terça-feira, 29 de abril de 2025

O Tao e o simbolismo da água

 

"Nada sob o céu é mais flexível e frágil que a água. A água é a Via."

WEN TZU, 8

O livro de Wen Tzu (文子), obra canônica da tradição taoísta, afirma no seu capítulo 8 que "a totalidade dos seres passam por uma única abertura, e as raízes de todas as coisas emergem de um só portão". As "dez mil coisas" (萬物), segundo a tradicional expressão taoísta de totalidade, nascem da fonte única, derradeira e indizível, o Tao (道, a Via). Os sábios, conhecendo essa realidade, "determinam uma trilha a seguir, e não desviam do original ou se afastam do perene".

A invariância do Tao é refletida na equanimidade do sábio que não se deixa desviar de sua imperturbabilidade nem pela alegria e nem pela raiva, nem pela inclinação e nem pela aversão. Tais são os excessos que destroem a tranquilidade, geram a ansiedade, o medo e a loucura. O que afasta o homem da Via são os opostos que nascem do desejo. Preferir isto é preterir aquilo. Ao preferir isto, surgem imediatamente o anseio de possuir isto e o medo de não possuí-lo. A mente não é mais livre, está cativa e só enxerga o objeto de seu desejo ou de sua aversão.

Ninguém pode enxergar o monte se seu olhar está fixado na nuvem que passa à sua frente. Acompanhar a sua passagem é preferir a parte em vez do Todo. O cenário inteiro só é visto quando nenhuma de suas partes é destacada, quando a nenhuma delas é concedida uma existência absolutamente separada de todas as outras. Ver o Todo implica não ver nenhum dos seus elementos em particular. Isso não significa perdê-los de vista, mas, ao contrário, vê-los na unidade que lhes ultrapassa, fundamenta e concede-lhes sentido.

Quem se livra dessas oposições criadas pelo desejo e pela aversão funde-se com a luz espiritual que, por sua vez, não é nada mais do que a "conquista do interior". No primeiro parágrafo do capítulo 4 afirma-se que "a sabedoria não tem a ver com o governo dos outros e sim com a ordenação de si mesmo. A nobreza não é poder ou posição, mas a auto-realização. Aquele que a alcança encontra o mundo dentro de si". Assim, o sábio, unido ao Tao interiormente, não teme ou deseja nada. Sua ordenação reflete a ordenação das coisas desde o seu Princípio.

Não são as coisas exteriores que devem se adequar aos desejos, às inclinações ou às aversões que habitam o interior do homem. É o interior que, adequado à Via, reflete a natureza das coisas externas como um espelho sem mancha reflete qualquer objeto indistintamente, sem preferência e sem mudança em sua natureza vazia. Não é possível ao recipiente cheio receber mais água.

"A Via molda miríades de seres permanecendo sempre sem forma. Silente e imóvel, compreende por inteiro o indiferenciado desconhecido". O sábio abraça o caminho do Céu (天道) e possui a mente do Céu (天心), "respira escuridão e luz, exala o velho e inala o novo". Tal qual a Via, o sábio não possui forma própria, por isso pode absorver em si os opostos sem resistência interior. Nada o agrada ou o desagrada, "todas as coisas são misteriosamente idênticas". A unidade subjacente ao múltiplo integra todas as coisas sem negá-las.

A Via e o sábio são firmes e flexíveis, podem se retrair e se expandir livremente de acordo com as circunstâncias. A firmeza não é a retração inflexível que impede o movimento e a adaptação. A flexibilidade não é a expansão frouxa que nada consegue realizar. O lutador cujo corpo é rígido, tensionado e retraído não consegue reagir a tempo ao golpe do adversário. É preciso que ele esteja relaxado e flexível para responder a ação externa sem demora.

Porém, o relaxamento não deve ser tibieza. O lutador cujo corpo é frouxo não logra reagir ao golpe do adversário por falta de firmeza. Tampouco seu contragolpe (se houver) será eficiente. O ponto está em ser flexível e firme nos momentos certos. A firmeza de um soco está na sua finalização, e é precedida pela flexibilidade do relaxamento do corpo. A firmeza deve novamente retornar à flexibilidade tão logo o golpe tenha sido desferido. A onda que se forma e bate contra a pedra desfaz-se em seguida retornado à indistinção do mar.

"Nada sob o céu é mais flexível e frágil que a água. A água é a Via: infinitamente larga, incalculavelmente profunda. Estende-se indefinidamente sem fronteiras. Cresce e decresce sem cálculo, no alto do céu faz-se chuva e desce, e abaixo faz-se terra úmida fértil. Sem ela, os seres não vivem e as obras não são realizadas. Abarca toda vida sem preferências pessoais. Sua umidade alcança até os seres rastejantes, e não busca recompensa".

A água (水) é um símbolo da Via (道). Amorfa, ela assume os contornos daquilo no qual se encontra, semelhante ao poder do Tao de, por assim dizertornar-se todas as coisas que ele origina. Justamente por não ser nada em particular, o Princípio último (a Possibilidade Absoluta) pode constituir os limites intrínsecos de cada coisa que há e pode haver. A adaptabilidade da água à forma de qualquer corpo continente representa essa virtude proteica e criativa de ser todas as coisas sob certo aspecto e não ser nenhuma delas segundo outro aspecto.

A extensão sem limite aparente e as profundidades abissais do mar sugerem a natureza infinita e indiferenciada da Via. Ela cresce e diminui sem cálculo, com liberalidade absoluta. Nesse sentido, a Via é desmedida, transbordante, e não estabelece qualquer limite para a sua doação às coisas. A sua prodigalidade contrasta com a avareza do homem que guarda ciosamente as suas posses. 

O trânsito ascendente da água na direção do Céu (天) e descendente na direção da Terra (地) representam a presença do Tao nos dois polos opostos primordiais da realidade. A unidade é fundamento da dualidade. As transformações respectivas da água em chuva e em umidade fértil indicam a permanência que subjaz às mudanças dos estados. Os seres vivos não sobrevivem sem água e nem as obras são feitas na sua ausência. Tudo depende do Tao para existir e se manter na existência.

A água distribui suas bênçãos gratuitamente a todas as coisas, as superiores e as inferiores, sem distinção de nenhuma espécie. Pois o Pai que está nos Céus "faz que o seu sol se levante sobre maus e bons, e a chuva desça sobre justos e injustos" (Mt 5,45). A presença do Princípio nos seres traz todos eles à existência e os sustenta, não importando o seu lugar na hierarquia cósmica. Essa equanimidade é a suprema virtude (至德), e a água a simboliza por ser suave e flexível.

"Ilimitada a sua ação, incompreensível a sua sutileza. Não sofre dano se golpeada, a perfuração não a fere, o fatiamento não a corta, o fogo não a incendeia. Suave e flexível, não se dispersa. É tão penetrante que perfura o metal e a pedra, e forte para submergir tudo sob o céu (天下)".*

A água não apresenta limites na sua ação, renova-se constantemente. Nenhum golpe causa-lhe mágoa, nem lâmina alguma logra perfurá-la ou cortá-la. O fogo não a queima. Não é rígida, por isso pode ser flexível e se adaptar às situações. Não obstante, penetra as coisas rígidas como como os metais e as pedras, e pode submergir todas as coisas num dilúvio. Mesmo não sendo sólida, a água pode, se concentrada, destruir estruturas sólidas. 

O caráter imaterial e espiritual da Via é representado pela suavidade e pela flexibilidade da água. Nada pode atingi-la porque tudo o que há e pode haver, as "dez mil coisas", provém de seu poder inesgotável. O Tao está inteiramente presente nos seres, desde os mais tênues e imateriais até os mais grosseiros e sólidos, semelhante à água que penetra até nos metais e nas pedras. "O mais suave controla o mais forte". A despeito de sua sutileza e de sua invisibilidade, o poder do Princípio é capaz de submergir tudo o que há neste mundo. 

"O informe é o grande ancestral dos seres". forma vem do informe, o qual não deve ser entendido como aquilo que está abaixo de qualquer forma, mas como a transcendência de toda forma. As águas simbolizam tradicionalmente o potencial, o que ainda não se efetivou na realidade. No sentido das águas inferiores, elas representam o amorfo enquanto dissolução das formas. Porém, na qualidade de águas superioreselas são o repositório de todos os possíveis, a infinita coincidentia oppositorum na qual todas as coisas têm o seu nascedouro.
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* 天下, Tienxia, expressão formada pelos ideogramas 天, "Céu" e 下 "abaixo" ou "inferior" pode ser traduzida como "o que está sob o céu", significando o mundo como um todo. Há outros significados metafísicos, sociais e políticos.
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