terça-feira, 19 de maio de 2009

Os quatro filósofos


Os Quatro Filósofos, Paul Rubens, 1615

Representados no quadro, da esquerda para a direita, estão Rubens, seu irmão, Justus Lipsius e Jan Wowerius. Lipsius, filólogo e humanista, foi amigo de Montaigne e empreendeu uma tentativa de restauração do pensamento antigo conhecido como Neo-estoicismo.

Uma paisagem romana ao fundo, uma coluna clássica e o busto de Sêneca (cheguei a pensar que se tratava de Aristóteles) reverenciado com flores dão uma noção clara da atitude de devoção dos presentes com relação à antiguidade.

Lipsius aponta com a mão esquerda para um livro enquanto gesticula com a mão direita dando a idéia de que a filosofia deveria se ater a apontar a verdade contida nos antigos, comentá-la e ensiná-la. Wowerius parece estar absorto, meditando no conteúdo do livro que traz aberto nas mãos, indicando a esperada atitude de reflexão pessoal sobre os conteúdos aprendidos.

Interessante também é a pena sobre a mesa, a ponto de cair, e não na mão dos dois filósofos mais próximos à ela. Me parece mais uma indicação de que se dedicavam não à inovação, ao acréscimo, mas ao comentário e ao ensino da sabedoria encontrada nos grossos tomos à frente da pena.

A expressão do irmão de Rubens parece indicar a do aluno que, diante do que lhe é ensinado, raciocina sobre o que ouviu e faz conexões mentais, ainda incipientes, com outros ensinamentos de seu mestre ou de outras fontes. A pena em sua mão está suspensa, indicando que ele não se atreve a escrever, mas espera receber a formação adequada. Terá ele pretensões filosóficas?

A atitude de Rubens parece-me a mais enigmática. Não aparenta desrespeito ao mestre, mas também não se retrata como submisso ou servil. Está de pé, tem consciência do próprio gênio ainda que pertença à um gênero diverso de atividade.

A tela data de 1615, um ano antes da condenação de Galileu em seu primeiro processo inquisitório. Rubens retrata filósofos que estão ligados intimamente a uma tradição científica que será forte e solenemente rejeitada na revolução galileana que, como uma tempestade, já estava se formando nos céus clássicos da tradição.

Uma reunião antes de uma tempestade.

domingo, 17 de maio de 2009

Sir Ernst Gombrich: mimese e experimentação


"O que faz tal revolução (grega) singular é, precisamente, o esforço dirigido, a modificação contínua e sistemática da Schemata da arte conceitual, até que o fazer foi substituído pela imitação da realidade, através da nova habilidade da mimese. A natureza não pode ser imitada ou "transcrita" sem ser primeiro desmontada e montada de novo. Esse é um trabalho não só de observação, mas também de experimentação incessante."

ERNST GOMBRICH, Arte e Ilusão, p.125


Em seu riquíssimo livro Arte e Ilusão, o historiador da arte Ernst Gombrich procura mostrar que a singularidade da arte grega se encontra num processo de modificação constante das formas rígidas da arte herdada do oriente com vistas à uma maior adequação representativa à realidade.

Se a arte egípcia era caracterizada por uma rigidez cuja função primordial era simbólica, retratando não indivíduos, mas tipos universais (schematas), a arte grega começa a se afastar desse ideal (embora jamais totalmente) através da introdução contínua de elementos tomados da observação cotidiana num processo de representação cada vez mais realista (mimese).

A mimese então estaria no sentido contrário da arte oriental herdada. Ao invés de apenas reproduzir tipos simbólicos universais de função ritualística, a arte grega procede à uma "encarnação" cada vez maior desses arquétipos. É como se o particular fosse sistematicamente introduzido no universal.

O rígido kouros da arte grega mais primitiva, que se aproxima de um tipo ideal pela rigidez de seus traços e de seu gestual, aos poucos ganha movimento e feições mais realistas, mais humanas, mais terrenas. Ele se encarna, adquire as feições da relatividade própria dos seres temporais que só podem existir como individuos. Ele não mais é um símbolo desligado das contenções do lugar, ao contrário, agora ele apresenta sinais do ser limitado pela contingência do tempo e do espaço.

Evidentemente, os deuses permanecem deuses e o processo de humanização grega é patentemente limitado. Contudo, esses passos representam o início de um movimento que, com idas e vindas, parece ter regido a história da representação pictórica na direção da imitação da natureza.

E o processo que rege esse movimento, segundo Gombrich, é análogo ao processo de tentativa e erros, conjecturas e refutações descrito por Karl Popper. Os antigos schemata herdados são como hipóteses iniciais que, de acordo com as exigências da experiência, são modificados dando origem a novos schemata mais acurados, embora igualmente provisórios.

Se isso é verdade para a história da arte, é também verdadeiro para o processo de criação do artista individual e para o apreciador da arte. O artista sempre parte de um esboço inicial que modifica continuamente de acordo com as exigências da representação. O apreciador projeta no quadro observado um esquema de referências e expectativas como conjecturas interpretativas para decifrar os sinais pictóricos.

sábado, 16 de maio de 2009

Larry Laudan e a racionalidade científica


"(...) we may be able to learn something by inverting the presumed dependency of progress on rationality. I shall try to show that we have a clearer model for scientific progress than we do for scientific rationality; that, moreover, we can define rational acceptance in terms of scientific progress. In a phrase, my proposal will be that rationality consists in making the most progressive choices, not that progress consists in accepting successively the most rational theories."

LARRY LAUDAN, Progress and its Problems, p.6

Laudan defende que a ciência é essencialmente uma atividade de "problem solving", resolução de problemas. Admitindo que isso seja um truísmo, Laudan afirma que a atividade científica é guiada pela "effectiveness", a eficácia em resolver problemas.


Essa "effectiveness" é caracterizada por uma balança na qual pesam a favor de uma teoria um número maior de problemas empíricos e conceituais solucionados e a não-criação, em contrapartida, de novos problemas.

Esse truísmo (effectiveness) seria o caráter a-histórico principal da atividade científica que historicamente se traduz em tradições de pesquisa rivais formadas, por sua vez, por teorias que compartilham uma mesma série de prescrições metodológicas (entre elas padrões de racionalidade e pesquisa) e asserções metafísicas(sobre o que há no mundo).

O caráter de solução de um problema é determinado não pela verdade, mas por um consenso entre os cientistas de determinada tradição de pesquisa de que o problema foi solucionado. Essas soluções são sempre aproximativas (exatidão variável segundo o objeto de estudo), não-permanentes (gerações futuras podem rever as soluções) e não ligadas à idéia de verdade.

As tradições de pesquisa são avaliadas segundo sua "effectiveness" e essa avaliação é sempre momentânea, histórica, pois não se pode prever o futuro de uma tradição de pesquisa. Uma tradição estagnada pode retomar sua vivacidade no futuro, como já afirmava Imre Lakatos acerca dos programas de pesquisa.

O desconforto com a perspectiva de Laudan se origina, entre outras coisas, de sua opção pragmática fundamental que pretende construir uma teoria da racionalidade científica independente de uma resposta adequada para o problema da determinação da veracidade das teorias. Para alguns (nos quais me incluo), isso parece uma franca admissão de fracasso na tarefa de responder à questão fundamental da epistemologia e da filosofia da ciência.