domingo, 17 de fevereiro de 2013

Curtas considerações sobre Prometheus



"Mortal after all." 

David, sobre os Engenheiros


Prometheus se move em dois eixos interligados. Em seu primeiro eixo, algo como sua estrutura geral ou espinha dorsal, o filme é formado pelo confronto de duas idéias, uma delas apenas sugerida, sendo a outra explicitada pelos eventos relacionados ao segundo eixo.

As duas idéias que se confrontam no eixo fundamental são duas teologias: a teologia secularizada e a teologia tradicional. A primeira delas, derivada sem dúvida das teorias ufológicas do "antigo astronauta" nada mais é do que a atribuição da origem humana a seres inteligentes provenientes de outros planetas que, de um jeito ou de outro, deram origem à vida na Terra e, por conseguinte, seriam nossos reais criadores.

Chamo essa teoria de "teologia secularizada" por se tratar de um discurso tradicionalmente pertencente ao âmbito das religiões, centrado na determinação da natureza humana a partir de suas relações com entes divinos, mas que, hodiernamente, é traduzido em termos científico-materialistas.

Obviamente, a idéia que rivaliza com a teologia secularizada é justamente o discurso original sobre o homem proveniente das religiões, o que chamo teologia tradicional.

Esta última é somente ventilada, nunca totalmente expressa em seus termos próprios, mas apresentada no conflito interior da Dra. Elizabeth Shaw, que resolutamente carrega uma cruz ao pescoço. A partir desse fato, somos informados de que a teologia tradicional que dominará o horizonte religioso do filme será aquela do cristianismo.

Mas se a teologia tradicional é uma sombra constante no filme, a teologia secularizada é desenvolvida no segundo eixo, aquele da ação e dos acontecimentos. Sendo seu ponto de partida científico-materialista, a ação não poderá se dar a não ser no nível daquilo que pode ser tratado dentro desses limites.

Ora, a tradução materialista da pergunta sobre a origem do homem só pode ter uma resposta materialista, isto é, a origem do homem, um ser biológico submetido às leis da matéria, só pode ter sua origem em entes eles também materiais. Se é assim, onde estão os deuses?

Logo no início da película, uma nave sobrevoa uma grande cachoeira - "O Espírito de Deus pairava sobre as águas" - em um planeta aparentemente carente de vida. Um humanóide - "Façamo-lo à nossa imagem e semelhança" - toma um recipiente - símbolo sempre de possibilidades contidas, de poder para fazer algo - e toma o conteúdo. O humanóide passa por um processo de degeneração que o conduz à morte e seus restos são lançados nas águas da cachoeira e la´começa um processo químico que culmina com a criação da vida.

O tema do sacrifício da divindade que dá origem ao mundo é bastante conhecido em diversas tradições religiosas, bastando citar o sacrifício de Purusha nos Vedas e o sacrifício do Cordeiro imolado antes de todos os séculos e o sacrifício de Cristo na cruz que salva o mundo renovando todas as coisas.

Eis que aparecem os deuses da teologia secularizada: os Engenheiros. Eles não criam como Deus cria - ex nihilo - , mas manipulam o que já existe. O próprio nome já indica suas limitações. O engenheiro cria engenhos, é um artífice e, como tal, usa aquilo que o precede, aquilo que já existe. Ele só recombina elementos já dados, como o DNA.

Mas se o eixo das ações e acontecimentos nessa teologia secularizada se concentra na origem biológico-material do homem, ele se desenvolve de uma forma estranha e, por isso mesmo, notável. Se se fala em vida, se fala de parentalidade e, por conseguinte, de procriação. Mas há esterilidade e rejeição da prole em quase todas as relações estabelecidas no filme. A começar pelo empresário que financia a expedição, Peter Weyland.

Ele tem uma filha, é certo, Srta. Vickers, mas a renega e prefere chamar de filho um robô, David, que, evidentemente, também é estéril. Weyland é o homem materialista dedicado ao lucro, ao sucesso, à "construção de um mundo melhor" como diz o slogan de sua empresa. É a tentação humana de criar o Paraíso pelos meios materiais.

Mas há um problema. O homem é mortal e essa realidade, para quem se considera um herdeiro de um titã, o Prometheus mitológico, é inaceitável e angustiante. Seu único objetivo na expedição e na busca pela origem do homem é o prolongamento de sua própria vida. Seu horizonte é o da mera perpetuação dos dias. Escondido em um compartimento da nave, ele é a sombra manipuladora que torna possível a expedição, mas submete tudo a seus fins.

Ao final do filme, Vickers ainda tenta trazer o pai à realidade, reafirmando a transitoriedade da vida. Weyland, o incapaz de olhar para além de sua própria existência, renega a filha de novo. A origem renega o originado. Weyland prefere David, o sintético, produto da engenhosidade humana e não de uma lei biológica que antecede e submete o homem. 

David, uma versão nova de HAL - "Don't do it Dave. - aparece como o infiltrado a mando de Weyland. Ele ama Lawrence da Arábia, quer ser como ele, pinta o cabelo com o louro de Peter O'Toole do filme clássico. Parece ser leal, mas como seu herói histórico, é um agente estrangeiro movendo forças desorganizadas e desordenadas contra a autoridade local estabelecida.

David quer destronar seus senhores - "Todo filho quer ver seu pai morto." - , aí então será livre. Se Weyland quis tomar o fogo dos deuses para superar a própria mortalidade, David quer furtar o fogo divino para destruir os deuses. Zeus deve matar Cronos e tornar-se o senhor dos deuses.

É interessante notar que é David que conhece a língua dos Engenheiros. Não são os homens que conhecem a língua ancestral, mas sua invenção, a máquina, que sabe como comunicar-se com os deuses. Mas o que David diz, seja o que for, desagrada os deuses e estes destróem seus filhos biológicos e seus netos sintéticos. 

Mais uma vez, a origem rejeita o originado. Como no Gênesis, D'us se desagrada da corrupção moral da humanidade e um dilúvio se abate sobre ela. Mas Noé encontra graça diante de D'us e Ele o poupa assim como aos casais de animais reunidos na Arca.  Refaz-se a criação com as sementes da era anterior. A vida continua, sob a égide da vontade divina.

Contudo, não parece haver aliança possível com os Engenheiros. Eles rejeitam e querem destruir sua criação.  

A Dra. Elizabeth Shaw também é estéril e rejeita sua prole. De uma forma profana e blasfema, acontece com ela um milagre semelhante ao ocorrido na Bíblia. A infértil dá à luz a um rebento pela ação milagrosa de D'us. No caso materialista, pela ação dos Engenheiros. É certo que é David que põe uma gota da substância misteriosa dos Engenheiros, mas ainda assim essa gota provém dos deuses secularizados.

Cumpre notar que a iniciativa de David é sinistramente significativa. Ele inicia um novo mundo, a destronação de seus pais, pela criação de um novo ser, pela recombinação da natureza de seus pais. Elizabeth, no entanto, rejeita essa prole que se mostra monstruosa e destruidora. Rejeição de novo.

Elizabeth é a personagem que mais claramente vive o conflito das duas teologias, busca a origem material do homem, mas, mesmo assim, permanece usando sua cruz ao peito. Ela conhece o significado da mortalidade, seu pai morrera infectado pelo Ebola. Contudo, não conhece a procriação, já que é estéril.

David tira-lhe a cruz antes de anunciar sua gravidez. Nesse momento, é o triunfo da manipulação, a construção de um novo mundo, a destronação do deus antigo, a vitória do última do materialismo realizada por um ser que ultrapassa a própria biologia, um robô. É um milagre negro.

O rebento desse novo mundo exige o sacrifício de sua mãe, assim como o nosso nascimento exigiu o sacrifício do Engenheiro. O ser que nasce é um ser que vive somente pela morte, é uma vida que se forma como parasita e que destrói seu hospedeiro.

A Dra. Shaw sobrevive e, diante da rejeição dos Engenheiros que pretendem devastar a Terra com sua nave repleta de cápsulas daquela misteriosa substância, suplica ao piloto de Prometheus que impeça essa tragédia. O preço, naturalmente, é a morte.

Então, Prometheus avança contra os deuses, impede a destruição num ato de sacrifício. Ao contrário de Weyland que só busca prolongar seus dias indefinidamente, Janek,, o piloto, sacrifica sua vida generosamente pelo futuro da humanidade. 

Única sobrevivente, Elizabeth tem ainda de enfrentar a ira do Engenheiro remanescente. Contra ele ela usa a monstruosidade a que deu à luz e esta infecta-o fazendo nascer, como parasita, o proto-alien. A criatura se volta contra o criador, como já acontecera com a tripulação de Engenheiros na nave e o destrói.

Elizabeth toma de volta sua cruz. Em outros termos, encerram-se as ações e acontecimentos do segundo eixo do filme, o desenvolvimento da teologia secularizada, com a retomada da teologia tradicional. O retrato da vida que a teologia secularizada apresenta define-se como um quadro cruel de esterilidades e rejeições, um jogo de incubações e destronamentos sem fim ou propósito no qual impera a morte.

Elizabeth insiste, quer encontrar um sentido nesse jogo biológico-materialista absurdo, por isso parte para o planeta de origem dos Engenheiros. Contudo, ela parece saber que essa teologia tem seus limites, afinal ela coloca explicitamente a questão de que se algo biológico é a origem última do homem, então qual a origem desse ser biológico? 

A cruz permanece em seu pescoço como a intuição de que não é nesse nível materialístico que se encontra a resposta, mas em algo cuja dimensão ultrapassa a história, mas que, não obstante, se manifesta concretamente no tempo como bem indica a última declaração da Dra. Shaw: "É Ano Novo do Ano do Senhor de 2094."


terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

O ceticismo pirrônico II: Sextus Empiricus e a regra de vida cética





"Os partidários da Nova Academia, embora afirmem que todas as coisas são não-apreensíveis, diferem dos céticos mesmo com respeito a essa declaração de que todas as coisas são não-apreensíveis (pois eles afirmam isso positivamente, enquanto que o cético considera possível que algumas coisas sejam apreendidas); mas eles diferem também com relação ao seu julgamento acerca das coisas boas e más. Pois os acadêmicos não descrevem uma coisa como boa ou má como nós fazemos; eles fazem isso com a convicção de que é mais provável que aquilo que eles chamam de bom seja realmente bom do que o oposto e assim também no caso do mal, enquanto que quando nós dizemos que algo é bom ou mal, não adicionamos a isso nossa opinião de que aquilo que dizemos é provável, mas simplesmente nos conformamos à vida de forma não-dogmática, pois não podemos evitar a ação."

SEXTUS EMPIRICUS, Hipotiposes Pirrônicas


Nascido na Grécia durante o segundo século da era cristã e tendo aparentemente estudado em Atenas e Alexandria, o médico Sextus chamado Empiricus (os empíricos eram uma escola de medicina) foi o principal divulgador do ceticismo no mundo antigo romano. Sua obra nada tem de original, sendo basicamente Sextus um compilador das ideias dos céticos que o antecederam. A importância de seus escritos reside justamente no fato de reunirem de forma sistemática os argumentos tradicionais do ceticismo contra as pretensões gnosiológicas dos filósofos dogmáticos. 

Somente três de suas obras sobreviveram ao tempo e chegaram até os dias de hoje:  Hipotiposes Pirrônicas, composto de três livros;  Contra os Dogmáticos, composto por cinco livros dos quais dois se intitulam Contra os Lógicos, dois outros com o título Contra os Físicos e um chamado Contra os Éticos; e o último, Contra os Professores, dividido em seis partes, é dedicado a atacar os gramáticos, retóricos, geômetras, matemáticos, astrólogos e músicos. Outros dois livros, chamados Sobre a Alma e  Notas sobre a Medicina, são habitualmente atribuídos a Sextus, mas se perderam na antiguidade. 

O esquecimento também foi o destino do livro mais importante de Sextus, o Hipotiposes Pirrônicas durante o período que vai do fim da Idade Antiga, passando por toda a Idade Média até o século XVI, quando foi redescoberto e republicado. 

Cumpre notar que o próprio médico cético grego é uma das poucas fontes, por vezes a única, para o conhecimento da filosofia de muitos pensadores, correntes e escolas da antiguidade cujos escritos se perderam. Entretanto, segundo Bury, Sextus não foi muito mais do que um compilador e, mesmo nessa função, apesar da forma extensa com a qual descreve os argumentos dos diversos filósofos sob questão, suas informações nem sempre são confiáveis.

O livro Hipotiposes Pirrônicas é um grande sumário do ceticismo antigo e tem como objetivo revelar as características do modo de vida cético pirrônico, defendendo-o polemicamente das críticas lançadas por outras escolas filosóficas ditas dogmáticas, bem como desvincular o pirronismo do dogmatismo negativo da escola cética acadêmica representada pelas doutrinas de Arcesilau e Carnéades. Para Sextus, esse modo de vida cético tem como fim último a ataraxia (imperturbabilidade) cujo caráter é não epistemológico, mas eminentemente ético.

Logo no início do Hipotiposes Pirrônicas, Sextus Empiricus afirma existirem basicamente três tipos de filosofia, as quais representam três atitudes frente aos resultados possíveis de uma pesquisa filosófica. Ao fim de uma investigação, pode-se afirmar a obtenção de uma verdade, ou a inapreensibilidade da mesma ou ainda continuar buscando a resposta. 

O primeiro caso, segundo Sextus, é o dos dogmáticos como Aristóteles, Epicuro e os estóicos que pretendem haver alcançado a verdade sobre os seus objetos de investigação. O segundo é o caso de Arcesilau e Carnéades da Academia platônica que negavam qualquer possibilidade de conhecimento certo 
da natureza última das coisas.

Os céticos representam o terceiro caso, pois nada afirmam ou negam, apenas seguem buscando e investigando. Sextus é cuidadoso o suficiente para enfatizar que qualquer argumento ou afirmação que fará dali por diante em seu livro deverá ser tomado não como uma postulação de que as coisas realmente se dão como é dito, mas que ele estará somente relatando cada fato como lhe aparece naquele momento, à maneira de um cronista.

Cumpre notar que, já nas primeiras páginas de sua obra mais importante, o médico grego fornece ao leitor uma das chaves-mestras da interpretação do ceticismo pirrônico: o cético não nega ou afirma, somente se atém ao que lhe aparece no momento e segue buscando.

Logo em seguida, no capítulo IV, Sextus Empiricus define o que é o ceticismo nos seguintes termos:

"Ceticismo é a habilidade, ou atitude mental, a qual opõe aparências a julgamentos sob qualquer forma, com o resultado que, devido à equipolência dos objetos e das razões assim opostas, nós somos levados primeiramente a um estado de suspensão mental e depois a um estado de 'imperturbabilidade' ou quietude."

O cético é aquele que  tem a habilidade ou atitude mental de opor as “aparências” ou evidências dos sentidos aos julgamentos do pensamento em todas as formas possíveis  e que, por esse meio, por causa da equipolência das razões apresentadas, ou seja, da igual probabilidade das posições opostas, é levado à suspensão do juízo acerca da matéria estudada e assim alcança um estado mental de tranquilidade e imperturbabilidade. 

Sextus chega a asseverar que a causa que origina o ceticismo é a esperança de alcançar essa imperturbabilidade, pois homens de talento perturbados pelas contradições e pelas posições opostos acerca de todo assunto, buscaram descobrir a verdade sobre as questões e assim chegar à quietude de espírito.

O método ou princípio básico do ceticismo é opor uma proposição contrária para cada afirmação sobre qualquer objeto de estudo. Os céticos crêem que essa oposição irá conduzir à suspensão do juízo e, consequentemente, ao fim do dogmatismo. E o dogmático é aquele filósofo que afirma algo positivamente sobre as coisas, ou como diz Sextus, o dogmático é aquele que dá assentimento a proposições sobre “objetos não-evidentes da investigação científica”

O cético, por sua vez, não dá assentimento a nada não-evidente. Ainda quando o cético usa expressões que possam passar por afirmações ou certezas, como quando enuncia proposições do tipo “nada é verdadeiro”, cuja extensão o fariam entrar em contradição, elas devem ser entendidas não como posicionamentos dogmáticos sobre a natureza real das matérias em questão, mas como expressões de sua impressão não-dogmática acerca dessas coisas.

Sextus afirma que se pode até mesmo falar em  certa “regra doutrinal” no ceticismo, desde que se entenda por ela não um assentimento a coisas não aparentes, mas um procedimento que, de acordo com as aparências, segue uma determinada linha de raciocínio que indica como se pode aparentemente viver de forma correta e que também  tende a conduzir à suspensão do juízo.

O cético pode viver segundo uma regra doutrinal que esteja ancorada nas “aparências”, naquilo que se impõe à ele como uma impressão, e não numa afirmação positiva sobre a natureza das coisas. O caráter de passividade do ceticismo pirrônico defendido por Sextus Empiricus se torna mais evidente na caracterização que faz das chamadas “aparências”. 
                                               
"Como já dissemos anteriormente, nós não abolimos as afecções das impressões sensíveis as quais induzem nosso assentimento involuntário; e as impressões são “as aparências”. E quando nós questionamos se o objeto é tal como aparece, tomamos como certo que ele aparece e nossa dúvida não se refere à aparência ela mesma, mas à explicação dada para essa aparência – e isso é coisa diversa de  questionar a aparência ela mesma. Por exemplo, o mel aparece para nós como doce (e isto nós garantimos, pois nós percebemos doçura através de nossos sentidos), mas se ele é também doce em sua essência é para nós matéria de dúvida, uma vez que isso não é uma aparência, mas um julgamento com relação à aparência.

As aparências sensíveis engendram um sentimento de irresistível assentimento ao qual o cético não impõe qualquer restrição e formam a base de suas ações e de suas crenças. Que há algo que aparece e que esse algo aparece de tal e tal forma são fatos evidentes e devem ser afirmados sem dúvidas. Se as aparências desse algo correspondem ou não a uma suposta essência ou natureza última da coisa, isso não é evidente e se deve, portanto, suspender o juízo. O cético é passivo diante das aparências que se lhe impõem inexoravelmente, mas é ativo na desconfiança sobre as afirmações acerca da essência dos objetos.

O critério de ação através do qual o cético distinguirá entre os atos que devem ser praticados e os que não devem ser praticados será justamente a aparência. Isso porque esta é sensivelmente percebida e engendra um sentimento e uma afecção involuntária que não está aberta a questionamentos teóricos.

É esse critério que permite ao cético escapar à inação que pretensamente se seguiria da dúvida acerca de todas as coisas. Se sobre cada objeto ou situação sempre é possível encontrar visões opostas e excludentes que têm o mesmo peso argumentativo, ou seja, que estão numa relação de equipolência que impede a decisão, então o cético se encontraria ameaçado pela impossibilidade de agir segundo algo que não se sabe ser verdadeiro.

Ancorando-se às aparências, o cético pode tomar o curso de ação a que estas o conduzem sem com isso comprometer-se com qualquer teoria ou hipótese defendida pelos filósofos dogmáticos sobre a verdadeira natureza dos fenômenos. O modo de vida cético vai se caracterizar por uma prática de obediência às aparências que é composta por quatro pontos principais: a direção da Natureza, a coação das paixões, as tradições das leis e dos costumes, e a instrução nas artes.

A direção da Natureza é aquela pela qual nós somos naturalmente capazes de sensação e pensamento; coação das paixões é aquela por meio da qual a fome nos move para a comida e a sede para a bebida; tradição dos costumes e leis é aquela onde tomamos piedade na conduta da vida como boa, e a impiedade má; instrução das artes é aquela onde não somos inativos nas artes as quais escolhemos. Mas nós fazemos todas essas afirmações de forma não-dogmática.

O cético se guia na vida por uma atitude não-dogmática e passiva frente à sensação irresistível de assentimento provocada pelas aparências. A sensação e o pensamento são aparentemente naturais ao homem, então o pirrônico se guiará por eles assim como obedecerá  às paixões que o determinam a buscar água na sede e comida na fome. Ele também prestará assentimento às leis e costumes da cidade em que nasceu e em que vive, cumprindo os deveres prescritos nas leis e observando os costumes comuns.

E se o pirrônico exerce uma arte ou profissão qualquer, ele cumprirá as determinações e procedimentos esperados de um praticante daquela arte ou profissão sem, no entanto, questionar ou sancionar qualquer postulado ou implicação teórica que porventura se encontre neles. 

Todo o comportamento cético será regido por um assentimento não-dogmático ao que se lhe impõe irresistivelmente pelas aparências, sejam elas as evidências sensíveis, as formas do pensamento, as paixões e necessidades naturais, os costumes e as leis da cidade ou as instruções de sua arte ou profissão. E o objetivo desse modo de vida cético é, como visto acima, alcançar a  ataraxia, ou seja, a imperturbabilidade ou quietude “com respeito às matérias de opinião e um sentimento moderado com respeito às coisas inevitáveis.”

Sextus declara que o cético é aquele que, a fim de alcançar a quietude separando o verdadeiro do falso, põe-se a investigar a verdade sobre as coisas, mas que no entanto, vê-se presa de inúmeras contradições equipolentes. Não tendo como decidir, ele então suspende o juízo. E dessa suspensão se segue a ataraxia buscada.

Ao contrário do homem que afirma serem algumas coisas boas e outras más e que se perturba pela ansiedade de conquistar o que considera bom ou pelo medo de perder o pretenso bem que já alcançou, o cético segue sem afirmar nada dogmaticamente e recebe equanimente o que o destino lhe impõe e não busca nada avidamente.

O autor do Hipotiposes Pirrônicas afirma que o que acontece ao cético é semelhante ao que aconteceu a Apelles, pintor da corte de Alexandre. Segundo a tradição, quando Apelles se esforçava para obter um efeito realista da espuma do cavalo ao qual estava retratando, ele irritou-se com seus reiterados fracassos e lançou sua esponja contra o quadro e, inadvertidamente, a marca da esponja produziu o efeito que suas tentativas anteriores com as tintas não conseguiram.

Analogamente, o cético é aquele que buscou a quietude por meio de uma investigação sobre a natureza das coisas, mas sendo incapaz de decidir entre posições opostas equipolentes acerca de todo objeto de investigação, acabou por suspender o juízo. Dessa suspensão seguiu-se a quietude “como por acaso” ou “mesmo como a sombra que segue seu dono”.

O pirrônico evidentemente sofrerá os reveses da vida, as doenças e as tristezas. Entretanto, não afirmando nada sobre a natureza desses eventos, ele não sofrerá duplamente como aquele que além de sofrer as dores, se perturba pela crença de que o lhe acontece é naturalmente mau.

Como se vê, o cético é passivo não só na aceitação impulsiva da inelutável força das aparências, mas também na própria suspensão do juízo (epoché) que se configura em um estado mental que se impõe a ele de uma forma casual, semelhante à casualidade de um efeito desejado produzido não pelos meios ordinários, mas por um golpe de sorte totalmente indeliberado. 

Sextus parece querer enfatizar aqui ocaráter não-dogmático da própria suspensão do juízo mostrando que, em sua origem, ela é governada não pela vontade do pesquisador e nem é o resultado necessário da afirmação de doutrinas negativas como aquelas adotadas pelo ceticismo acadêmico. 

A expressão “suspensão do juízo” significa para o cético não mais do que a descrição do estado mental daquele que não é capaz de dizer, após a investigação, o que deve ser acreditado e o que deve ser duvidado. E se essa suspensão se deve à equipolência entre teses opostas sobre um mesmo objeto de estudo, o pirrônico não afirma categoricamente essa mesma equipolência e meramente expõe as coisas da forma em que elas aparecem a ele no momento da investigação.

O cético é tomado por esse estado de indecisão causado pela aparente equipolência teórica das evidências e argumentos contrários. De forma análoga, o pirrônico pode dizer que não determina nada, ou seja, não faz afirmações acerca daquilo que não lhe é aparente. E essa recusa a determinar algo significa também uma mera descrição do estado mental daquele que, no momento, se encontra incapaz de afirmar ou negar qualquer matéria que esteja sob investigação. E nisso, novamente, ele não está mais do que enunciando de forma não dogmática como as coisas lhe aparecem. Dito de outra forma, o cético “não está fazendo nenhuma declaração confidente, mas somente explicando seu próprio estado de espírito”.

A mesma interpretação deve ser estendida a todas as expressões utilizadas pelos céticos que tenham um caráter aparentemente dogmático. Assim, quando o pirrônico diz “todas as coisas são indeterminadas” ou “todas as coisas são inapreensíveis”, ele não está afirmando peremptoriamente uma suposta incapacidade real e última das coisas serem determinadas ou apreendidas. 

Nesses casos, o cético afirma que após investigar todas as coisas não-aparentes que o dogmático apresenta, ele chegou a um estado tal que se sente incapaz de afirmar algo sobre essas matérias. E esse estado é momentâneo, ou seja, se refere ao tempo presente da investigação. Até o momento, o cético não encontra motivos para mudar de ideia e, por enquanto, vai manter-se no estado de suspensão do juízo causado pela aparente equipolência das teses opostas.

Todos os adversários dogmáticos do ceticismo pirrônico partilham da mesma pretensão de afirmar conhecimento certo da natureza última das coisas. Desse modo, segundo Sextus, ainda que certas escolas dogmáticas ou sofistas pareçam compartilhar certas teses com os pirrônicos, é preciso ter em mente que estes não afirmam nenhuma tese acerca de qualquer assunto e que meramente expõem o estado mental de suspensão em que se encontram no momento. 

Sob uma aparente concordância exterior se encontra uma verdadeira distinção de significado e de ênfase que separa radicalmente pirrônicos e dogmáticos, mesmo que estes se intitulem também céticos. O cético pirrônico, ao contrário do acadêmico, não afirma sequer que suas impressões sejam mais prováveis do que quaisquer outras. Para ele, o curso de ação a que é levado a tomar pelas aparências não é mais provável do que o curso oposto. 

O bem que lhe parece bem e o mal que lhe parece mal não são por isso considerados como tais de forma absoluta ou mesmo provável. O cético não faz diferenças de graus de probabilidadeentre as impressões, sensíveis ou não, que se apresentam a ele. Enquanto impressões, elas são iguais em termos de probabilidade ou improbabilidade.

Após a apresentação das características do ceticismo pirrônico, Sextus Empiricus se dedica então a expor seu vertiginoso arsenal de argumentos compilados com o objetivo de fornecer ao investigador as armas de que necessita para seus próprios debates, sejam eles contra algum adversário determinado ou contra si mesmo, num solilóquio. 

Não obstante a variedade dos argumentos reunidos pelo médico cético grego em suas obras, estas parecem ter tido pouca influência mesmo no debate filosófico da antiguidade tardia. Pouco ou nada restou da polêmica dos céticos contra os estóicos, epicuristas e acadêmicos nos séculos posteriores e a referência mais óbvia é o livro de Cícero intitulado  Academica, que dificilmente pode ser considerado de grande acuidade ou fidelidade.

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Leia também:

http://oleniski.blogspot.com.br/2013/02/o-ceticismo-pirronico-ii-sextus.html

http://oleniski.blogspot.com.br/2013/02/carneades-e-o-ceticismo-academico.html


sábado, 9 de fevereiro de 2013

O ceticismo pirrônico I


                                         

"Os céticos tardios lançaram mão de Cinco Modos conducentes à suspensão que são nomeadamente estes: o primeiro baseado na discrepância, o segundo no regresso ad infinitum, o terceiro sobre relatividade, o quarto sobre hipóteses e o quinto sobre  raciocínio circular. Aquele baseado na discrepância leva-nos a achar que, com relação ao objeto apresentado, nasce, seja entre os homens comuns ou entre os filósofos, um interminável conflito devido ao qual nós somos incapazes seja de aceitar um lado ou rejeitá-lo e assim caímos em suspensão. O Modo baseado sobre o regresso  ad infinitum é aquele por meio do qual dizemos que aquilo que é aduzido como uma prova de uma a matéria proposta necessita de uma prova ulterior e esta necessita de outra e assim por diante ad infinitum, tal que o resultado é a suspensão, uma vez que não possuímos nenhum ponto de partida para nosso argumento. O Modo baseado sobre a relatividade, como nós já tratamos, é aquele segundo o qual o objeto tem tais e tais aparências com relação ao sujeito que julga e aos perceptos concomitantes, mas sobre sua real natureza suspendemos o juízo. Nós temos o Modo sobre as hipóteses quando os dogmáticos, forçados a recuar  ad infinitum, tomam como seus pontos de partida algo ao qual eles não estabelecem por argumento, mas o assumem como certo simplesmente e sem demonstração. O Modo sobre raciocínio circular é a forma usada quando a prova que deve estabelecer a matéria sob investigação requer confirmação derivada dessa própria matéria; nesse caso, sendo incapazes de assumir uma para estabelecer a outra, nós suspendemos o juízo sobre ambas."

SEXTUS EMPIRICUS, Hipotiposes Pirrônicas



A negação do conhecimento certo e infalível empreendida pelo ceticismo acadêmico encontrou resistência não somente entre as escolas filosóficas dogmáticas, mas também entre os céticos pirrônicos. Estes acusavam os acadêmicos de dogmatismo negativo, pois, se os estóicos eram dogmáticos porque afirmavam a possibilidade de um conhecimento certo e indubitável da natureza última das coisas, os acadêmicos eram igualmente dogmáticos porque negavam peremptoriamente a possibilidade de tal gênero de conhecimento.
                                               
Dissidente da Academia, Enesidemo, inspirado pela figura de Pirro de Élis, buscou formular um gênero de ceticismo que estivesse a meio caminho do dogmatismo afirmativo dos estóicos e de outras escolas e do dogmatismo negativo do ceticismo acadêmico. Ao invés de negar ou afirmar a possibilidade do conhecimento, o cético pirrônico suspendia o juízo acerca de toda “questão em relação à qual houvesse evidências em conflito, incluindo a questão sobre se podemos ou não conhecer algo”.

Sobre as ideias de Pirro de Élis (360  – 275 B.C.) pouco se sabe, pois não deixou qualquer escrito. Sabe-se, porém, com certa segurança, que esteve na Índia e isso leva a conjecturas acerca da influência de certas crenças indianas ortodoxas e heterodoxas no pensamento de Pirro. Essa influência talvez seja confirmada pelo fato de Pirro ter sido considerado, como R. G. Bury mostra na introdução às obras completas de  Sextus Empiricus, mais um moralista austero e ascético do que exatamente um teórico.

Seja como for, Pirro inspirou Enesidemo por sua postura de suspensão do juízo acerca de todos os assuntos. Enesidemo, nascido provavelmente em Creta, fez seus estudos em Alexandria e posteriormente juntou-se à Academia. Abandonou a escola platônica denunciando o que entendia ser o dogmatismo negativo de Arcesilau e Carnéades.e formulou uma série de dez argumentos chamados “tropos” ou “modos” em que tenta mostrar a incapacidade dos sentidos de descobrir a natureza das coisas que percebe.

Além desses argumentos, outros oito “tropos” sobre a causalidade foram formulados pelo pensador cretense, nos quais mostra as falácias envolvidas nas diversas doutrinas sobre a causalidade. Segundo o compilador  Sextus Empiricus, os dez tropos de Enesidemo são os seguintes:
                                               
"A tradição usual entre os antigos Céticos é que os “modos” pelos quais a “suspensão” é produzida são em número de dez; (...) O primeiro, baseado na variedade dos animais; o segundo nas diferenças entre seres humanos; o terceiro, nas diferenças entre os órgãos dos sentidos; o quarto, nas condições circunstanciais; o quinto, sobre posições, intervalos e locações; o sexto, nas misturas; o sétimo, sobre as quantidades e formações dos objetos subjacentes; o oitavo, sobre o fato da relatividade; o nono, sobre a frequência ou raridade de uma ocorrência; o décimo, sobre as disciplinas, costumes e lendas, as crenças lendárias e as convicções dogmáticas."

Os argumentos de Enesidemo têm como característica geral apontar diferenças entre fontes de conhecimento ou conflito entre as faculdades ou crenças a fim de evidenciar o pretenso caráter indecidível desses impasses e assim levar à suspensão do juízo com relação a tais problemas. Se os animais percebem as coisas de forma diferente dos humanos, se entre os homens há diferenças de percepção e os próprios órgãos dos sentidos são diversos, se as condições externas, a posição e as disposições internas influenciam nas percepções, se os objetos aparecem sempre juntos a outros objetos, são relativos uns aos outros e aparecem segundo frequências diversas, e se, por fim, as regras de conduta, as leis e as crenças conflitam entre si, então não há critérios para se decidir sobre a natureza última das coisas.

Ao final de sua apresentação dos argumentos de Enesidemo, Sextus Empiricus, compilador do ceticismo, afirma que “possivelmente os cinco modos serão suficientes contra as etiologias”. Esses argumentos, igualmente eficazes e mais econômicos, eram os cinco modos ou “tropos” cuja autoria foi atribuída a um certo Agripa que teria vivido mais ou menos um século após a morte de Enesidemo.
                                               
Os cinco tropos de Agripa destinam-se a mostrar que nenhuma argumentação pode estabelecer uma conclusão indubitável sobre qualquer matéria sob investigação e que, por esse motivo, deve-se suspender o juízo a respeito das mesmas. Os modos são geralmente atribuídos a Agripa, mas Sextus Empiricus não menciona qualquer autor determinado para esses argumentos, limitando-se a afirmar que eles eram usados pelos “céticos tardios”, como se verifica no trecho transcrito acima no início desta postagem.

Eminentemente de cunho lógico, esses tropos têm em comum a característica de minar qualquer tentativa de se fundar sobre bases indubitáveis uma argumentação ou uma demonstração sobre qualquer objeto de estudo. 

Como afirma o primeiro Modo, para toda a matéria sob investigação sempre existem pelo menos duas posições opostas (diaphonia) com razões equipolentes (isosthenia) e que causam no investigador honesto, incapaz de decidir entre qualquer uma das opções, um estado de espírito que o leva à suspensão do juízo (epoché). 

E se o investigador tentar fazer com que uma opinião repouse sobre uma premissa certa e indubitável, ele logo perceberá que esta suposta premissa indubitável deverá ser assumida por argumento ou por hipótese. Se for assumida por argumento ela deverá ser justificada por meio de uma premissa anterior da qual a primeira pode ser logicamente deduzida e a nova premissa deve, por sua vez também ser justificada por outra premissa da qual possa ser derivada e esta por outra e assim sucessivamente ad infinitum.

A fim de evitar esse regresso ao infinito, o investigador pode assumir como verdadeira a premissa que serve de base para seu argumento e interromper a indesejada cadeia de regressão das premissas. Para isso, contudo, ele deverá afirmar a sua verdade sem recurso a argumento, ou seja, sem demonstração. Se assim o fizer, terá caído no terceiro Modo e sua afirmação não será mais do que um dogma imposto, uma vez que nenhuma razão foi fornecida em seu apoio. 

Tomar a hipótese apenas como uma conjectura e então tentar confirmá-la por seus resultados seria não compreender o objetivo dos desses tropos de Agripa que é precipuamente demonstrar a impossibilidade de um conhecimento certo e infalível da natureza das coisas. A força desses argumentos está intrinsecamente ligada à concepção de um conhecimento verdadeiro a partir de premissas indubitáveis e não a um esquema hipotético-dedutivo.

O investigador pode ainda querer basear suas teses sobre o testemunho dos sentidos, mas nesse caso ele terá que decidir qual desses dados dos sentidos é fidedigno, pois estes parecem variar de acordo com a configuração do ambiente, com a constituição dos homens, dos povos e diferem até mesmo entre homens e animais. O caminho para uma fundamentação certa é dessa vez obstaculizado pelos argumentos apresentados nos dez Modos de Enesidemo, agora incluídos no corpo dos tropos de Agripa. 
                                               
O termo hipótese (hupothesis) é aqui tomado não no sentido moderno de conjectura, da qual se derivam consequências e predições testáveis por experimento. O sentido, no texto, está mais próximo de axioma, um fundamento de caráter evidente e indubitável do qual se pode demonstrar que a tese a ser provada é logicamente deduzida.

A última alternativa do investigador é buscar a justificação de sua tese não em uma afirmação dogmática de uma premissa e nem em um regresso infinito, mas num argumento que receba sua força de uma premissa cuja validade seja garantida por uma cadeia inferencial longa o suficiente para que o primeiro termo seja invocado de novo, desta vez ao final da cadeia, como garantia de todo o resto. Ora, isso nada mais é do que um raciocínio circular e sua validade não é em geral reconhecida nem pelos ditos “dogmáticos”. 

Aristóteles, por exemplo, condena expressamente  esse estilo de argumentação nos  Analíticos Posteriores e o autor dos tropos, Agripa ou não, parece concordar com a condenação dogmática. O raciocínio circular afiança a segurança de um argumento por meio da afirmação de uma premissa que, ao final de uma cadeia, será de novo afirmada para garantir a cadeia, o que não é diferente de se assumir dogmaticamente a verdade da premissa e assim não provar absolutamente nada. 

Como demonstra Aristóteles, quando se afirma a seguinte cadeia de condicionais “se A, então B; se B, então C”, afirma-se como conclusão que “se A, então C”. No caso de um raciocínio circular, C é substituído por A, o que resulta em “se A, então B; se B, então A”. A necessidade lógica obriga a afirmar que se no primeiro caso a conclusão seria “se A, então C”, o mesmo deve se dar no raciocínio circular. Como C foi substituído por A, a conclusão não pode ser outra que não “se A, então A”. Isso é o mesmo que afirmar a tautologia “A é A”, o que efetivamente é inútil para propósitos de prova.

O resultado do empreendimento do investigador honesto para justificar sua tese ou basear seu argumento em premissas seguras, sempre obstaculizado a cada passo dado por algum dos argumentos de Agripa, é a inevitável suspensão do juízo. 

A relatividade dos sentidos, a discordância acerca de todo e qualquer assunto, a impossibilidade de fundar um argumento numa regressão infinita, numa imposição dogmática ou numa circularidade tornam impossível afirmar qualquer conhecimento certo e infalível e conduzem ao caráter suspensivo do ceticismo. Entretanto, como já visto anteriormente, há diferenças importantes entre as pretensões do ceticismo pirrônico e aquelas do ceticismo acadêmico e é sobre elas que se concentra a obra de Sextus Empiricus.

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Leia também:

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http://oleniski.blogspot.com.br/2013/02/carneades-e-o-ceticismo-academico.html
                                               

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Carnéades e o ceticismo acadêmico




"No período do helenismo as várias observações e atitudes de filósofos gregos  de períodos anteriores foram desenvolvidas, formando um conjunto de argumentos, estabelecendo que (1) nenhuma forma de conhecimento é possível; ou que (2) não há evidência adequada para determinar se alguma forma de conhecimento é ou não possível e que, portanto, devemos suspender o juízo acerca de todas as questões relativas ao conhecimento. A primeira concepção denomina-se ceticismo acadêmico, a segunda, ceticismo pirrônico." (Tradução de Danilo Marcondes Filho)

RICHARD POPKIN, História do Ceticismo, p.13


Como assevera Richard Popkin, é no pensamento antigo grego que se inicia o ceticismo como uma concepção filosófica e não somente, da forma que popularmente hoje se dá, como dúvidas sobre o conteúdo de afirmações religiosas tradicionais. Mas já no período antigo se configura uma importante distinção entre “escolas” no ceticismo.


O ceticismo acadêmico floresceu no terceiro século A.C. sob a direção dos escolarcas Arcesilau e Carnéades. Nascido na Ásia Menor, Arcesilau (315-241 A.C.) estudou matemática e em Atenas foi discípulo de Teofrasto, sucessor de Aristóteles no Liceu. Transferiu-se posteriormente para a Academia e no ano de 270 A.C. foi eleito o novo chefe da escola platônica. Sob sua liderança a Academia passa a adotar uma postura mais crítica com relação à herança filosófica de Platão e, inspirando-se sobretudo em diálogos aporéticos como o Teeteto e o Parmenides, passa a defender uma prática dialética livre de dogmas inspirada na sentença de Sócrates “Só sei que nada sei”.

Carnéades de Cirene (213  -129 A.C.) foi discípulo do estóico Crisipo e inaugurou o que depois se convencionou denominar a “Nova Academia”. Com ele a escola platônica aprofunda ainda mais o caminho cético, chegando a afirmar que não se pode ter certeza de nada, pois tanto os sentidos quanto o raciocínio, únicas fontes do conhecimento, são falhos e sempre passíveis de erro. Ora, se o que se pensa conhecer pode estar errado, então não se tem conhecimento e sim uma opinião. O máximo que pode o homem honesto alcançar em seus empreendimentos cognitivos é um caráter provável para suas afirmações. 

Roderick Chisholm resume a posição de Carnéades segundo três pontos: (1) o caráter provável de uma percepção, (2) a aceitabilidade de proposições nãocontraditórias e concorrentes e (3) a verificação dessas proposições. O primeiro ponto é assim definido:

(1). Podemos enunciar a primeira tese de Carnéades dizendo: Se um homem tem uma percepção de alguma coisa com certa propriedade F, então, para ele, a proposição de que há alguma coisa com essa propriedade F é aceitável. Se tiver uma percepção de que alguma coisa é um gato, por exemplo, então para ele, a proposição de que há um gato é aceitável.

Um homem que vê algo que lhe parece um gato imediatamente forma a crença de que está diante de um gato. Ninguém o condenaria por isso. Mas os sentidos enganam e assumindo-se que ele tenha se enganado, que o que lhe pareceu distintamente ser um gato era na verdade outra coisa qualquer, então é necessário um critério para distinguir percepções verdadeiras das percepções falsas. 

O problema reside, segundo Carnéades, em que a experiência que o homem tem ao ver o gato não é em nada distinguível daquela em que ele veria um gato de verdade. Por isso, não se pode dizer que essa experiência sensível da visão de um gato possa ser considerada uma evidência imediata e segura.

Por outro lado, é evidente que o homem teve uma experiência de algo que parece ser um gato. Isso lhe concede o direito somente de considerar que é provável ou aceitável, como coloca Chisholm, que ele tenha visto de fato um gato. A certeza, não obstante, está fora de questão uma vez que a experiência sensível pode sempre levar ao erro. A partir desse gênero de experiências prováveis, Carnéades aponta para uma subclasse descrita por Chisholm no ponto (2):

(2).  Algumas das nossas percepções concorrem e reforçam-se mutuamente, “conjugando-se como elos de uma corrente”. Essas percepções são por ele descritas como “não-contraditórias e concorrentes”; cada uma delas atesta o mesmo fato e nenhuma delas suscita dúvidas sobre qualquer das restantes.

Quando alguém encontra um homem e o identifica como sendo Sócrates, sua base para essa identificação é uma série de características que aquele homem tem e que são as mesmas de Sócrates. Tudo isso permite que se diga que é provável que o homem que aqui está é Sócrates. Novamente deve-se apontar para o fato de que, apesar de toda a evidência favorável, ainda não se pode afirmar com certeza a identidade daquele homem, pois os sentidos podem enganar.

O terceiro ponto diz respeito também a uma subclasse, dessa vez proveniente das percepções “concorrentes e não-contraditórias”. Chisholm explica:
                                               
(3). Finalmente, da  classe das percepções “não-contraditórias e concorrentes” que acabamos de descrever, Carnéades destaca ainda outro subgrupo  – aquelas percepções que têm a virtude adicional de estar “meticulosamente examinadas e comprovadas”. Na “comprovação” de uma percepção, “examinamos meticulosamente” as condições em que ela ocorreu. Examinamos as condições de observação  – os meios intermediários, os nossos órgãos sensórios e o nosso estado de espírito.

Carnéades defende aqui um exame das disposições corporais, da saúde dos órgãos e da eficiência das faculdades, bem como da configuração do ambiente em que se dá a experiência para que se determine a confiabilidade de uma percepção. Tal avaliação é necessária para evitar que disposições inadequadas das faculdades ou do ambiente interfiram no processo do conhecimento e conduzam ao erro. Doenças, 
debilidades e distúrbios orgânicos podem interferir no bom funcionamento do aparelho cognitivo e situações ambientais incomuns podem limitar e até mesmo impedir uma apreensão correta do que aparece. Se as condições são ideais ou proximamente ideais, então a percepção é aceitável.

Todo esse conjunto de restrições exemplificado nos três pontos acima explanados não garante, contudo, a verdade de nenhuma experiência. Como lembra Chisholm, “uma proposição pode passar nesses testes e apesar disso, ser falsa”

Do ponto de vista de Carnéades, pode-se alcançar no conhecimento uma segurança meramente provável, mas nunca uma certeza inabalável. Jamais há certeza porque não há critério absoluto para julgar as experiências que, quando falsas, aparecem justamente como apareceriam se fossem verdadeiras.

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terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Curta introdução ao problema de Gettier



Os dois no meio da fileira do meio, da esquerda para a direita: Edmund Gettier e Alvin Plantinga


O conhecimento é uma atividade cotidiana e não somente um problema filosófico abstrato. Em cada momento do dia pensamos e agimos segundo critérios tácitos ou explícitos, de maior ou menor complexidade de acordo com a situação e a previsão dos riscos envolvidos. Por conseguinte, uma definição única de conhecimento ou mesmo a imposição de uma metodologia rígida para todas as atividades seria ou inútil ou contraproducente.

Entretanto, algumas intuições se apresentam como condições mínimas para que alguém possa alegar com justiça que tem conhecimento de algo. Se ao atravessar o centro da cidade para chegar ao trabalho perguntamos a um transeunte qualquer que horas são e este responde prontamente “meio-dia” sem consultar seu relógio, naturalmente não confiamos na resposta. Sentimos que algo lhe falta para poder fazer essa afirmação.

Evidentemente, poderíamos nos satisfazer com essa informação se nosso objetivo era tão somente obter uma vaga estimativa da hora e não a hora exata. O contrário sendo o caso, sentimo-nos no direito de interpelar o transeunte uma segunda vez perguntando de onde lhe vem a certeza de sua resposta. Se ele responder que simplesmente sabe que é meio-dia, a dúvida persistirá. Ainda que, segundos após esse episódio,  achemos um relógio eletrônico na praça e nos certifiquemos da verdade da afirmação do transeunte, isso não a tornará mais confiável.

Num caso simples do cotidiano como o descrito acima, vêem-se envolvidos diversos critérios usualmente empregados para se reconhecer a alegação  de conhecimento de um fato. Não nos parece suficiente que alguém meramente afirme conhecer algo. Dizer que sabe a hora exata sem ter consultado o relógio parece-nos absurdo ainda que a afirmação seja estritamente verdadeira, ou seja, que a proposição corresponda aos fatos.

A estranheza e a desconfiança vêm do fato de reconhecermos que sempre é possível dizer algo verdadeiro sobre qualquer assunto sem nada saber sobre ele. Se alguém se dedicasse a fazer afirmações sobre economia todos os dias, mesmo sem ter a menor formação nessa disciplina ou consultar dados e informativos, haveria uma probabilidade alta de que um dia dissesse algo de verdadeiro. É porque reconhecemos a possibilidade de coincidências que desconfiamos dessas informações.

Contrariamente, a afirmação confiável é aquela que é feita a partir de bases reconhecidas como usual ou infalivelmente seguras. Um indivíduo que queira provar uma proposição deve mostrar que ela se deduz logicamente de premissas evidentes ou, ao menos, verdadeiras. Se quiser afirmar uma teoria empírica, deverá mostrar que ela se deduz de conhecimentos já suficientemente aceitos, concorda com os dados da experiência direta e fornece predições seguidamente confirmadas.

É óbvio que sempre há o risco do erro. As bases podem ser falsas ou insuficientes para provar o que se deseja provar. Mas se esse não é o caso e as bases são seguras, não há porque não prestar assentimento ao que é proposto como verdade. Nesse caso, tem-se tudo o que geralmente se exige como condições necessárias e suficientes para a afirmação de conhecimento, a saber, crença verdadeira justificada.

Em primeiro lugar tem-se a crença na verdade da proposição, tese ou teoria. O assentimento à proposição é essencial para que se possa afirmar conhecimento. Não há como dizer que se conhece algo se não se acredita na verdade do que se afirma sobre ele. Cumpre também encontrar uma justificativa para a crença, ou seja, encontrar bases adequadas para a afirmação. Por fim, é imprescindível que a proposição mesma seja verdadeira.

Voltemos ao caso do homem que pergunta as horas a um transeunte no centro da cidade. O cenário é o mesmo, a resposta permanece insatisfatória e o indagador acaba por confirmar a veracidade da informação por meio de um relógio eletrônico no meio da praça. Agora é possível afirmar que o homem tem conhecimento de que horas são. A crença de que é meio-dia é verdadeira (de fato, é meio-dia) e é sustentada pela justificação dada pela consulta ao relógio (que é uma forma adequada de aferição).

A essa situação acrescente-se o seguinte detalhe: o relógio está quebrado. Ora, qualquer relógio parado dá as horas corretamente pelo menos duas vezes ao dia. A probabilidade de que alguém o consulte em um dos dois momentos em que isso se dá não é muito alta individualmente, mas aumenta se considerarmos a quantidade de pessoas que consultam o relógio de uma praça no centro da cidade. Sem dúvida, isso aconteceu a pelo menos uma pessoa algum dia.

Considere-se que tenha acontecido ao homem de quem se falou até agora. Ao consultar o relógio parado no meio da praça, ele o fez no momento em que o aparelho danificado marcava a hora correta. Dessa forma, ele tem a crença de que é meio-dia, essa crença é verdadeira (de fato, é meio-dia) e justificada por meio adequado de aferição. A pergunta, considerando-se que o relógio estava parado, é se há realmente conhecimento nesse caso.

O homem em questão não sabe que o relógio está parado e que foi somente uma coincidência o fato de que ele o consultou justamente no momento em que a máquina fornecia a hora correta. O ponto nevrálgico dessa questão é a dificuldade de se afirmar que uma coincidência possa figurar como justificação válida para atribuições de conhecimento. Não obstante, se realmente não é possível atribuir conhecimento nesses  casos, então crença, verdade e justificação não são condições suficientes, embora aparentemente sejam necessárias, para o conhecimento.

Em síntese, essa questão é o cerne do artigo  Is Justified True Belief Knowledge? de autoria do filósofo americano Edmund Gettier, publicado no número 23 da revista Analysis do ano de 1963. Em apenas três páginas e por meio de dois exemplos inventados, Gettier pretendeu demonstrar que a ideia de conhecimento como crença verdadeira justificada não se sustenta. No artigo, o filósofo afirma que várias tentativas foram feitas nos anos recentes para determinar as condições necessárias e suficientes para o conhecimento de uma dada proposição e que tais tentativas têm em geral a seguinte forma:

S sabe que P se e somente se:
P é verdadeiro.
S crê que P.
S está justificado a crer que P.

Em seguida, o americano ilustra sua afirmação com exemplos tirados de dois filósofos contemporâneos, Roderick Chisholm e A. Ayer. Segundo Gettier, Chisholm defende que alguém sabe que P se e somente se:

S aceita P.
S tem evidência adequada para P.
P é verdadeiro.

Por sua vez, ainda segundo Gettier, Ayer sustenta que as condições necessárias e suficientes para o conhecimento são aquelas em que

P é verdadeiro;
S está certo de que P é verdadeiro.
S tem o direito de estar certo de que P é verdadeiro.

Ora, para o filósofo americano, as condições dadas nos exemplos acima não são suficientes para a verdade da proposição de que “S sabe P”. Sua argumentação intenta mostrar que o problema reside na condição “S está justificado a crer que P” e que a situação permanece a mesma quando se substitui “S está justificado a crer que P” pelas variantes “S tem evidência adequada para P” ou “S tem o direito de estar 
certo de que P é verdadeiro”.

Gettier então passa a descrever dois casos fictícios para ilustrar dois pontos. No primeiro deles, mantendo-se o sentido de “justificado” empregado como condição necessária para que S saiba que P, uma pessoa pode estar justificada em crer que P e P ser falso. E no segundo, para qualquer proposição P, se S está justificado em crer que P, e P tem Q como consequência, e S deduz Q de P e aceita Q como resultado dessa dedução, então S está justificado em crer que Q.

No primeiro exemplo apresentado por Gettier, supõe-se a existência de dois homens, Smith e Jones, que fazem solicitação para um emprego. Supõe-se também que Smith tem forte evidência para chegar à proposição conjuntiva segundo a qual: (a) Jones é o homem que vai conseguir o emprego e Jones tem dez moedas em seu bolso.

A evidência que Smith tem para (a) vem da informação dada a ele diretamente pelo presidente da companhia de que Jones seria selecionado ao final e do fato de que ele mesmo (Smith) havia contado as moedas no bolso de Jones dez minutos atrás.  Da proposição (a) deriva-se a proposição (b) segundo a qual:
(b) O homem que vai conseguir o emprego tem dez moedas no bolso.

Supondo que Smith perceba a derivação de (b) de (a) e aceite (b) baseado em (a), então Smith está claramente justificado em crer que (b) é uma proposição verdadeira. Contudo, suponha-se que, a despeito do desconhecimento de Smith, será ele e não Jones que conseguirá o emprego e que, além disso, ele também tem dez moedas no bolso sem o saber. Sendo assim, a proposição (b) é verdadeira, embora a 
proposição (a) da qual ela é derivada é falsa. De tal cenário se conclui que:

1. A proposição (b) é verdadeira.
2. Smith crê que (b) é verdadeira.
3. Smith está justificado em crer que (b) é verdadeira.
                                               

O problema reside no fato de que Smith realmente não sabe que (b) é verdadeira, uma vez que ele ignora que tem dez moedas em seu próprio bolso. E a verdade de (b) se funda no fato da existência de dez moedas no bolso de Smith, embora o próprio Smith derive a verdade de (b) do fato de Jones ter dez moedas no bolso e da informação de que Jones conseguirá o emprego no fim.

O segundo caso fornecido por Gettier tem como personagens os mesmos Smith e Jones numa situação diferente, mas com os mesmos resultados teóricos. O filósofo americano convida o leitor de seu artigo a imaginar que Smith tem forte evidência para a seguinte proposição:

(c) Jones é dono de um Ford. 

Há muito que Smith conhece Jones e até onde Smith se lembra, Jones sempre teve um carro e este sempre foi um Ford. Além disso, Jones acabou de oferecer uma carona a Smith enquanto dirigia um Ford. Não obstante, Smith tem um amigo chamado Brown cujo paradeiro é desconhecido e seleciona ao esmo as três seguintes proposições:

(d) Ou Jones tem um Ford ou Brown está em Boston.
(e) Ou Jones tem um Ford ou Brown está em Barcelona.
(f) Ou Jones tem um Ford ou Brown está em Brest-Litovsk.

Cada uma dessas proposições pode ser derivada de (c) e Gettier sugere ao leitor que admita que Smith não só percebe essa derivação como aceita como verdadeiras as três proposições (d), (e) e (f) baseado na verdade de (c). Como Smith as inferiu de uma outra proposição da qual ele tem grande evidência, então Smith está totalmente justificado em crer nas três proposições acima identificadas. 

Acrescente-se em seguida que, na verdade, Jones dirige um Ford alugado e que, por uma grande coincidência, sem que Smith disso saiba, Brown realmente está em Barcelona.  Admitidas essas duas novas informações, temos:
                                               
1. A proposição (e) é verdadeira.
2. Smith acredita que (e) é verdadeira.
3. Smith está justificado em crer que (e) é verdadeira.

Segundo Gettier, apesar das condições acima terem sido preenchidas, não se pode afirmar que realmente Smith tenha conhecimento de que (e) é verdadeira. O que torna Smith justificado em crer na verdade de (e) é a mera coincidência de que Brown esteja em Barcelona (do que ele não tem nenhuma evidência) e não a proposição (da qual ele pensa que tem grande evidência) de que Jones tem um Ford.

Os dois casos criados por Gettier têm como objetivo mostrar que a análise segundo a qual conhecimento é crença verdadeira justificada está errada. A reação a essa afirmação foi imediata e logo após a publicação do artigo seguiu-se uma enxurrada de respostas gerando uma polêmica baseada majoritariamente em artigos de revistas acadêmicas. Como afirmou Alvin Plantinga, o caso de Gettier é único na filosofia contemporânea e sua importância pode ser medida pela disparidade entre o número de páginas do artigo original e o número de páginas que foram escritas para respondê-lo.