quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Comentário curto ao Mênon de Platão (parte 2)


"Um verdadeiro diálogo não é possível a não ser que se queira realmente dialogar. Graças a esse acordo entre os interlocutores, renovado a cada etapa da discussão, não é um dos interlocutores que impõe a sua verdade ao outro. Bem ao contrário, o diálogo ensina cada um a se colocar no lugar do outro, isto é, a ultrapassar seu próprio ponto de vista. Graças a seu esforço sincero, os interlocutores descobrem por eles mesmos, e neles mesmos, uma verdade independente deles, na medida em que se submetem à uma autoridade superior, o logos.

PIERRE HADOT, Qu'est-ce que la philosophie antique?, p. 103 (tradução minha, itálico no original)

Sócrates inicia sua demonstração da anamnese chamando para si um dos escravos de Mênon sem formação prévia em geometria. O filósofo desenha no chão um quadrado e pergunta ao escravo que tipo de figura seria aquela que ele desenhou. O escravo responde que se trata de um quadrado. Sócrates prossegue perguntando se os lados dessa figura são todos iguais, inclusive as linhas que fossem traçadas atravessando o meio. O servo de Mênon concorda com a afirmação. 

(O quadrado original é formado pelas linhas AB, BC, DC e AD. As linhas que cortam o centro são gh e ef. Cada lado tem o valor de dois pés, sendo  a unidade de medida empregada. A área do quadrado é calculada multiplicando os lados, AB x AD)

Agora o filósofo indaga qual seria o valor da área da figura se seus lados fossem iguais a dois pés. Quatro pés, responde o rapaz (2x2). Mas, prossegue Sócrates, qual seria o valor da área de um quadrado que tivesse o dobro da área desse quadrado original? Oito pés, responde o escravo. E, supondo haver um quadrado de oito pés de área, qual será o valor dos seus lados? Sócrates quer que o seu interlocutor aplique o raciocínio inverso do que foi utilizado até aqui: ao invés de calcular a área do quadrado a partir do valor conhecido dos seus lados, a questão agora é calcular o valor dos lados de um quadrado a partir de sua área conhecida de oito pés. O servo responde que os lados da figura proposta terão quatro pés. Isto é, o escravo infere que a duplicação da área do novo quadrado (oito pés) é resultado da duplicação do valor dos lados do quadrado original (quatro pés). 

Sócrates adverte Mênon de que não está ensinando nada ao escravo, mas tão somente fazendo perguntas. Respondendo às questões dirigidas a ele, o jovem inferiu o valor dos lados do quadrado a partir de sua área: sendo esta o dobro, então os lados serão o dobro. Entretanto, o escravo não está certo em sua resposta, como Mênon bem sabe e o admite. 

Sócrates retorna ao servo e questiona se ele crê que a duplicação dos lados de um quadrado resulta na duplicação de sua área. O jovem concorda. Se os lados do quadrado original tinham dois pés, então a duplicação desses lados resultaria em um quadrado cujos lados seriam de quatro pés, indaga Sócrates. Novamente, o escravo concorda. (O quadrado original ABCD, cujos lados eram de dois pés, é duplicado e resulta no quadrado AJKL, cujos lados têm agora quatro pés)

Mas a área de um quadrado de lados de quatro pés resulta em dezesseis pés (4x4) e não oito pés, como supunha o escravo quando dobrou os lados do quadrado original de dois pés para alcançar a área de oito pés proposta pelo filósofo. A questão era capciosa, pois Sócrates induziu o escravo ao erro fazendo-o inferir que se a área de quatro pés resulta da multiplicação dos lados de dois pés, então a área de oito pés deveria resultar da multiplicação de lados de quatro pés. Sendo os lados de quatro pés o dobro dos lados de dois pés da figura original, a área resultante deveria ser de oito pés. Mas basta multiplicar os lados de quatro pés para perceber que a área resultante é de dezesseis pés e não de oito.

Qual deveria ser o valor dos lados de um quadrado cuja área é de oito pés, dado que a área de dezesseis pés possui lados de quatro pés? O filósofo indaga se a área de oito pés é o dobro da área de quatro pés do quadrado original e a metade da área do quadrado de dezesseis pés. O escravo responde afirmativamente. Então, os lados de um quadrado de área de oito pés deverão possuir valores que sejam maiores do que os lados do quadrado de área de quatro pés e menores do que os lados do quadrado de área de dezesseis pés? Sim, confirma o servo. 

Sócrates insta o escravo a dizer qual deve ser o valor dos lados do quadrado de área de oito pés, considerando o que os lados do quadrado de área de quatro pés têm dois pés e os lados do quadrado de área de dezesseis pés têm quatro pés. A resposta do servo é de que os lados deverão ter três pés (maior que os lados de dois pés e menor que os lados de quatro pés). O filósofo pergunta qual o valor da área de um quadrado de lados de três pés, e o escravo é obrigado a admitir que o valor da área resultante é de nove pés e não de oito.

O filósofo se volta para Mênon e o questiona sobre o quanto o escravo progrediu em seu poder de rememoração. A princípio, nada sabia. Depois, julgou saber e, agora, sabe que não sabe. Quando julgou saber, respondeu confiantemente sem conhecer sua própria ignorância. Agora já a conhece. Não está melhor do que antes, pois conhece sua ignorância? Mênon concorda. Sabendo que é ignorante, buscará sanar sua deficiência, algo que não faria se não tivesse sido conduzido à aporia pelas questões que foram a ele endereçadas.

Retornando ao escravo, Sócrates redesenha o quadrado original de área de quatro pés (ABCD) e, em seguida, adiciona três quadrados de igual área, formando um novo quadrado (AJKL). Pergunta ao escravo quantos quadrados iguais há nesse novo quadrado desenhado a partir do original. O rapaz responde que são quatro quadrados iguais formando o novo quadrado. Sócrates indaga quantas vezes esse novo quadrado é maior do que o original e o servo responde corretamente que o novo quadrado é quatro vezes maior que o original. Mas a questão inicial era duplicar o quadrado original e não o quadriplicar. (figura abaixo)
O filósofo questiona o escravo se seria possível traçar uma linha diagonal cortando de um canto a outro o quadrado original ABCD (formando a linha BD). O servo responde afirmativamente, e Sócrates pergunta se o mesmo não poderia ser feito com cada um dos quadrados que compõem o quadrado AJKL. O escravo concorda. Cada uma das linhas que dividem os quadrados não são todas iguais? O servo responde que sim. (figura abaixo)
Sócrates pergunta ao servo de Mênon qual a área resultante das linhas diagonais que dividem os quadrados (DBMN), mas o rapaz não compreende a questão. O filósofo pergunta se as linhas cortam pela metade cada um dos quadrados e o servo responde afirmativamente. Então, prossegue, o quadrado que resulta das linhas diagonais é composto por quantas metades dos quadrados? Quatro é a resposta do rapaz (DBC, BCM, MCN, NCD). E quantas metades há em um só dos quadrados? Duas, diz o servo (p.ex. o quadrado ABCD). Sócrates pergunta se quatro não é o dobro de dois e o escravo concorda. (figura abaixo)
A questão final do filósofo é qual o valor da área resultante dessas linhas diagonais. E o escravo responde corretamente que a área possui oito pés, exatamente a área buscada. Se foi determinado no início que a área de cada um dos quadrados é de quatro pés, e se a diagonal corta a área de cada um dos quadrados pela metade, então cada metade possui dois pés de área. Como o quadrado DBMN (cinza) é formado por quatro dessas metades, então DBMN é formado por quatro áreas de dois pés, o que resulta em uma área de oito pés. 

Sócrates se dirige a Mênon e pergunta se há algo na opinião exposta pelo escravo que não seja dele mesmo. Mênon reconhece que a opinião é do próprio escravo, e o filósofo indaga se o jovem sabia algo quando o diálogo iniciou. É óbvio que o servo nada sabia e Mênon é obrigado a reconhecer esse fato. O próximo movimento de Sócrates é perguntar se tais opiniões verdadeiras estavam no escravo, e se estavam, é necessário admitir que naquele que não sabe há opiniões verdadeiras acerca das coisas que reconhecidamente não sabe. 

Obtendo a concordância de Mênon, Sócrates avança e diz que essas opiniões erguem-se no escravo como em um sonho graças às questões dirigidas a ele. E que qualquer um chegaria às mesmas opiniões verdadeiras, sem que ninguém o tenha ensinado, bastando somente ser interrogado a ponto de recuperar em si mesmo e de si mesmo a ciência que já possui. Recuperar um saber é rememorar, e só é possível rememorar um conhecimento se ele já o possuir. Tal conhecimento deve ter sido adquirido em algum momento ou sempre esteve na alma. 

Se sempre esteve, a alma sempre foi sábia. Por outro lado, se está claro que o escravo não adquiriu seu conhecimento geométrico nesta vida, então ele deve ter adquirido em algum tempo anterior a esta vida, quando ele não era um homem, assevera Sócrates com a anuência de Mênon. O filósofo diz que se durante todo o tempo em que for um homem e em todo tempo em que não foi um homem o escravo sempre teve esse conhecimento, que foi apenas despertado pelas questões dirigidas a ele, não é certo que a alma sempre sabe e que, portanto, deve ser imortal? 

Mênon julga que Sócrates tem razão. O filósofo concorda, mas faz questão de salientar que não tem tanta certeza acerca de alguns pontos de seu argumento. De todo modo, se os homens acreditam que devem buscar saber aquilo que ainda não sabem, eles serão melhores, mais corajosos e menos preguiçosos do que se acreditarem que nada pode ser conhecido. A objeção sofística está refutada pela evidência da anamnese. 

Cumpre recordar que o diálogo com o escravo sobre geometria foi um desvio na discussão original sobre se a virtude é ensinável. Sócrates tenta fazer Mênon entender que não é possível saber se a virtude é ensinável sem antes saber o que ela é. Para tanto, o filósofo fornece diversos exemplos de apreensão do eidos a partir de seus exemplares, mas Mênon não os compreende e, em um movimento erístico, tenta pôr em xeque a própria possibilidade do conhecimento por meio do argumento de que não é possível reconhecer algo que não se conhece previamente. 

É para refutar o argumento erístico que Sócrates apela primeiro aos sacerdotes e aos poetas e depois à exibição explícita da realidade da anamnese no diálogo com o escravo. Como assevera A.E. Taylor, em seu Plato: the Man and his Work, o objetivo primário de Sócrates não é provar a imortalidade da alma e sim apontar para o papel sugestivo da experiência sensível na apreensão de realidades inteligíveis que ela mesma não encarna ou estabelece de forma adequada. Isto é, o mundo sugere estruturas inteligíveis e formais que só podem ser apreendidas a partir de seus exemplares concretos com muito esforço e dedicação. 

O papel de Sócrates não é ensinar, mas tão somente fazer as perguntas corretas para que o próprio interlocutor encontre em si mesmo as respostas que busca e que, entretanto, já as possui. O diálogo com o escravo espelha o diálogo com o o próprio Mênon. Diante de uma questão proposta, ambos dão respostas que crêem corretas, ambos são conduzidos por Sócrates a reconhecer seu erro, ambos se encontram em aporia, mas, por enquanto, só o escravo consegue rememorar a verdade que já possui em si mesmo. 

É interessante notar aqui esse contraste entre Mênon e o seu escravo. A docilidade do servo em responder às perguntas socráticas o conduz com sucesso ao reconhecimento de seu saber. Ao contrário do seu mestre, o rapaz não apela a um argumento erístico quando encurralado pelas perguntas de Sócrates. Ele não tenta destruir as condições de possibilidade da própria discussão lançando mão de uma dúvida fingida acerca da cognoscibilidade da verdade. O comportamento do escravo lança luz sobre o comportamento de Mênon no debate.

(continua na parte 3)
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Leia também:

Mircea Eliade, Platão, anamnesis e mentalidade mítica

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O texto do Mênon utilizado neste comentário foi o da edição da Editora PUC-Rio/Loyola, bilíngue, belamente traduzido pela professora Maura Iglésias, do Departamento de Filosofia da PUC-Rio. 

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