segunda-feira, 28 de maio de 2018

Religião grega e sacrifício cruento

                                                 Odisseus e Tiresias

"O ritual do sacrifício animal varia no detalhe de acordo com costume ancestral local, mas a estrutura fundamental é idêntica e clara: o sacrifício animal é o abate ritualizado seguido por uma refeição de carne."

WALTER BURKERT, Greek Religion, p. 57

"A sacralidade da refeição basta para explicar as peculiaridades do sacrifício animal. O sacrifício é uma refeição comum entre os deuses e seus adoradores, vinculando-os em uma unidade próxima. O deus é convidado, por meio da oração, a tomar parte na refeição. Ele recebe sua porção e os homens, que são a maioria, banqueteiam-se com suas porções. Essa é a razão pela qual somente uma pequena porção da carne é oferecida sobre o altar do deus, um costume que já havia espantado Hesíodo como algo tão peculiar que ele inventou para isso uma explicação mítica."

MARTIN NILSSON, Greek Folk Religion, p.74 

Walter Burkert, no início de seu Greek Religion, afirma o papel preponderante do culto e do ritual nas religiões antigas, em contraposição à ênfase doutrinária, típica das religiões posteriores. Vista por esse ângulo, a religião grega poderia ser compreendida melhor dentro da grande comunidade das religiões primitivas. 

Dentre os ritos mais importantes da religião grega está o sacrifício cruento. Ocasião festiva para a comunidade, o sacrifício exige roupas limpas e grinaldas feitas de ramos postadas sobre as cabeças dos participantes. A vítima precisa ser perfeita, adornada com fitas e conduzida em procissão ao altar. À sua frente, uma jovem carrega sobre a cabeça a cesta cerimonial onde resta a faca escondida sob grãos ou bolos. Músicos, flautistas em geral, acompanham a procissão que também traz consigo uma vasilha contendo água a ser aspergida sobre a vítima.

Chegando ao local do sacrifício, um círculo é traçado no chão e todos postam-se dentro dele, pois ali marca-se a distinção entre o sagrado e o profano. Todos têm as mãos lavadas e ali tem início (archestai) a cerimônia. O animal é aspergido com água na testa e, consequentemente, baixa a cabeça, dando assim, pensa-se, anuência ao sacrifício. A mais nobre vítima é o boi, mais ainda o touro. Mas também são comumente sacrificados ovelhas, cabras e porcos (estes últimos, no festival da Thesmophoria em honra de Demeter).   

Os participantes tomam grãos de cevada da cesta cerimonial e o sacerdote ergue suas mãos e recita oração, recitação e voto. Os grãos são atirados sobre o altar e sobre a vítima. Em seguida, o sacerdote toma a faca escondida na cesta, corta um tufo de seu cabelo e o lança ao fogo. O pescoço da vítima é cortado, as mulheres gritam estridentemente e o sangue recolhido em um recipiente é aspergido sobre o altar (haimassein).

O animal é esfolado, cortado, seu coração e seu fígado (splanchna) são lançados ao fogo. Aqueles dentre os participantes aos quais é dado esse privilégio provam das entranhas da vítima. As partes não comestíveis consagrados, os ossos depositados sobre uma pira no altar junto com oferendas de comida e de caldo. Tudo é queimado e o sacerdote asperge vinho sobre o sacrifício, o que eleva as chamas. O caráter sagrado encerra-se aí, segundo Burkert. Em seguida, a refeição é preparada com o que restou da carne e tudo deve ser consumido.

Burkert recorda que, paradoxalmente, apesar de ser um culto prestado aos deuses, estes quase nada recebem efetivamente do sacrifício. A melhor parte fica com os participantes, como já ficara claro em Hesíodo. O sacrifício é mitologicamente fundado na astúcia enganosa de Prometheus, o amigo dos homens. Este pusera diante de Zeus a carne e as entranhas gordurosas de um touro sacrificado escondidas sob couro e estômago e seus ossos escondidos sob gordura brilhosa. Zeus, obviamente, tomou para si o segundo monte de carne e, a partir daí, fundou-se o costume da separação das carnes no sacrifício. 

Não obstante, segundo Burkert, não fica claro qual o benefício que os deuses imortais poderiam obter desses atos sacrificiais. Do ponto de vista humano, entretanto, o sacrifício cria e reforça a comunidade (koinonia). Unidos em comunidade, dentro do círculo sagrado, os homens efetuam a agressão ordenada e compartilham a culpa que cria laços de solidariedade entre os participantes. 

Dado que os animais preferidos para o sacrifício são, em geral grandes mamíferos, Burkert salienta que o que parece agradar aos deuses é o jorro de sangue quente de uma vítima recém abatida. Embora houvesse sacrifícios incruentos, é o verter do sangue sobre o altar que o torna sagrado mesmo fora da cerimônia sacrificial. O altar não pode ser jamais conspurcado e o homem que sobre ele senta-se ou nele busca abrigo não pode ser ferido ou morto. As filhas de Dânaos, em As Suplicantes, de Ésquilo buscam refúgio em um altar, fugindo dos egípcios. 

Há registros de sacrifícios humanos dedicados a Artemis Tauropoulos. Martin Nilsson, historiador da religião grega, em seu Greek Folk Religion, registra a existência de um festival, Thargelia, dedicado a Apolo, onde um criminoso (chamado pharmakos) era conduzido pela cidade, açoitado com ramos verdes e ao final, expulso da cidade ou morto. Na obra A History of Greek Religion, Nilsson considera que essa cerimônia não seria exatamente um sacrifício, pois não configura-se como o uso de uma vítima como meio de comunicação entre os deuses e os homens e sim como um modo de purificação de miasmas e funcionando sem intervenção do deus. 

Todavia, o derramamento de sangue permanece importante na religião grega mesmo que não seja seguido de uma refeição. Burkert assinala que essa prática acontecia antes das batalhas, nos funerais e nas purificações. Xenofonte, por exemplo, em Anabasis, seu livro sobre a heróica marcha dos Dez Mil dentro do Império Persa, relata como ele mesmo, antes das batalhas, ordenou que animais fossem sacrificados a fim de que os videntes pudessem prever as chances de vitória. 

A mitologia guardou o sacrifício de Ifigênia em Áulis, exigido de Agamemnon por Ártemis para que  frota aquéia pudesse alcançar as praias de Tróia. Nos funerais de Pátroclo, na Ilíada, organizados por Aquiles, foram sacrificados bois, cavalos, ovelhas, cães e doze príncipes troianos capturados pelo próprio Aquiles quando de seu assustador retorno ao campo de batalha. 

Aos mortos também também é derramado sangue em sacrifícios com o fim de saciá-los de sangue (haimakouria). Homero relata esse tipo de sacrifício na Odisséia. Orientado por Circe, a feiticeira, Odisseus, no limite do mundo, cava um buraco quadrado (bothros), faz tripla libação, ora a Persephone e Hades, sacrifica um carneiro e uma ovelha negra e derrama seu sangue no buraco. As almas, primeiramente Tiresias, vêm e bebem o sangue sacrificado e recuperam assim certa consciência. Os animais são queimados ao lado do buraco.

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