quinta-feira, 6 de junho de 2019

Kitaro Nishida, Zen e o senso da beleza



"Experiência significa conhecer os fatos como eles são. Significa conhecer em concordância com os fatos, abandonando completamente nossas elaborações. Pura significa aqui o estado em que experimentamos verdadeiramente os fatos sem acrescentar-lhes nenhuma medida de juízo ou de discriminação. (...) No momento em que experimentamos um estado de consciência de natureza direta, ainda não existe sujeito nem objeto. Esse é o supremo aspecto da experiência."

KITARO NISHIDA, Zen no kenkyū (Ensaio sobre o Bem), p. 23 (trad. Joaquim Antonio Monteiro)

O filósofo japonês Kitaro Nishida (1870 - 1945) escreveu em 1900, onze anos antes da publicação de sua obra mais conhecida, Ensaio sobre o Bem (善の研), um curto artigo intitulado Bi no Setsumei (Uma Explicação da Beleza)onde apresenta sua concepção inicial sobre a natureza do belo. O artigo é interessante, entre outras coisas, porque demonstra a grande influência que o Zen Budismo teve no pensamento inicial de Nishida.

O filósofo incia seu texto tomando a questão da natureza da beleza por seu aspecto emocional. A partir desse ponto de vista, pensadores como Edmund Burke (em sua obra Philosophical Enquiry into the Origin of Our Ideas of the Sublime and the Beautiful de 1735) enfatizaram que a beleza é algo que produz um senso de prazer. Embora haja algo de verdade nessa tese, Nishida considera-a inadequada enquanto definição do belo. O senso da beleza é prazer, mas o inverso não é sempre verdadeiro.

Todos concordam que fama, comida, saúde e bebida causam prazer, todavia poucos defenderiam que tais prazeres sejam estéticos. Tampouco resolve o problema afirmar, como Henry Rutgers Marshall o faz, que o belo é um prazer estável, pois isso não é fundamentalmente diferente da resposta usual de que a beleza é um prazer.

Quais são, então, as características do senso da beleza? Nishida responde que para o idealismo desde Kant o senso da beleza é um prazer independente do ego, isto é, desinteressado. É um prazer do momento em que o fruidor esquece-se todo o interesse próprio, como ganho ou perda, vantagem ou desvantagem. Nishida introduz, então, o conceito de muga (無我), "não-eu" ou "êxtase", como o elemento essencial da beleza. Não importa qual seja o gênero de prazer que sintamos, estando ausente muga, não dará nascimento ao senso da beleza.

Nishida assevera que essa verdade foi bem expressa por Minamoto Akimoto (1000 - 1047) em seu desejo de "ver a Lua do exílio, porém sem culpa de qualquer crime". Quando não estamos limitados pelo pensamento do eu, tanto o prazer dá azo ao senso da beleza, como também tudo o que é originalmente desagradável torna-se prazer estético. Um grande homem, Nishida assevera, que não somente é indiferente a questões externas, mas também completamente divorciado de qualquer pensamento de auto-interesse, alcança um ponto onde tudo em sua vida produz o senso da beleza.

Portanto, aquele que deseja obter o autêntico senso da beleza deve encarar todas as coisas em estado de puro muga.  A beleza é verdade, mas não uma verdade lógica ou ideal, alcançável pelo pensamento, mas sim uma verdade intuitiva. Intuímos um tipo de verdade nos solilóquios de Hamlet não porque concordam com nossas teorias psicológicas e sim porque eles tocam as cordas de nosso coração.

Tal gênero de verdade intuitiva não é expressável em palavras. Somente é alcançada quando o homem está separado de seu eu e unido a todas as coisas. É uma verdade vista com os olhos de Deus,  que penetra nos profundos segredos do universo e é maior do que qualquer verdade lógica obtida por pensamento ordinário e discriminação.

Em suma, o senso da beleza é o senso de muga, verdade intuitiva que transcende a discriminação intelectual. A beleza pode ser explicada como o abandono do mundo da discriminação e o estado de união com a Grande Via de muga. Ela é da mesma natureza da religião, diferenciando-se desta somente por um senso de profundidade e de superficialidade. A beleza é muga do momento, enquanto a religião é muga eterno.

A moralidade, embora tenha sua origem em muga, ainda pertence ao mundo da discriminação, pois a idéia do dever depende da distinção entre o eu e os outros, entre bem e mal. Não pertence aos cumes sublimes da religião e da arte. Todavia, assevera Nishida, se alguém pratica diligentemente a moralidade durante muitos anos, em algum momento alcançará o nível em que não haverá diferença entre moralidade e religião.

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Um comentário:

Lincoln Filho disse...

Excelente texto.

Tenho uma observação sobre essa passagem: "A beleza é muga do momento, enquanto a religião é muga eterno."

Me lembrou muito Schopenhauer, visto que para ele há somente dois meios de se livrar do sofrimento humano: a experiência estética e a experiência mística. Ambas remetem o homem a algo além de seu eu individual e limitado.

O que vc acha dessa aproximação?

Abraços