mestres e discípulos não pode ser ensinado. A questão parece restar decidida.

Todavia, Sócrates abre uma outra possibilidade. Algo escapou a ambos, Sócrates e Mênon: se é verdade que os homens bons, para que sejam bons, devem ser proveitosos, como se disse acima, não é verdade também que aquele que não sabe, mas tem uma opinião correta (ὀρθός, "correta" e δόξα, "opinião"), não é ele mesmo também proveitoso? E aquele que guia os outros, mesmo sem ter ciência, apenas possuindo opinião correta, não é ele um guia tão eficiente quanto aquele que possui conhecimento certo?

A opinião correta não é, então, um guia inferior à compreensão. Isto é, Sócrates abre a possibilidade de que a virtude não seja ciência, um saber reconhecidamente certo, e sim uma opinião verdadeira, uma afirmação que corresponde à realidade, mas que carece da compreensão de suas bases. Em termos práticos, porém, a opinião correta não teria menos efeitos benéficos que a ciência. Mas certamente há diferença entre uma e outra. 

A diferença reside em que a opinião correta é como as estátuas de Dédalo que, de tão perfeitas, aparentavam poder fugir se não fossem encadeadas ou atadas (δεδεμένον), enquanto a ciência é justamente uma estátua presa a seu lugar. Embora sejam belas, as estátuas de Dédalo soltas podem escapulir de uma hora para outra assim como a opinião correta, embora verdadeira e útil, não lança suas raízes na certeza e pode ser perdida a qualquer momento. 

As opiniões corretas só adquirem a estabilidade das estátuas atadas quando a elas é acrescentado um raciocínio ou cálculo de causa (αἰτίας λογισμός). Sócrates acrescenta que este só é alcançado pela anamnese. Quando são encadeadas desse modo como as estátuas de Dédalo é que as opiniões corretas tornam-se ciência e, por conseguinte, adquirem estabilidade. O caráter estável do conhecimento é que o torna mais valioso do que a simples opinião verdadeira.

O ponto é interessante porque Sócrates retorna ao tema da apreensão do eidos do que é a coisa. Mênon, desde o início do diálogo, tem dificuldade de entender o processo de apreensão da natureza da virtude, confundindo reiteradamente os exemplares com a estrutura formal que os exemplares instanciam. É por causa dessa dificuldade e da dúvida levantada por Mênon acerca da possibilidade de conhecimento humano que Sócrates empreendeu a demonstração performativa da realidade da anamnese por meio do questionamento do escravo.

Sócrates reitera que o conhecimento certo da natureza eidética de algo é alcançado pela anamnese, o que foi exemplificado performaticamente pelas perguntas dirigidas ao escravo que nada sabia de geometria. É mister relembrar que a discussão até aquele momento fôra dirigida por Sócrates e buscava a apreensão intelectual do eidos da virtude por meio da indução e da dialética. Como o próprio Sócrates advertiu naquele momento, não seria possível saber seguramente se a virtude é ensinável a não ser pela captação do eidos da virtude. Em outros termos, só é possível saber se algo é ensinável se soubermos antes o que é esse algo.

Mênon, entretanto, recusou esse caminho apontado por Sócrates e o instou a responder à questão se a virtude é ensinável mesmo sem saber antes o que é a virtude. Explicitamente a contragosto, Sócrates redirecionou a investigação utilizando uma hipótese útil na forma de um condicional (se P, então Q): se a virtude for ciência, então será ensinável. O resultado afirmativo desse tipo de argumentação, no entanto, não poderia ser científico, já que a premissa é admitidamente hipotética. 

Se a investigação mostrasse que a virtude não é ensinável, a premissa de que a virtude é ciência estaria refutada. Mas se a virtude for realmente ensinável, isso não significaria que a virtude é uma ciência. A verdade do consequente de um condicional não implica a verdade da premissa hipotética do condicional. Se alguém afirmar o condicional segundo o qual "se chover à noite, a rua amanhecerá molhada", e realmente a rua amanhecer molhada, isso não significa logicamente que é verdadeira a premissa hipotética da chuva à noite. A rua pode estar molhada por inúmeros outros fatores diferentes da chuva.

É isso que Sócrates mostra ao apontar que para a virtude ser ensinável não é necessário que ela seja uma ciência. Ao contrário, mesmo uma mera opinião correta seria capaz de ser ensinada, e teria efeitos práticos tão benéficos quanto a certeza científica. Ainda que a virtude seja ensinável, isso não prova logicamente que ela seja uma ciência. Tanto é assim que Sócrates é capaz de apresentar a possibilidade de que a virtude seja ensinável sendo mera opinião correta.

Ao retornar à questão da anamnese, Sócrates define a natureza do saber científico (episteme), reafirma seu fundamento metafísico e parece criticar sutilmente o caminho investigativo escolhido por Mênon na discussão. Mênon escolheu investigar se a virtude é ensinável sem saber antes o que é a virtude, confiando que conhecer um dos efeitos ou uma das propriedades de algo implica em conhecer a natureza desse algo. Saber que a virtude é ensinável não é saber o que é a virtude. Mas saber o que é a virtude garante conhecer com certeza como seus efeitos decorrem de sua natureza. 

O resultado obtido pelo tipo de investigação escolhida por Mênon, até o momento, é o de que a virtude, sendo ela ciência ou opinião correta, seria igualmente ensinável. A diferença entre ambas estaria no fato de que a ciência é estável, enquanto a opinião correta não o é. Por outro lado, como Sócrates objetou, se algo é ensinável, há discípulos e mestres. Parece não haver discípulos e mestres em matéria de virtude, como indicam os exemplos dos sofistas e dos filhos dos homens de bem.

Aqui há uma aporia. A virtude parece ser ou ciência ou opinião correta. Em ambos os casos, ela seria ensinável. Mas aquilo que se ensina é ensinado por mestres a discípulos. Aparentemente, não há mestres e discípulos em matéria de virtude. Então, a virtude não pode ser objeto de ensino. 

Sócrates assevera que se a virtude não é ensinável, então certamente não é ciência. Não foi por sabedoria real que os grandes homens como Temístocles guiaram Atenas. Se a virtude não é ciência, então deve ser mera opinião feliz (ἔνδοξα). O governante que a possui não conhece seu fundamento, tanto quanto um adivinho que proclama seus oráculos sem saber o que significam. Tais homens podem, com justiça, ser considerados divinos, pois, mesmo sem saber o fundamento daquilo que proclamam, guiam a cidade corretamente como se estivessem tomados pelos deuses (ἐνθουσῐᾰσμός, entusiasmo).

A virtude seria uma concessão divina, uma graça dada a determinados homens. Não é coisa que se aprenda ou que se ensine. Se houvesse alguém que pudesse tornar o outro virtuoso, este seria como Tirésias no Hades, um sábio entre sombras que se agitam. Seguindo essa linha de raciocínio, diz Sócrates a Mênon, a virtude é concessão divina, e só saberão o que é certo sobre esse tema quando ambos investigarem finalmente o que é a virtude em si mesma e por si mesma. Sócrates se despede de Mênon e o exorta a persuadir Ânito dos resultados obtidos na discussão. Isso seria um serviço prestado aos atenienses.

(fim do comentário)
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O texto do Mênon utilizado neste comentário foi o da edição da Editora PUC-Rio/Loyola, bilíngue, belamente traduzido pela professora Maura Iglésias, do departamento de Filosofia da PUC-Rio. 

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Comentário curto ao Mênon de Platão (parte 2)


"Um verdadeiro diálogo não é possível a não ser que se queira realmente dialogar. Graças a esse acordo entre os interlocutores, renovado a cada etapa da discussão, não é um dos interlocutores que impõe a sua verdade ao outro. Bem ao contrário, o diálogo ensina cada um a se colocar no lugar do outro, isto é, a ultrapassar seu próprio ponto de vista. Graças a seu esforço sincero, os interlocutores descobrem por eles mesmos, e neles mesmos, uma verdade independente deles, na medida em que se submetem à uma autoridade superior, o logos.

PIERRE HADOT, Qu'est-ce que la philosophie antique?, p. 103 (tradução minha, itálico no original)

Sócrates inicia sua demonstração da anamnese chamando para si um dos escravos de Mênon sem formação prévia em geometria. O filósofo desenha no chão um quadrado e pergunta ao escravo que tipo de figura seria aquela que ele desenhou. O escravo responde que se trata de um quadrado. Sócrates prossegue perguntando se os lados dessa figura são todos iguais, inclusive as linhas que fossem traçadas atravessando o meio. O servo de Mênon concorda com a afirmação. 

(O quadrado original é formado pelas linhas AB, BC, DC e AD. As linhas que cortam o centro são gh e ef. Cada lado tem o valor de dois pés, sendo  a unidade de medida empregada. A área do quadrado é calculada multiplicando os lados, AB x AD)

Agora o filósofo indaga qual seria o valor da área da figura se seus lados fossem iguais a dois pés. Quatro pés, responde o rapaz (2x2). Mas, prossegue Sócrates, qual seria o valor da área de um quadrado que tivesse o dobro da área desse quadrado original? Oito pés, responde o escravo. E, supondo haver um quadrado de oito pés de área, qual será o valor dos seus lados? Sócrates quer que o seu interlocutor aplique o raciocínio inverso do que foi utilizado até aqui: ao invés de calcular a área do quadrado a partir do valor conhecido dos seus lados, a questão agora é calcular o valor dos lados de um quadrado a partir de sua área conhecida de oito pés. O servo responde que os lados da figura proposta terão quatro pés. Isto é, o escravo infere que a duplicação da área do novo quadrado (oito pés) é resultado da duplicação do valor dos lados do quadrado original (quatro pés). 

Sócrates adverte Mênon de que não está ensinando nada ao escravo, mas tão somente fazendo perguntas. Respondendo às questões dirigidas a ele, o jovem inferiu o valor dos lados do quadrado a partir de sua área: sendo esta o dobro, então os lados serão o dobro. Entretanto, o escravo não está certo em sua resposta, como Mênon bem sabe e o admite. 

Sócrates retorna ao servo e questiona se ele crê que a duplicação dos lados de um quadrado resulta na duplicação de sua área. O jovem concorda. Se os lados do quadrado original tinham dois pés, então a duplicação desses lados resultaria em um quadrado cujos lados seriam de quatro pés, indaga Sócrates. Novamente, o escravo concorda. (O quadrado original ABCD, cujos lados eram de dois pés, é duplicado e resulta no quadrado AJKL, cujos lados têm agora quatro pés)

Mas a área de um quadrado de lados de quatro pés resulta em dezesseis pés (4x4) e não oito pés, como supunha o escravo quando dobrou os lados do quadrado original de dois pés para alcançar a área de oito pés proposta pelo filósofo. A questão era capciosa, pois Sócrates induziu o escravo ao erro fazendo-o inferir que se a área de quatro pés resulta da multiplicação dos lados de dois pés, então a área de oito pés deveria resultar da multiplicação de lados de quatro pés. Sendo os lados de quatro pés o dobro dos lados de dois pés da figura original, a área resultante deveria ser de oito pés. Mas basta multiplicar os lados de quatro pés para perceber que a área resultante é de dezesseis pés e não de oito.

Qual deveria ser o valor dos lados de um quadrado cuja área é de oito pés, dado que a área de dezesseis pés possui lados de quatro pés? O filósofo indaga se a área de oito pés é o dobro da área de quatro pés do quadrado original e a metade da área do quadrado de dezesseis pés. O escravo responde afirmativamente. Então, os lados de um quadrado de área de oito pés deverão possuir valores que sejam maiores do que os lados do quadrado de área de quatro pés e menores do que os lados do quadrado de área de dezesseis pés? Sim, confirma o servo. 

Sócrates insta o escravo a dizer qual deve ser o valor dos lados do quadrado de área de oito pés, considerando o que os lados do quadrado de área de quatro pés têm dois pés e os lados do quadrado de área de dezesseis pés têm quatro pés. A resposta do servo é de que os lados deverão ter três pés (maior que os lados de dois pés e menor que os lados de quatro pés). O filósofo pergunta qual o valor da área de um quadrado de lados de três pés, e o escravo é obrigado a admitir que o valor da área resultante é de nove pés e não de oito.

O filósofo se volta para Mênon e o questiona sobre o quanto o escravo progrediu em seu poder de rememoração. A princípio, nada sabia. Depois, julgou saber e, agora, sabe que não sabe. Quando julgou saber, respondeu confiantemente sem conhecer sua própria ignorância. Agora já a conhece. Não está melhor do que antes, pois conhece sua ignorância? Mênon concorda. Sabendo que é ignorante, buscará sanar sua deficiência, algo que não faria se não tivesse sido conduzido à aporia pelas questões que foram a ele endereçadas.

Retornando ao escravo, Sócrates redesenha o quadrado original de área de quatro pés (ABCD) e, em seguida, adiciona três quadrados de igual área, formando um novo quadrado (AJKL). Pergunta ao escravo quantos quadrados iguais há nesse novo quadrado desenhado a partir do original. O rapaz responde que são quatro quadrados iguais formando o novo quadrado. Sócrates indaga quantas vezes esse novo quadrado é maior do que o original e o servo responde corretamente que o novo quadrado é quatro vezes maior que o original. Mas a questão inicial era duplicar o quadrado original e não o quadriplicar. (figura abaixo)
O filósofo questiona o escravo se seria possível traçar uma linha diagonal cortando de um canto a outro o quadrado original ABCD (formando a linha BD). O servo responde afirmativamente, e Sócrates pergunta se o mesmo não poderia ser feito com cada um dos quadrados que compõem o quadrado AJKL. O escravo concorda. Cada uma das linhas que dividem os quadrados não são todas iguais? O servo responde que sim. (figura abaixo)
Sócrates pergunta ao servo de Mênon qual a área resultante das linhas diagonais que dividem os quadrados (DBMN), mas o rapaz não compreende a questão. O filósofo pergunta se as linhas cortam pela metade cada um dos quadrados e o servo responde afirmativamente. Então, prossegue, o quadrado que resulta das linhas diagonais é composto por quantas metades dos quadrados? Quatro é a resposta do rapaz (DBC, BCM, MCN, NCD). E quantas metades há em um só dos quadrados? Duas, diz o servo (p.ex. o quadrado ABCD). Sócrates pergunta se quatro não é o dobro de dois e o escravo concorda. (figura abaixo)
A questão final do filósofo é qual o valor da área resultante dessas linhas diagonais. E o escravo responde corretamente que a área possui oito pés, exatamente a área buscada. Se foi determinado no início que a área de cada um dos quadrados é de quatro pés, e se a diagonal corta a área de cada um dos quadrados pela metade, então cada metade possui dois pés de área. Como o quadrado DBMN (cinza) é formado por quatro dessas metades, então DBMN é formado por quatro áreas de dois pés, o que resulta em uma área de oito pés. 

Sócrates se dirige a Mênon e pergunta se há algo na opinião exposta pelo escravo que não seja dele mesmo. Mênon reconhece que a opinião é do próprio escravo, e o filósofo indaga se o jovem sabia algo quando o diálogo iniciou. É óbvio que o servo nada sabia e Mênon é obrigado a reconhecer esse fato. O próximo movimento de Sócrates é perguntar se tais opiniões verdadeiras estavam no escravo, e se estavam, é necessário admitir que naquele que não sabe há opiniões verdadeiras acerca das coisas que reconhecidamente não sabe. 

Obtendo a concordância de Mênon, Sócrates avança e diz que essas opiniões erguem-se no escravo como em um sonho graças às questões dirigidas a ele. E que qualquer um chegaria às mesmas opiniões verdadeiras, sem que ninguém o tenha ensinado, bastando somente ser interrogado a ponto de recuperar em si mesmo e de si mesmo a ciência que já possui. Recuperar um saber é rememorar, e só é possível rememorar um conhecimento se ele já o possuir. Tal conhecimento deve ter sido adquirido em algum momento ou sempre esteve na alma. 

Se sempre esteve, a alma sempre foi sábia. Por outro lado, se está claro que o escravo não adquiriu seu conhecimento geométrico nesta vida, então ele deve ter adquirido em algum tempo anterior a esta vida, quando ele não era um homem, assevera Sócrates com a anuência de Mênon. O filósofo diz que se durante todo o tempo em que for um homem e em todo tempo em que não foi um homem o escravo sempre teve esse conhecimento, que foi apenas despertado pelas questões dirigidas a ele, não é certo que a alma sempre sabe e que, portanto, deve ser imortal? 

Mênon julga que Sócrates tem razão. O filósofo concorda, mas faz questão de salientar que não tem tanta certeza acerca de alguns pontos de seu argumento. De todo modo, se os homens acreditam que devem buscar saber aquilo que ainda não sabem, eles serão melhores, mais corajosos e menos preguiçosos do que se acreditarem que nada pode ser conhecido. A objeção sofística está refutada pela evidência da anamnese. 

Cumpre recordar que o diálogo com o escravo sobre geometria foi um desvio na discussão original sobre se a virtude é ensinável. Sócrates tenta fazer Mênon entender que não é possível saber se a virtude é ensinável sem antes saber o que ela é. Para tanto, o filósofo fornece diversos exemplos de apreensão do eidos a partir de seus exemplares, mas Mênon não os compreende e, em um movimento erístico, tenta pôr em xeque a própria possibilidade do conhecimento por meio do argumento de que não é possível reconhecer algo que não se conhece previamente. 

É para refutar o argumento erístico que Sócrates apela primeiro aos sacerdotes e aos poetas e depois à exibição explícita da realidade da anamnese no diálogo com o escravo. Como assevera A.E. Taylor, em seu Plato: the Man and his Work, o objetivo primário de Sócrates não é provar a imortalidade da alma e sim apontar para o papel sugestivo da experiência sensível na apreensão de realidades inteligíveis que ela mesma não encarna ou estabelece de forma adequada. Isto é, o mundo sugere estruturas inteligíveis e formais que só podem ser apreendidas a partir de seus exemplares concretos com muito esforço e dedicação. 

O papel de Sócrates não é ensinar, mas tão somente fazer as perguntas corretas para que o próprio interlocutor encontre em si mesmo as respostas que busca e que, entretanto, já as possui. O diálogo com o escravo espelha o diálogo com o o próprio Mênon. Diante de uma questão proposta, ambos dão respostas que crêem corretas, ambos são conduzidos por Sócrates a reconhecer seu erro, ambos se encontram em aporia, mas, por enquanto, só o escravo consegue rememorar a verdade que já possui em si mesmo. 

É interessante notar aqui esse contraste entre Mênon e o seu escravo. A docilidade do servo em responder às perguntas socráticas o conduz com sucesso ao reconhecimento de seu saber. Ao contrário do seu mestre, o rapaz não apela a um argumento erístico quando encurralado pelas perguntas de Sócrates. Ele não tenta destruir as condições de possibilidade da própria discussão lançando mão de uma dúvida fingida acerca da cognoscibilidade da verdade. O comportamento do escravo lança luz sobre o comportamento de Mênon no debate.

(continua na parte 3)
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Leia também:

Mircea Eliade, Platão, anamnesis e mentalidade mítica

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O texto do Mênon utilizado neste comentário foi o da edição da Editora PUC-Rio/Loyola, bilíngue, belamente traduzido pela professora Maura Iglésias, do Departamento de Filosofia da PUC-Rio.