"Pois as Formas são engendradas no sentido de possuírem um princípio do qual elas derivam seu ser, mas elas são ingendradas porque não possuem tal princípio no sentido temporal."
PLOTINO, Enéadas, II. 4.5 (tradução minha)
Em um artigo publicado na edição de outubro-novembro de 1946 da revista Études Traditionelles (republicado na edição Mélanges, da Gallimard), René Guénon trata das relações entre monoteísmo e politeísmo nas tradições espirituais. O politeísmo, tal como entendido usualmente, seria a afirmação de um pluralidade de princípios independentes como origem da realidade manifestada. Ocorre que, para Guénon, essa noção não pode ser mais do que uma incompreensão metafísica da relação entre os deuses e o Princípio supremo.
Segundo Guénon, toda a tradição verdadeira é essencialmente monoteísta, isto é, afirma antes de tudo a unidade do Princípio Supremo, origem e sustentáculo de todas as coisas. Embora o monoteísmo seja claramente afirmado pelas formas religiosas (e, portanto, exotéricas) do judaísmo, do cristianismo e do islamismo, o termo "monoteísmo" poderia, sem inconveniente, ser aplicado à toda afirmação da unidade principial.
Por essa razão, o monoteísmo pode conter em si todo tipo de desenvolvimentos envolvidos na extensão dos atributos divinos ou mesmo na angeologia. Os anjos, por exemplo, podem ser entendidos como "intermediários celestes", representando ou exprimindo aspectos divinos na ordem da manifestação informal, afirma Guénon. Haveria, portanto, em todas as tradições legítimas uma angeologia ou algo que o valha, o que explicaria as coincidências encontradas nesse tema entre culturas diversas e que geralmente são atribuídas à influência mútua entre as sociedades.
Em outros termos, a angeologia seria uma decorrência necessária da afirmação tradicional da unicidade do Princípio Supremo. Trata-se da doutrina que se refere aos estados informais ou supra-individuais da manifestação. Como exemplo, Guénon afirma que os devas, os deuses hindus, não seriam outra coisa que os anjos nas tradições semíticas.
Guénon parece ter a mesma opinião de Jagadish Chandra Chatterji, exposta em seu livro The Wisdom of the Vedas (1931), na página 87:
"Os Devas, crua e incorretamente interpretados como 'deuses', mas, mais apropriadamente 'anjos', não são personificações da natureza e de seus fenômenos, mas o próprio espírito e Eu (Self) do Universo visto através das formas da Natureza através de um prisma." (tradução minha)
Na nota 56, a fim do livro, Chatterji explicita mais ainda o seu pensamento acerca das relações entre os deuses e o Princípio Supremo:
"Os Vedas não são mais politeístas do que são, para cunhar um novo termo, 'poliantropoísticos'. Os assim chamados deuses dos Vedas não possuem existências mais separadas e independentes do que as dos homens: ambos, humanos e deuses, são igualmente diferentes manifestações de uma única realidade, Brahman, que é o único Deus, se "Deus" deve ser usado. É tão absurdo chamar os Vedas de politeístas que Max Müller foi obrigado a cunhar um novo termo, 'henoteísmo', para a concepção védica dos devas." (p.134)
A tese de que existem tradições politeístas, no sentido da afirmação de uma pluralidade de princípios da realidade, segundo Guénon, é fruto somente da incompreensão dessa realidade metafísica exposta em seu artigo. A acusação de que a angeologia teria sido uma influência contaminadora do politeísmo sobre o monoteísmo seria o mesmo que dizer que, se a idolatria nasce da incompreensão de certos símbolos, o próprio simbolismo seria não mais que uma derivação da idolatria. O que é, portanto, absurdo.
Guénon não o diz, mas a sua exposição trata, cremos, da confusão comum entre os sentidos de O θεός ("o theós", Deus) em monoteísmo e οι θεοί ("oi theoi", os deuses) em politeísmo. Embora ambos, monoteísmo e politeísmo, utilizem o mesmo termo θεός, o sentido empregado muda nos dois usos. O monoteísmo afirma θεός como origem e sustentáculo de todas as coisas, isto é, como a fonte última e eterna de toda a realidade. O sentido de θεός em politeísmo afirma a existência não de uma pletora de princípios distintos, todos igualmente responsáveis pela origem e sustentação de toda a realidade, mas sim uma classe de realidades, superiores ao homem, que, no entanto, é composta igualmente por manifestações do Princípio último de todas as coisas.
Em outros termos, o absolutamente Incondicionado dá origem a diversos níveis de condicionados. Os deuses, como diriam os gregos antigos, são Ἀθάνατοι, "imortais". Eles possuem origem (o que na mitologia é simbolizado pelas narrativas dos nascimentos dos deuses), mas não morrem. Não são a fonte última de todas coisas, mas são superiores aos homens, que são mortais. Do mesmo modo, os deuses não podem ser igualados ao Princípio último, ao Incondicionado, por mais sublimes que estes sejam em comparação com os homens.
Confundir os deuses com o Princípio seria confundir o finito com o infinito, o causado com a causa. Toda a incompatibilidade entre o monoteísmo e o politeísmo adviria somente da incompreensão dessas relações. Ademais, a presença da angeologia em tradições monoteístas como o judaísmo, o cristianismo e o islamismo seria a evidência de que essa pretendida incompatibilidade é ilusória, pois os anjos não seriam mais do que manifestações desse Princípio. Como, por exemplo, manifesta a deliberada identificação realizada pelo filósofo judeu Fílon de Alexandria (século I D.C.) entre as Idéias de Platão e os anjos, na qualidade de razões eternas contidas na mente de Deus.
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