quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Herança grega

Shestov dizia que o começo e a função máxima da filosofia residia na descoberta da Necessidade e de sua exaltação por meio da resignação à sua inexorabilidade. A Necessidade é aquilo que é e não pode deixar de ser, aquilo que não muda nem pela ação do tempo nem pelos rogos humanos. A Necessidade é aquilo que permanece o mesmo, idêntico a si mesmo, extático.

É um traço essencial do pensamento do ocidente a busca por um conhecimento necessário, ou seja, de um conhecimento que vá além de qualquer dúvida, que constranja qualquer consciência, que não seja afetado pelas vicissitudes do tempo que destrói todas as coisas.

A herança de Parmênides, Heráclito, Platão e Aristóteles é a da busca pelo conhecimento último, extático e imutável. Tudo o que nos aparece aos sentidos passa e muda, enquanto nossa mente busca aquilo que não passa e não muda. Como dizia Jacques Maritain, a inteligência se decepciona com esse mundo de coisas passageiras.

Assim, o ocidente começa com a convicção de que o objeto próprio da mente humana é o extático e o imutável, aquilo que por fim, deve ser encontrado além das fronteiras das manifestações temporais deste mundo, além do comumente percebido, além das vontades, inclinações particulares, dos rogos e das súplicas. Por outras palavras, as desses próprios filósofos, o objeto próprio da mente humana é o divino.

sábado, 26 de janeiro de 2008

As fontes do ocidente

Não se pode entender o que chamamos de ocidente sem antes entender suas duas fontes primordiais: a herança grega e a herança cristã. Em outras palavras, é preciso ouvir Platão e Cristo para entender o que somos. É inescapável que sejamos todos, num sentido ou noutro, gregos e cristãos. Mesmo os que se opõem sentem o peso e reconhecem o valor dessa origem e dessa herança para a formação do ocidente.

Então não se trata mais de uma mera questão de ser contra ou a favor e sim de uma questão de, antes de qualquer julgamento, entender o que somos. Isso não é tarefa fácil, uma vez que existem interpretações, movimentos, escolas e correntes de pensamento que, embora originadas dessa mesma fonte greco-cristã, apresentam uma diversidade quase infinita em suas estruturas internas e em suas idéias básicas.

Talvez seja o trabalho de uma vida inteira e o provável é que fique inacabado. Mas não há, para o filósofo, outro caminho senão esse. E a realização desse trabalho é parte imprescindível do conselho socrático de conhecer-se a si mesmo.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

Não concordo, mas...

Quem se propõe a discutir racionalmente um tema qualquer admite de antemão que a contribuição do seu interlocutor é vital para a descoberta da verdade e que é possível que a verdade se revele do lado de seu interlocutor. Ou seja, uma das condições necessárias para a racionalidade de uma discussão é a admissão preliminar de que meu interlocutor pode estar certo e eu errado.

A outra é uma disposição de ordem ética que se manifesta de duas formas. A primeira é uma disposição de alma para a busca da verdade enquanto tal. O que deve reger a discussão é o desejo de atingir a verdade e nada mais além dela. A segunda forma, como uma consequência da primeira, é o compromisso de usar na discussão formas lícitas de argumentação. Em outras palavras, é o compromisso com a honestidade intelectual. Podemos errar usando argumentos inválidos sem o perceber. É a intenção de usar argumentos inválidos para ludibriar que faz de um erro um sofisma.

Ora, se meu interlocutor pode estar certo, então ele pode também discordar de mim. Mas qual será o valor dessa discordância? Se eu proponho uma explicação para resolver uma questão, meu interlocutor pode não aceitá-la por uma gama de motivos bem diversos entre si. Talvez seja porque ele ache que minhas premissas são falsas, ou que minhas inferências são inválidas, ou mesmo ambos os casos.

Mas para que ele possa discordar de mim e para que eu leve em consideração sua discordância ele deve me dizer suas razões e para isso ele deve conhecer o status quaestionis daquilo que estamos discutindo. Ou seja, ele deve conhecer o que já foi dito sobre a matéria em discussão. É claro que não há uma medida clara para o grau de conhecimento do status quaestionis de uma determinada matéria. Não há um ponto ideal que inequivocamente habilite uma pessoa a discutir com propriedade um assunto.

Mas há bons começos. Um deles é, sem dúvida, conhecer o que os pensadores clássicos disseram sobre a matéria, como também verificar o que seus críticos apontaram como seus pontos fracos para avaliar melhor as posições desses autores. Conhecer também o que novos autores (e seus críticos) escreveram.

Isso tudo leva tempo e exige dedicação. Mas até que parte significante desse trabalho seja feito, a concordância ou a discordância não terão nenhum valor. É claro que meu interlocutor tem o direito de discordar de mim. Mas como todo direito tem como contrapartida um dever, os benefícios do direito só podem se efetivar se os deveres também tiverem se efetivado. Se isso não acontecer, a discordância de meu interlocutor é um ato vazio, talvez fruto de disposições psicológicas ou propensões de ordem estética, mas certamente nada que deva ser levado a sério.

Graça e História

Pensando nos temas propostos em meus últimos posts tenho a impressão de que poderíamos interpretar a tentativa de criar na Terra o paraíso por meios meramente humanos como uma das faces da rejeição da graça dentro do cristianismo.

A graça é um movimento de lá para cá, ou seja, de Deus para o homem. Este então não tem nenhum mérito, recebe sem merecer o dom da revelação e da vida eterna. Mas isso deixa o homem um tanto desorientado, uma vez que está acostumado, no paganismo, a negociar seu bem-estar terreno com potências metafísicas volúveis através do cumprimento de votos e de preceitos.

Em Jesus se inicia uma nova relação, de liberdade e de amor mútuo entre Deus e o homem. A salvação é gratuita e o Reino do Céus está dentro daqueles que ouvem a voz do rabi Jesus, a face humana de Deus cujo reino não é deste mundo. Recado claro: se é verdade que aquele que está em Cristo pode provar antecipadamente (embora em parte e como num espelho turvo) a beleza da criação redivinizada, é ainda mais verdade que o reino de Deus virá no fim dos tempos, ou seja, quando a história se consumar. Não haverá paraíso terreno, histórico, mas o revestimento do que é perecível pelo que é imperecível no fim da história

Contudo, os homens preferem negociar, se rebaixar às autoridades que aceitar a liberdade da graça, como apontou Dostoievski. A proibição, a tutoria, a menoridade e as tentativas de construção do mundo perfeito são então consideradas mais palpáveis e seguras do que o desafio de aceitar que o transcendente está para lá da historicidade, que não podemos negociar com ele por meio de barganhas materiais ou morais e nem mesmo alcançá-lo por nossos próprios esforços.

Então um traço comum une o fariseu que se acha justificado pela prática rigorosa da Lei e dos preceitos e os revolucionários materialistas e utópicos que pretendem secularizar e realizar na história o paraíso: ambos tentam comprar sua segurança por seus próprios meios, controlar o incontrolável, manipular os valores e o transcendente.

Com o cristianismo o ocidente aprende que o transcendente só pode ser alcançado por meio da aceitação, por meio do acolhimento de uma iniciativa que parte de lá para cá. E nisso o homem não tem mérito. É graça.