segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Samurai Rebellion: virtude, valores e revolta

Toshiro Mifune e Tetsuya Nakadai

"O que é um homem revoltado? É, antes de tudo, um homem que diz não. Mas, se ele nega, ele não renuncia. É também um homem que diz sim. Entremos no detalhe do movimento da revolta. Um funcionário que recebeu ordens toda a sua vida julga, subitamente, inaceitável uma nova ordem. Ele se levanta e diz não. O que significa esse não? Ele significa, por exemplo: 'as coisas foram longe o suficiente', 'há limites que não podem ser ultrapassados', ou ainda, 'você foi longe demais'. Em suma, esse 'não' afirma a existência de um limite."

ALBERT CAMUS, L'Homme Revolté, p.26


Na história espiritual humana, há momentos cruciais em que os valores centrais acalentados e partilhados pelos membros de uma comunidade são confrontados com valores superiores apreendidos por figuras solitárias que, por essa razão, tornam-se pedra de tropeço e centro de um conflito moral inelutável. Como tais valores superiores demandam obediência por sua autoridade intrínseca, e como a comunidade ainda não alçou-se ao nível de sua compreensão e de sua aceitação, aquele que os capta em sua consciência encontra-se no centro de um drama no qual a única parte que lhe cabe é a fidelidade à ordenação superior, ainda que a preço de sua vida e as de seus queridos.

Esse conflito é o tema de Joi-uchi: Hairyo tsuma shimatsu (Samurai Rebellion, em inglês) filme jidaigeki do ano de 1967, dirigido por Masaki Kobayashi, tendo como protagonista o grande Toshiro Mifune e, como coadjuvante, o igualmente grande Tetsuya Nakadai. Na trama, Isaburo Sasahara (Mifune) é um samurai veterano que serviu fielmente ao daimyo do clã Aizu e que pede para ser substituído em suas funções pelo filho mais velho, Yogoro.

Isaburo, originalmente de uma família samurai de baixa extração, ingressou na prestigiosa família Sasahara através de um casamento arranjado, infeliz e sem amor. Pouco tempo depois de seu filho substituí-lo na liderança de sua casa e nas suas antigas funções junto ao daimyo, Isaburo recebe a visita de um oficial superior do clã que vem apresentar-lhe uma proposta.

Ichi, a ex-concubina do daimyo, mesmo sendo mãe de um de seus filhos, cai em desgraça e, para livrar-se dela e evitar escândalos, ele resolve honrá-la casando-a com Yogoro, filho de Isaburo. A proposta é uma honra para a família Sasahara, mas também, ou principalmente, uma ordem direta que não pode ser descumprida.

Após uma pequena hesitação, Yogoro casa-se com Ichi e dessa união forçada nasce não somente uma filha, Tomi, mas, surpreendentemente, também amor verdadeiro entre os dois cônjuges. Dois anos após a união, contudo, o primeiro herdeiro do daimyo falece e a este só resta como herdeiro o filho que Ichi lhe dera. O daimyo exige que Ichi retorne ao castelo do clã Aizu para cuidar do seu filho e reassumir seu posto junto a ele.

Yogoro recusa-se a devolver Ichi e esta recusa-se a retornar ao castelo do daimyo, mesmo diante da forte pressão familiar que acusa a ambos de negligência com relação à honra e ao futuro dos Sasahara. O único que apoia o casal enamorado é o veterano Isaburo, pois percebe claramente a crueldade da ordem e a tirania do daimyo.

O conflito está posto entre a lealdade ao clã e à família de um lado e o amor conjugal ameaçado pelo arbítrio tirânico do governante do outro. Aceitar um mandatário que cria e que destrói laços matrimoniais entre seus servos de acordo com seu capricho ou sua conveniência é um jugo indigno e insuportável. Não parece admissível, no entanto, que interesses pessoais sobreponham-se aos interesses coletivos de uma família ou de um clã.

Auxiliado por um estratagema, o daimyo consegue ludibriar Ichi e trazê-la para o seu castelo. A situação parece resolvida. Isaburo e Yogoro estão irredutíveis, contudo, e, insolentemente, exigem a devolução de Ichi. Por meio de mensageiros, o daimyo exige que ambos realizem o seppuku. Isaburo dispensa seus servos, envia sua esposa e seu filho mais novo para a residência de parentes e prepara sua casa para a batalha junto com Yogoro.

O mordomo do daimyo, escoltado por uma tropa de homens do clã Aizu, segue para a casa de Isaburo trazendo consigo Ichi. Ele exige que ela renuncie a seu casamento com Yogoro. Ichi, contudo, recusa-se e, em seguida, suicida-se com a lança de um dos guardas. Yogoro corre na sua direção e é morto pela escolta do mordomo.

A luta começa e Isaburo, o melhor espadachim do clã Aizu, massacra os guardas e mata o mordomo. Em seguida, após enterrar o filho e a nora, toma sua neta consigo e parte decidido a denunciar a crueldade do daimyo ao shogun em Edo.

Entretanto, para que isso aconteça, Isaburo tem de atravessar a fronteira guardada por seu bom amigo Tatewaki Asano (Tetsuya Nakadai). Apesar de sua amizade, Asano deve enfrentar Isaburo e impedir sua passagem pela fronteira. A honra samurai o exige. Isaburo pede a Asano que cuide de Tomi, caso morra no combate. Eles lutam e, ao final, Isaburo sai vencedor.

Incapazes de vencer Isaburo em um combate com katanas, os homens do daimyo, traiçoeiramente escondidos no meio da vegetação, o alvejam com suas carabinas. Isaburo mata vários deles, mas, ao final, é também morto. Tomi, por sua vez, é levada embora pela esposa de um membro do clã.

Em sua rebelião e sua insolência, é Isaburo que realiza concretamente as virtudes dos samurais e não os seus representantes oficiais, totalmente apegados a exterioridades solenes ou, pior ainda, corrompidos pela posição de poder que ocupam. E Isaburo exemplifica tais virtudes porque reconhece uma hierarquia de valores mais profunda que escapa aos outros membros daquela comunidade.

Isso não significa que os valores da comunidade sejam errôneos ou que devam ser abandonados em sua totalidade. Significa somente que é preciso compreender como aplicá-los às condições específicas. A revolta de Isaburo em obedecer ao desejo do seu senhor é, como dizia Camus, é a percepção de um limite objetivo e intransponível nas relações entre os homens.

Como em diversos filmes do estilo jidaigeki (Harakiri, Ichimei, 13 Assassins, Yojimbo, Sanjuro, entre outros), são os proscritos, os rebeldes ou os insolentes que incorporam realmente as virtudes características do Budô. Toda a comunidade está cega pelo cumprimento desencarnado das tradições e dos costumes, mas samurais como Isaburo demonstram com suas ações o significado da ordenação correta da realidade.