quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Aristóteles, física, magnitude e tempo



A Física de Aristóteles é uma física da magnitude. A observação mais cotidiana nos apresenta um mundo de corpos e de limites. Tudo o que é físico é um intervalo entre limites.

Se duas coisas são contínuas, é porque suas extremidades coincidem e se elas estão "em contato" é porque suas extremidades se tocam, estão juntas.

No interior de uma magnitude não há solução de continuidade, pois se houvesse, imediatamente se trataria não de uma magnitude, mas de duas ou mais. E se os limites dessas magnitudes se encontram sem que haja fusão, ou seja, enquanto permanecem distintas, então elas estão em contato. E há sucessão quando uma está após a outra sem que nada do mesmo gênero esteja entre elas.

Ora, todo o contínuo é divisível. E cada parte resultante da divisão pode ser divida. E também a resultante dessa operação e assim ao infinito. Como se poderia chegar a um fim? Somente se admitíssemos indivisíveis ou átomos.

Contudo, uma coisa só pode ser dividida porque é uma magnitude. Algo indivisível seria aquilo cuja separação de suas partes potenciais fosse impossível. Por princípio, qualquer coisa que tenha partes e extremidades pode ser dividida. O indivisível seria a ausência absoluta de partes.

Mas então aquilo que é indivisível não teria partes ou extremidades, ou melhor dizendo, suas extremidades coincidiriam todas num único ponto sem extensão alguma. Se é assim, o indivisível não poderia formar o contínuo, pois só são contínuas as coisas cujas extremidades coincidem.

Os indivisíveis nem mesmo se tocariam, uma vez que não possuem extermidades para entrarem em contato umas com as outras. Daí a impossibilidade de pontos formarem uma linha. Se os pontos não têm extensão, como se admite, então eles não podem se tocar e nem estar em sucessão porque não possuem extremidades ou partes.

Entre um ponto e outro há sempre uma linha assim como entre um instante e outro há sempre um período de tempo. O tempo é sempre o intervalo entre um agora e outro agora. É um contínuo circunscrito por limites. Assim como o limite de um corpo não tem extensão (porque se tivesse, o limite seria ele mesmo uma magnitude e teria, por sua vez, limites determinados), os limites do tempo são instantâneos, sem extensão.

Eles são meras negações, circunscrições que tornam possível a determinação da coisa. Tudo o que é, é limitado. O ilimitado, o destituído de limites, é incognoscível. Para Aristóteles, o infinito atual, ou seja, o infinito presente em sua "totalidade", realizado aqui e agora, é impossível. Só há o infinito potencial.

O tempo é infinito porque em qualquer momento, é sempre possível acrescentar um próximo, e assim por diante. Mas o tempo não está inteiro presente em uma infinitude atual. Ele sempre é limitado por um efêmero, porém limitador, agora. Dessa forma, o tempo é sempre período, contínuo, apresentando limites que se sucedem, mas que, não obstante, impedem a infinitude atualizada.

Por conseguinte, o tempo é divisível ao infinito como toda e qualquer magnitude. E assim como uma linha é um período, um intervalo marcado por dois limites, os pontos, o tempo é ele também sempre um intervalo entre dois limites, os agoras.

Se um contínuo não pode ser formado por indivisíveis, então o tempo também não será constituído de sucessivos momentos sem extensão. Uma linha pode ser divida em diversas partes, aqui e acolá. Os pedaços resultantes podem ser maiores ou menores de acordo com o desejo daquele que opera a divisão. Em qualquer momento de sua extensão ela pode ser seccionada.

Isso não significa que ela seja constituída de pontos sucessivos sem extensão. Ela se transformará sim, se dividida, em pelo menos dois segmentos diversos, com limites obviamente sem extensão. Mas não há pontos indivisíveis constituintes diante dos quais a divisão terá de se deter.

O ponto central é que aqueles que consideram os indivisíveis como constituintes fundamentais do contínuo conceituam-nos como entes sem extensão e os imaginam, por outro lado, como coisas extensas. Uma parede é certamente feita de blocos. Pode-se dizer então que os blocos a constituem. Contudo, blocos são coisas extensas, magnitudes, possuem partes e, por conseguinte, extremidades.

Suas extermidades entram em contato com as dos outros blocos, apoiando-se uns nos outros. Até aí, o raciocínio funciona. Mas quando se admite que esses "blocos" não possuem extensão alguma, que são totalmente simples, sem partes e indivisíveis, torna-se impossível a construção de qualquer coisa contínua, para a qual se exige a coincidência das extremidades.

O ponto (o indivisível, o instante) é o limite tomado como coisa subsistente. É a hipostasiação de uma negação.

Para Aristóteles, nenhuma magnitude é constituída de indivisíveis. Não há, portanto, espaço para o vazio, tomado como absoluta ausência de qualquer coisa. Como as coisas mover-se-iam no vazio se ele, literalmente, é nada? Tudo que se move é uma magnitude que está contida num lugar, que, por sua vez, é o limite mais interno de um corpo continente.

domingo, 5 de dezembro de 2010

"Isaac Newton and the Transmutation of Alchemy": positivismo,ciência natural e hermetismo



Em 1936 o economista inglês John Maynard Keynes comprou em um leilão uma grande quantidade de caixas contendo escritos de Isaac Newton que foram considerados "inadequados para publicação" por seu executor legal após sua morte em 1727.

Keynes, após apreciar atentamente o conteúdo, veio a público declarar que Isaac Newton não era somente o primeiro da "era da razão, mas o último dos feiticeiros." Isso porque os escritos em sua posse eram majoritariamente tratados de alquimia.

Desde então houve um grande esforço para se compreender o papel que a alquimia e a religião tiveram na vida particular e nas pesquisas científicas de Newton. Após os importantes estudos de acadêmicos e biógrafos como Alexandre Koyré, Edwin Burtt, Frances Yates, Betty Dobbs, Richard Westfall, Michael White e outros, parece bem assentado o fato de que questões religiosas, metafísicas e alquímicas tiveram papel preponderante nas pesquisas pessoais e acadêmicas do sábio inglês.

Sabe-se, por exemplo, que Newton possuía vasta biblioteca sobre alquimia e hermetismo, que adquiriu novos volumes sobre esses assuntos até seus últimos dias e que mantinha extensa correspondência usando a linguagem simbólica característica dos alquimistas. Newton escreveu também tratados teológicos e de interpretação bíblica sobre as profecias de Daniel e do Apocalipse de São João.

Philip Ashley Fanning em seu livro intitulado Isaac Newton and the Transmutation of Alchemy explora as possíveis origens hermético-alquímicas da Royal Society e da filosofia natural de Newton, traçando um panorama que recua até John Dee no século XVI e a Fraternidade Rosa- Cruz no século XVII.

O livro é uma boa fonte de informação sobre diversos personagens e eventos históricos pouco estudados, mas peca por evidente ausência de um aprofundamento teórico-conceitual acerca de diversos aspectos das questões e disputas filosóficas de que trata.

O pior de seus defeitos é tomar os termos metafísica e sobrenatural como equivalentes e reduzí-los igualmente ao campo do mero inconsciente. Essa pressuposição junguiana (como ele mesmo a define) é altamente inadequada e empobrece a discussão.

Fanning deplora a perda de todo esse arcabouço teórico hermético-alquímico que, segundo ele, seria capaz de conjugar melhor o inconsciente e o consciente. Ele encara a religião e a ciência como cultores antagônicos de dogmatismos infundados e vê na tradição alquímica uma alternativa a essa relação conturbadamente dicotômica.

É interessante como Fanning parece não perceber que sua concepção do que é a metafísica e o sobrenatural é devedora da mesma visão iluminista e secular que dá sustento ao antagonismo que ele pretende condenar. E mais, qualquer restauração do hermetismo sob essa égide não seria nada mais do que a criação de um ente totalmente artificial que não poderia manter nenhuma ligação efetiva com aquilo a que os filósofos hermetistas se dedicaram.

Não é possível deplorar seriamente o fim de certas artes sem reconhecer suas prerrogativas intrínsecas e as concepções que lhes são essenciais da forma como elas foram tomadas e encaradas por seus praticantes originais. Caso contrário só se estará travestindo o novo com roupas velhas e desgastadas.

Contudo, a despeito das inúmeras questões filosóficas que deixa em aberto, Fanning faz uma sugestão interessante que, independente de sua verdade ou falsidade, dá azo a algumas reflexões sobre o caráter de um certo gênero de positivismo.

Segundo a conjectura de Fanning, Newton, entretido por anos a fio com a literatura hermética e com experimentos alquímicos, quis disfarçar seus interesses e suas reais concepções sobre a natureza das coisas com uma retórica positivista na qual advogava como objetivo da filosofia natural somente a descrição matemática do comportamento observável dos corpos sem hipóteses sobre a constituição última dos fenômenos.

Em outros termos, Newton teria se eximido da tarefa de fornecer publicamente no seu Principia as causas últimas dos fenômenos observáveis por auto-preservação, afinal seus colegas da Royal Society se sentiriam ofendidos com suas teses herméticas.

Como dito acima, independente do valor intrínseco da conjectura, ela mostra algo de muito importante sobre esse positivismo. Ele pode ser defendido tanto por aquele que despreza ou não crê nas investigações metafísicas quanto por aquele que pretende limitar o alcance da ciência natural e assim preservar a usurpação do território próprio da metafísica como um saber de ordem superior.

Nos dois casos a ciência natural se torna um saber autônomo que se ancora somente na adequação de suas teorias ao que é observado e predito, sem a pretensão de alcançar as causas últimas das coisas. Circunscrita a tais limites, (pretensamente) a ciência pode realizar suas pesquisas num campo suficientemente delineado, sendo regida somente pelo compromisso da adequação empírica.

Para alguns isso representaria a proteção da ciência natural contra as ameaças das disputas abstratas da metafísica ou das fantasias sobrenaturais. Para outros, no entanto, seria a defesa da metafísica contra os arroubos irrefletidos do dogmatismo da ciência natural.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Isaac Newton: física, metafísica e positivismo


"Dizer-nos que todas as espécies de coisas são dotadas de uma qualidade oculta específica pela qual elas agem e produzem efeitos é não dizer nada. Mas derivar dos fenômenos dois ou três princípios gerais do movimento e depois dizer-nos como as propriedades e ações de todas as coisas corpóreas seguem-se daqueles princípios manifestos, seria um grande passo em filosofia, embora as causas de tais princípios não fossem ainda descobertas." (tradução minha)

ISAAC NEWTON, Opticks, p. 377

Na passagem acima citada Isaac Newton resume seus objetivos em filosofia natural. Para ele, cuja mentalidade era precipuamente empiricista, o importante é encontrar no comportamento manifesto observado das grandezas físicas uma série limitada de princípios e, a partir deles, derivar logicamente conseqüências e predições que estejam de acordo com o comportamento de todos os corpos.

Essa metodologia não implica nenhuma afirmação ou postulação daquilo que Newton chamou de "hipóteses", ou seja, afirmações sobre qualidades ocultas ou mecânicas que não sejam rigorosamente derivadas dos fenômenos, do que é manifesto.

Segundo Newton, ainda em Opticks, mesmo os princípios por ele postulados como massa, gravidade e coesão, devem ser considerados não como qualidades ocultas dos corpos, mas como qualidades manifestas à observação cujas causas últimas não podem ser descobertas.

O historiador e filósofo da ciência E. A. Burtt afirma que "para Newton, então, a ciência era composta de leis afirmando somente o comportamento matemático da natureza - leis claramente deduzidas dos fenômenos e verificáveis exatamente nos fenômenos - tudo o que vai além disso deve ser expulso da ciência, a qual se torna um corpo de verdades absolutamente certas sobre os acontecimentos do mundo físico."

"Hypotheses non fingo", afirmava o gênio britânico. Esse seria o espírito "positivista" da ciência newtoniana. Mas como Burtt adverte, aquele que pretende expulsar de sua ciência todos os traços de explicação metafísica, aceita, sem o perceber, um corpo de crenças bem determinado que permeia seus raciocínios e permanece não-criticado.

E esse é o grande perigo. Esse corpo de crenças e pressuposições afirmado inconscientemente passa para a posteridade como parte essencial da doutrina de um cientista e se beneficia dos méritos preditivos apresentados pelas teorias deste. Em outras palavras, o sucesso prático das teorias acaba passando como uma confirmação empírica da metafísica implicada na teoria.

É exatamente o que acontece quando se afirma que, uma vez que a física matemática alcança incomparáveis êxitos preditivos e práticos, então todo o mundo físico deve se reduzir ao movimento mecânico dos corpos.

Que isso é uma falácia é fácil de perceber quando alguém se dá conta de que a forma de uma metodologia considerar o real, o ângulo pelo qual ela o enxerga, por mais frutífero em termos práticos que seja, não implica uma redução do real às entidades que a metodologia comporta.

Além disso, nenhuma conclusão ou predição pode confirmar a veracidade das suas premissas. Ao contrário, são estas que garantem a verdade daquelas. Inverter essa relação é cair inapelavelmente numa inferência ilógica.

Voltando a Newton, apesar de suas declarações, ele mesmo sustentou consciente ou inconscientemente uma série bem vasta de asserções metafísicas. Em primeiro lugar, como ensina Burtt, Newton admitiu no corpo de suas teorias a metafísica corrente no seu tempo.

Ele aceitou as teses de Galileu e Descartes sobre a constituição matemático-geométrica do mundo físico e sua conseqüente rejeição de qualquer aspecto qualitativo. O sucesso preditivo da física newtoniana acabou se tornando, para seus sucessores, a confirmação indireta dessa metafísica.

Em segundo lugar, Newton tomou as exigências de seu método como exigências do real. O mundo físico seria formado somente por corpos de propriedades matemático-geométricas, nas quais ele incluía a massa.

E por último, seus interesses de cristão devoto o levaram a admitir a constante intervenção divina no mecanismo do mundo e o conduziram a especulações acerca da natureza do espaço como o sensorium divino.

É interessante notar também que os conceitos de espaço e tempo absolutos implicam a admissão de um tempo e de um espaço totalmente diferentes e separados dos fenômenos percebidos cotidianamente. Ou seja, o espaço absoluto, o tempo absoluto e o movimento absoluto são completamente inverificáveis a partir dos fenômenos relativos.

Alexandre Koyré ensinava que o positivismo é somente um recuo inicial e provisório que é ultrapassado cedo ou tarde pelos cientistas. Se as coisas são como Koyré sustenta, então mais do que julgar o sucesso prático de uma teoria, deve-se analisar seus pressupostos metafísicos explícitos e implícitos.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Nota de falecimento de Dom Odilão Moura OSB



Escrevo este post para comunicar o falecimento, nesta madrugada, de Dom Odilão Moura OSB, monge beneditino, filósofo, teólogo, escritor e tradutor das obras de São Tomás de Aquino para o português.

Em outra ocasião tive a oportunidade de escrever neste blog uma pequena homenagem a ele. Dom Odilão era profundo conhecedor da tradição aristotélico-tomista e traduziu as principais obras do Doutor Angélico para o português.

Por conta própria, ministrou um curso à noite nas dependências do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro sobre As 24 Teses Fundamentais de São Tomás de Aquino. Fui seu aluno no último ano desse curso em 1998/99.

A experiência desse curso marcou minha vida para sempre, pois foi ali que confirmei minha vocação para os estudos filosóficos. Embora já estudasse Tomás desde os 17 anos, ainda não havia tomado a decisão de dedicar a minha vida à senda filosófica.

Dom Odilão me mostrou no curso e em conversas pessoais que a filosofia era meu caminho. Devo a ele muito do que sou hoje. Devo a ele sobretudo o exemplo da busca serena e perseverante da verdade sob a luz do sagrado.

Há muito que não o via pessoalmente. Gostaria de ter tido a oportunidade de visitá-lo antes de seu nascimento para a eternidade.

Dom Odilão foi sepultado no claustro de seu mosteiro, de acordo com o costume monástico.

Que o Altíssimo o receba em sua luz inextinguível e perene.

E que interceda por mim, para que eu não me perca.

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Biografia de Dom Odilão:


Homenagem a Dom Odilão:



domingo, 7 de novembro de 2010

Aristóteles, física e matemática


"O ponto a considerar é como o matemático difere do físico. Obviamente os corpos físicos contém superfícies e volumes, linhas e pontos, e estes são o objeto da matemática. (...) O matemático, embora trate também dessas coisas, não as trata como limites de um corpo físico; nem considera os atributos indicados como atributos de tais corpos. Isso é porque ele os separa; pois em pensamento eles são separáveis do movimento e não faz diferença e nem alguma falsidade resulta se eles são separados. (...) Evidência similar é dada pelos mais físicos dos ramos da matemática, tais como a ótica, a harmônica e a astronomia. Estas são, de certa forma, o inverso da geometria. Enquanto a geometria investiga as linhas físicas, mas não como físicas, a ótica investiga as linhas matemáticas, mas como físicas, não como matemáticas."

ARISTÓTELES, Física II, 2

No segundo capítulo da Física, Aristóteles discute e explicita seu conceito de ciência física. "Qual o objeto de estudo próprio do físico?", é a pergunta que pretende responder.

Para tanto, o mestre de Estagira inicia discutindo o âmbito próprio da matemática. Ela não se constitui na essência das coisas físicas, ou seja, os corpos físicos não são entidades matemáticas.

Contudo, a matemática está nos corpos, uma vez que estes possuem linhas, volumes, superfícies, formas. Os aspectos quantitativos são propriedades dos corpos. O que o matemático faz é abstrair (separar no pensamento) e reter somente esses aspectos, distanciando-os do movimento que caracteriza os seres naturais e de toda matéria que os constitui.

As linhas, figuras, volumes dos corpos são tratados pelo matemático como seres independentes, sem necessidade de um sujeito que as sustente. Como assevera Aristóteles, nenhuma falsidade advém desse procedimento, pois ele não é mais do que uma ação da mente sobre os corpos percebidos cotidianamente.

Há ciências tais que, por suas características mais físicas, utilizam a matemática como meio de explicação, mas que ainda permanecem ligadas precipuamente aos corpos. A ótica, a harmônica e a astronomia são exemplos disso. Elas parecem ser como que ciências médias, como diriam alguns escolásticos posteriores.

Embora tratem dos atributos matemáticos dos corpos, elas os tratam ainda como pretencendo a corpos. Não há nelas a abstração total do movimento e da matéria que caracteriza o que poderíamos chamar anacronicamente de "matemática pura". Elas concebem os objetos a partir de seus aspectos quantitativos e neles se concentram em suas explicações, mas não deixam de referir esses aspectos aos corpos.

Ora, se esses aspectos pertencem aos corpos, não é de se admirar que essas ciências possam fornecer resultados legítimos e verdadeiros. Todavia, seu modo de estudo dos objetos também não é puramente físico. Ele está no meio do caminho entre a abstração operada pela matemática e aquela operada pela física.

O físico encontra a Forma (eidos), a essência das coisas, abstraindo-a da matéria particular dos exemplares concretos diretamente percebidos pelos sentidos. A Forma é a causa do movimento dos seres naturais, aquilo que a coisa deve se tornar, sua finalidade e sua proporcionalidade intrínseca. Por outro lado, o físico não deve descurar do conhecimento da matéria de que a coisa é feita.

Torna-se claro que Aristóteles conheceu e determinou o lugar de uma "física matemática" (outro anacronismo a que nos permitimos) dentro da escala das ciências. O Estagirita somente mostrou que a atenção aos aspectos quantitativos dos corpos, embora não gere falsidades, seja na matemática pura ou naquelas "matemáticas mais físicas", não é suficiente para um conhecimento completo do mundo físico.

Os seres naturais possuem aspectos quantitativos e qualitativos. A ausência de um discurso sobre estes últimos ameaça desfazer o próprio conceito de ciência que é, afinal, conhecimento das causas últimas das coisas.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Mises, experimento e ciências sociais


"É necessário antes de tudo compreender que no campo da ação humana proposital e no das relações sociais nenhum experimento pode ser feito e nenhum experimento jamais foi feito. O método experimental ao qual as ciências naturais devem todas as suas realizações é inaplicável nas ciências sociais. As ciências naturais estão em posição de observar no laboratório experimental as conseqüências da mudança isolada em um elemento somente, enquanto outros elementos permanecem inalterados. Sua observação se refere precipuamente a certos elementos isoláveis na experiência sensível. O que as ciências naturais chamam de fatos são as relações causais mostradas em tais experimentos. Suas teorias e hipóteses devem estar de acordo com esses fatos." (Tradução minha do original em inglês)

LUDWIG VON MISES, Planned Chaos, p.80

No capítulo nono de Planned Chaos (The Teachings of Soviet Experience), em que trata das pretensas lições do pretenso experimento soviético, Ludwig von Mises, um dos mais destacados pensadores da Escola Austríaca de Economia, rejeita qualquer possibilidade de uma transferência do método experimental das ciências naturais para as ciências sociais.

Para o filósofo e economista austríaco, a incapacidade de realização de experimentos nas ciências sociais se deve ao fato de que nestas não há possibilidade de se isolar elementos, controlar e observar os resultados. "Nelas nunca se encontra a vantagem de observar as conseqüências de uma mudança em um elemento somente, com todas as outras condições permanecendo as mesmas", assevera o pensador.

Em um experimento, as relações causais são estabelecidas quando se verifica que os mesmos efeitos se seguem das mesmas causas, sendo todas as condições relevantes idênticas. Ceteris paribus, diriam os antigos.

Para Mises, o objeto de estudo das ciências sociais é a experiência histórica. E esta é radicalmente dos objetos das ciências naturais. Não há como isolar fatos, estudá-los e fazer experiências e predições que estarão ou não de acordo com a teoria. Nunca há duas situações cujas condições sejam idênticas ou mesmo semelhantes o suficiente para tornar possível o estabelecimento de uma relação causal.

Mises afirma que os fatos históricos não provam ou refutam nada e que eles, ao contrário, devem ser interpretados à luz de teorias que são criadas sem o auxílio de observações experimentais. E essa realidade se expressa claramente no fato de que tanto os cientistas quanto os leigos, quando em discussões acerca da importância e significado de fatos históricos, tecem suas avaliações ancorados em princípios gerais abstratos, logicamente anteriores aos fatos a serem elucidados e interpretados.

Nem mesmo a referência à experiência histórica pode resolver qualquer problema ou responder a qualquer questão, uma vez que qualquer evento histórico pode servir para confirmar teorias contraditórias.

De fato, o sucesso experimental das ciências naturais se deve a uma simplificação consciente dos fenômenos estudados. Ontologicamente nunca há dois eventos iguais e nem mesmo as condições se repetem. Entretanto, para os fins da ciência experimental, para quem as relações causais não são mais do que uma conexão constante e descritível matematicamente entre eventos observáveis, as diferenças ontológicas são passíveis de serem ignoradas.

Como Pierre Duhem demonstrou, a partir dessa perspectiva quantitativa, o mesmo conjunto de dados pode ser deduzido logicamente de um conjunto indefinido de equações. Mas na ciência experimental a adequação da teoria aos dados e às predições é o suficiente para a sua aceitação.

Para Mises não é possível uma adequação das teorias das ciências sociais aos experimentos porque estes, em primeiro lugar, são impossíveis de serem realizados. Não se trata aqui de afirmar que as teorias das ciências sociais não têm apoio experimental e nem mesmo de defender sua submissão ao controle experimental, mas sim de apontar para uma diferença na natureza do objeto dessas ciências que veta qualquer tentativa de aplicação do método experimental.

Toda a discussão teórica nas ciências sociais permanecerá no âmbito dos princípios e conceitos abstratos que explicam os fatos históricos. Sobre estes nenhuma teoria pode se apoiar. Eles só adquirem sentido e significado quando iluminados pelas teorias.

domingo, 10 de outubro de 2010

Émile Boutroux, matemática e a contingência das leis naturais


"As leis mecânicas não são uma simples promoção e complicação das matemáticas; com efeito, elas implicam um elemento novo que não pode ser restituído à intuição matemática, à saber, a solidariedade de fato, a dependência regular e constante, empiricamente dada e incognoscível a priori , entre duas grandezas diferentes." (tradução minha direto do original em francês)

ÉMILE BOUTROUX, L'Idée de Loi Naturelle dans la Science et la Philosophie Contemporaines


No post anterior tratamos da questão de uma ontologia prévia que determina o caráter das leis descobertas pela ciência e das teorias que lhes servem de base. O presente post, de certa forma, continua aquela discussão.

Émile Boutroux, no trecho citado, mostra que as leis mecânicas não são simples leis matemáticas, mas que nelas se revela, na medida em que pretendem tratar do real, um aspecto novo e importante. Se a mecânica se baseasse só e tão somente na necessidade lógica que governa a matemática, então todas as suas afirmações seriam necessariamente verdadeiras uma vez admitidos os axiomas.

Se assim fosse, nada poderia mudar o caráter necessário dessas leis e nenhuma conseqüência falsa poderia se seguir delas. Seria a ciência perfeita e ideal. De fato, a ciência moderna, quando tenta postular uma ontologia do real calcada no quantitativo, quer no fundo fazer que a ciência física tenha o benefício e o apanágio da certeza das matemáticas.

Entretanto, como aponta Boutroux, embora as leis formais que regem a descrição do comportamento das grandezas seja matemática, esse comportamento, ou seja, a série de constantes que se manifestam no mundo, não são descobertas da matemática, mas da observação.

Que os corpos físicos se comportam de tal e tal maneira, com tais e tais efeitos, é algo que pode ser descrito matematicamente, mas conhecido somente por observação. Nenhuma lei matemática determina a priori que os corpos devam se comportar da maneira como se comportam. Mas se eles se encadeiam de uma forma determinada, a partir desse conhecimento e de outras constantes, é possível descrever os estados atuais e calcular os estados futuros.

A confiança na constância do encadeamento determinado das grandezas físicas provém não da matemática, mas da indução. E a indução, como entendida pelos modernos, não é mais do que a coleção numérica de instâncias observadas que gera uma inferência sobre o comportamento de todas as instâncias futuras.

Nesse caso, nada impede que não estejamos diante de leis imutáveis, mas de meras constantes temporalmente limitadas e contingentes. Não é difícil conceber um movimento constante que um dia deixa de se repetir. Enquanto ele se dá, pode-se descrevê-lo matematicamente e prever estados futuros a partir de estados presentes ou passados. Mas a vigência dessa constância pode muito bem passar e não mais se repetir.

Ainda que se defenda como Daujat e outros pensadores aristotélico-tomistas que o homem abstrai, capta em meio ao turbilhão incessante das coisas, as propriedades quantitativas dos corpos e, baseando-se nelas, constrói equações que descrevem perfeitamente seu comportamento, isso não garante a permanência indefinida deste.

Isso porque o que serve de base para a descrição matemática são as propriedades quantitativas dos corpos em geral. Que qualquer corpo tenha propriedades matematicamente descritíveis pode-se facilmente aceitar sem com isso se admitir que determinado comportamento entre grandezas físicas seja matematicamente necessário a priori e nem que se repetirá sempre.

Jacques Maritain já havia mostrado que a ciência moderna tem sua regra formal na matemática e sua matéria naquilo que é físico. Boutroux, por sua vez, mostra que a impossibilidade de identificação da necessidade abstrata das matemáticas e da constância do comportamento observável dos corpos impede que o ideal da ciência perfeita acalentado pelos modernos se torne realidade.

Em outros termos, as matemáticas não seriam a linguagem última do mundo, pois este apresenta aspectos totalmente distintos daqueles capazes de serem alcançados e abarcados pela linguagem quantitativa. E por isso não há possibilidade de se determinar leis imutáveis a partir somente da matematização daquilo que se observa ser constante.

sábado, 4 de setembro de 2010

O possível, o impossível e a Revolução Científica




No post intitulado "A ciência medieval e as condenações de 1277" tratei das consequências filosóficas da condenação de diversas teses da Física de Aristóteles pelos teólogos da Universidade de Paris no século XIII. A justificativa para tais condenações se encontrava na defesa da liberdade divina frente às exigências limitadoras das teorias físicas.

Uma vez que Deus não podia, segundo os teólogos, ser limitado pelo essencialismo aristotélico, então o valor das teorias, por mais prováveis que fossem em termos racionais, não ultrapassava a de meras construções mentais adequadas aos fenômenos observados mas carentes do caráter de certeza.

Essa situação gerou uma grande atividade teórica que, apesar de afastada da subserviência aos tratados aristotélicos, não se configurava como uma atividade científica com pretensões à demonstração da necessidade de seus postulados e teorias.

O quadro muda gradativamente, na medida em que antigas teses de correntes platônico-pitagóricas retornam à cena e, reinterpretadas (e, por vezes, deturpadas), favorecem o surgimento da nova astronomia. A obra do polonês Nicolau Copérnico, apesar do prefácio instrumentalista de Ossiander, é já repleta da confiança num novo modo de conhecimento.

A revolução é consolidada por Galileu e Descartes, que defendem as bases matemáticas da nova ciência. E essas bases exigem que certos fenômenos do real percam sua constituição ontológica anterior, ou seja, que deixem de existir como tarefas de uma teoria física. Cores, sabores, finalidades, cheiros não serão mais que "nomes" como diz Galileu. E Descartes arremata a questão afirmando que tudo o que material é extenso e o que é extenso é explicável em termos matemático-geométricos.

Com a revolução se instaura uma nova apreensão da natureza divina. Deus será precipuamente um matemático. A criação, enquanto tal, é um livro escrito em caracteres matemáticos. Mas não será melhor dizer que o "Deus matemático e geômetra" é não uma conseqüência, mas um fundamento necessário para essa nova ciência?

Ainda no século XVII não foram poucos os que como La Mothe le Vayer lançaram contra os novos físicos os mesmos argumentos dos teólogos de Paris do século XIII. A natureza não é uma livre manifestação da vontade divina? Então ela não pode estar submetida às leis de Aristóteles ou de Euclides. Ou seja, mesmo que se queira dar bases matemáticas à ciência, ela permanecerá incognoscível porque Deus é sumamente livre.

Não é à toa então que Galileu se dedique a caracterizar o entendimento humano e divino como igualmente matemático. O que os separa é uma simples questão de grau que se revela no fato de que o homem não conhece todos os teoremas possíveis e Deus sim.

Também não é à toa que Descartes luta para provar que Deus é veraz, ou seja, Ele não engana nunca. E se Ele é veraz, então está garantida a veracidade das idéias claras e distintas da matemática. Deus respeita e corrobora as leis matemáticas.

De certa forma, é necessário, para que a ciência se assente de novo em bases sólidas, que Deus seja limitado em sua liberdade novamente. Em termos não teológicos, é necessário uma doutrina ontológica do possível e do impossível. Daquilo que, de antemão, está vetado ao real. É só assim, de posse desses princípios, que as teorias podem pretender não ser mais do que construções mentais meramente adequadas aos fenômenos observados.

Se Deus é um geômetra e fez a natureza de acordo com exigências geométricas, então há possibilidade de conhecimento certo do mundo. Se não, se ele pode subverter por sua ilimitada liberdade mesmo as leis matemáticas, então tudo o que se quer chamar de conhecimento é conjectura e tentativa.

Em cartas a Descartes, Marin Mersenne apontou para o fato de que Deus não está necessariamente impedido de mentir ou de enganar, se for para o bem do homem. Sendo assim, as bases matemáticas da ciência podem não ser absolutamente seguras e o projeto galilelaico-cartesiano seria engolido pela mesma incerteza que os teólogos medievais apontaram contra Aristóteles.

Parece que a lição que se pode tirar desses episódios é a de que, historicamente, uma reavaliação do que é possível e do que é impossível no real, em termos ainda teológicos, antecedeu e animou a constituição da ciência moderna. O que isso indica, em termos filosóficos, é que um conhecimento científico do mundo não pode prescindir de uma discussão sobre ontologia.

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Leia também:


quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Guénon, inversão, quantidade e qualidade


"O homem 'mecanizou' todas as coisas e, por fim, acabou por 'mecanizar-se' a si mesmo, alcançando o estado de falsas 'unidades' numéricas perdidas na uniformidade e na indistinção da 'massa', ou seja, definitivamente na multiplicidade; é isso, certamente, o triunfo mais completo que se pode imaginar da quantidade sobre a qualidade." (tradução minha do original em francês)

RENÉ GUÉNON, Le Régne de la Quantité et les Signes des Temps, p.259


Para René Guénon, a opção moderna pelo aspecto quantitativo da manifestação marca um dos eventos mais importantes da inversão valorativa que caracteriza o abandono da sabedoria tradicional no ocidente. Ao reduzir as coisas ao quantitativo, a despeito de todas as aplicações de ordem prática possibilitadas por esse movimento, o homem moderno abre as portas para o materialismo mais grosseiro.

Descartes identificava a matéria à extensão e afirmava que o mundo físico se limitava àquilo que podia ser tratado por meios matemático-geométricos: figura, largura, altura, profundidade e movimento. Não há cores, sabores, cheiro ou finalidades.Tudo o que é físico obedece a leis mecânicas rígidas cujo fundamento se encontra na geometria.

É claro que essa visão criou e cria enormes problemas, uma vez que o real não se curva a tais pretensões reducionistas. Os sucessores de Descartes nem sempre tinham o mesmo conceito de mecanismo do mestre e as divergências não tardaram a aparecer. No entanto, a confiança da realidade de uma ciência baseada no caráter ontologicamente matemático do mundo físico pareceu não ter sido abalada por essas contendas.

As teorias científicas tornaram-se cada vez mais matemáticas em seus métodos e fundamentos e difundiram sub-repticiamente na mentalidade geral o materialismo prático, um comportamento que independe de afirmações teóricas. E a própria sociedade é concebida segundo tais moldes, nos quais cada homem não é mais do que uma mera repetição numérica e a "massa" nada mais do que a soma dos indivíduos.

Na ausência de um princípio superior que ordene as coisas numa síntese que não nega, mas abarca o particular dando-lhe um sentido que o ultrapassa, o mundo moderno se esforça por criar sociedades nas quais os homens são peças numericamente determinadas numa maquinaria que a tudo nivela pelo infra-humano.

Os grandes sistemas políticos coletivistas, nacionalistas ou internacionalistas, são expressões evidentes dessa tendência moderna. Neles, os homens são unidades meramente numéricas, niveladas pelo igualitarismo raso e pela militarização da sociedade. Toda e qualquer diferença e aristocracia são veementemente condenadas em nome de um paraíso de igualdade absoluta onde mesmo o talento será igualmente repartido entre os membros da coletividade.

Outra coisa não é isso senão uma revolta contra a Natureza e sua distribuição "injusta" de bens e capacidades. "Há que se reformar a Natureza!", é o mote do moderno. E essa "reforma" é propiciada por uma ciência que entende o mundo como matemática, onde céus, terra e homem são submetidos ao igualitarismo dos cálculos.

Guénon aponta também para um fenômeno digno de nota: o materialismo grosseiro, atingido seu grau mais alto de solidificação e expansão, tende agora a ser substituído por um movimento de dissolução. As próprias ciências naturais apontam para uma pulverização do conceito de matéria, sem no entanto abandonar o modo eminentemente matemático de tratamento do real. Na verdade, elas o aprofundam, pois essas mesmas teorias tornam-se mais e mais afastadas de qualquer base palpável no real mais imediato.

Dessa forma, segundo Guénon, o materialismo, enquanto doutrina filosófico-científica, parece estar ultrapassado pela própria ciência. Entretanto, ele sobrevive a si mesmo no seio da sociedade ocidental como um modo de vida caracterizado pela ausência de valores espirituais legítimos.

Como dito acima, o real resiste a essas empreitadas reducionistas e a tendência para a quantificação nunca chegará a um termo no qual a redução ao quantitativo seja completa, pois, como assevera Guénon, a quantidade pura e a qualidade pura não se manifestam, mas são condições da manifestação.

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sábado, 14 de agosto de 2010

William Blake e a geometria divina





As gravuras acima apresentadas, obras do gênio visionário do artista inglês do século XVIII William Blake, representam duas imagens bem diversas da constituição do mundo em suas relações com a geometria.

Na primeira delas, um ancião curvado sobre si mesmo, usa com os dedos um compasso de cujas extremidades emanam raios de luz. O ancião, evidentemente, é Deus e o ato ali representado é o da Criação do mundo. "Deus como um arquiteto". Mas o que isso significa simbolicamente?

Em primeiro lugar, é preciso que se diga que Blake, um místico de grande profundidade, se dedicou a criticar a nascente tradição científica de seu tempo. E suas críticas se concentravam na tentativa de submissão do real a um ideal racional e abstrato. De certa forma, Blake transpôs a oposição clássica entre Jerusalém e Atenas para os seus dias, só que dessa vez opondo Jerusalém a Newton.

A segunda gravura, sugestivamente intitulada "Newton", apresenta um homem, também curvado sobre si mesmo, concentrado na resolução de um problema geométrico numa folha de papel. Em suas mãos, um compasso.

Ora, dada sua notória resistência a Newton e toda concepção de mundo postulada pela ciência nascente, se impõe a conclusão de que , embora Deus e Newton usem a geometria, ela não tem o mesmo significado em ambas as gravuras.

Deus usando um compasso, no início dos tempos, significa o poder criador se exercendo. "Deus dispôs todas as coisas em medida, número e peso", diz Sabedoria 11,20. A medida vem em primeiro lugar porque é a forma primordial implicada no número e no peso. Criar é impor medida, "o mesmo outra vez", padrão, ordem, logos, proporção, Eidos.

Todas as coisas têm uma medida, a qual se repete em cada exemplar, sempre de novo, sem no entanto haver mera repetição numérica. Duas coisas, embora aparentemente iguais, realmente se distinguem.

Medir é escolher um padrão arbitrário e impô-lo a algo. Por isso, medidas diversas podem ser equivalentes, no sentido em que, por meio delas, se descobre uma mesma proporção entre as partes e o todo daquilo que se mede. Nesse caso, a coisa é sempre anterior à medida. Ela já é uma proporção dada.

Deus, por sua vez, não impõe um padrão arbitrário às coisas. Ele cria o padrão. E essa "medida" não pode ser entendida como mera geometria. Não se trata aqui de um Deus que cria um mundo com aspectos exclusivamente quantitativos. A "medida" é um Logos, uma "proporcionalidade intrínseca", como diria Mário Ferreira dos Santos, e engloba todos os aspectos da coisa considerada, sejam eles quantitativos ou qualitativos.

Deus, na gravura de Blake, está agachado sobre si mesmo, o que significa simbolicamente que Ele tira tudo o que há de seu próprio poder infinito. Ele é único, dotado de onipotência e a ninguém recorre para realizar sua obra. A unicidade divina é sugerida na gravura pelo círculo no qual a figura divina parece estar contida.

O braço de Deus está saindo desse círculo, quebrando, de certa forma, essa unidade primordial. É o símbolo do início da manifestação/criação, da saída do mundo do indiferenciado, do "não-ser". Por sua vez, o símbolo do círculo remete ao simbolismo solar. Nele se representa o princípio formador, limitador e criador que concede forma ao princípio de potencialidade passiva, representado pelo negror que envolve a cena. E as nuvens, localizadas em torno de Deus, mostram a transcendência divina, bem como aquilo da obra que ainda não se manifestou.

Do compasso, dois raios de luz se projetam formando um triângulo que representa a emanação das coisas a partir do centro divino. Pode-se ver aí também uma representação do gradual afastamento da fonte. O compasso serve para descrever círculos e estes representam as naturezas das coisas, tomadas como unidades que refletem a unidade primordial.

Em "Newton" se vê um homem agachado sobre si mesmo, fixando atentamente o olhar sobre o papel. Ele parece imitar Deus, seja na postura, seja no uso do compasso. O homem parece querer entender o mundo por suas próprias forças, por seu próprio entendimento, aplicando sua própria medida.

E ele assim o faz concentrando toda sua atenção naquilo que é geométrico e eminentemente abstrato. Ele aponta para o papel e parece dizer "isto é o real". Ele está sentado sobre uma espécie de pedra cujo aspecto se confunde com o chão. O homem pretende estar assentado no real.

Mas Blake faz com que o olhar e a atenção do geômetra estejam numa posição oposta a esse chão colorido. Ele ignora o real mais imediato, a cor e a vida. Sua mente se concentra na folha onde se inscreve um triângulo. Não foi a ciência moderna que declarou a subjetividade das qualidades e uma realidade física absolutamente governada pelo quantitativo?

Ao contrário do triângulo verticalizado da gravura do criador, o triângulo de "Newton" se encontra na horizontal. Ele aponta somente para aquilo que está na esfera imanente, aquilo que está ao alcance de nosso horizonte humano.

O dedo do geômetra aponta justamente para a base do triângulo, denotando o completo afastamento da fonte primordial de todas as coisas e a natureza da era que ali se inaugurava. O papel enrolado indica que, para ele, muito ainda há para ser descoberto segundo os métodos nos quais agora se concentra tão detidamente. Mas a escuridão parece crescer ao seu redor.

Não há dúvida quanto à opção de Blake pela geometria divina.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Henry More: o espírito contra o mecanismo


Como dar conta de fenômenos cotidianos como a coesão dos corpos, a gravidade e o magnetismo dentro dos limites de uma física mecanicista como a de Descartes? Essa foi a pergunta que o pensador platonista inglês Henry More ousou tentar responder. E as conseqüências de sua resposta o levaram para além do escôpo do próprio mecanicismo.

A física cartesiana identificava a matéria à extensão (res extensa) e deixava para a alma (res cogitans) o domínio de tudo aquilo que não pudesse ser descrito a partir da gramática do matemático-geométrico, como as qualidades secundárias (cor, sabor, odor, etc.). O mundo físico era então formado por corpos, extensões limitadas, agindo mecanicamente, através do contato, uns sobre os outros segundo leis geométricas.

Entretanto, o religioso Henry More, contemporâneo de Descartes, se questionava sobre como os fenômenos da gravidade e do magnetismo poderiam se dar segundo leis mecânicas uma vez que não havia neles o contato entre os corpos exigido pelo mecanicismo. Um corpo lançado livremente ao ar retorna ao chão como que irresistivelmente atraído pela Terra e um ímã pode mover o ferro à distância sem qualquer contato direto. Por outro lado, a própria coesão dos corpos é misteriosa e não se encaixa na física cartesiana.

Ora, para More estava claro que esses fenômenos eram regidos por forças não-mecânicas. E se algo é não-mecânico, então é imaterial. Se é imaterial, é espiritual. Mas se é espiritual, como age na matéria, que é extensa? Para More, então, não há saída a não ser afirmar que, para que o espírito possa agir sobre a matéria, deve haver contato entre os dois, ou seja, os dois devem ser extensos.

O espírito é extenso. Mas ao contrário da matéria, ele é intangível e não pode ser seccionado. Ele é plenamente penetrável, com poder de contração e expansão e ação sobre a matéria. É dessa forma que, nos fenômenos não-mecânicos, é possível distinguir claramente a ação do "espírito do mundo". Este é a substância espiritual não-consciente que dá ordem, coesão e harmonia ao mundo e que é, por sua vez, evidência de um ser espiritual mais alto, consciente e onipotente, a que chamamos Deus.

Se o espírito é extenso, então Deus, na qualidade de espírito, também o é. E sua presença divina é o próprio espaço. Desde que, para More, o espaço é distinto dos corpos materiais que o ocupam, a presença divina é a extensão não-material onde os corpos se situam, pois não há lugar onde Deus não esteja. E o espaço é Deus enquanto considerado apenas na sua onipresença e não segundo sua vida e poder.

Sendo Deus absoluto, sua onipresença divina não poderia ser menos do que absoluta. E se a presença divina é o espaço, então o espaço é absoluto. E sendo absoluto ele é também uno, simples, imóvel, eterno, completo, independente, existente em si, subsistente por si, incorruptível, necessário, imenso, incriado, incircunscrito, incompreensível, onipresente, incorporal, todo-penetrante, Ser por essência, Ser em ato, ato puro.

O espaço, em uma palavra, é divino. O mundo, entretanto, é finito no tempo, pois tem passado e futuro, e é finito no espaço porque é indefinidamente estendido.

O espírito será então a categoria que traz unidade, coesão e harmonia ao mundo e que põe em xeque o mecanicismo cartesiano. Por outro lado, More dá os primeiros passos da concepção de um espaço absoluto que será determinante na física posterior.

Contudo, há que se pesquisar se a concepção de More de um espírito extenso, amplamente penetrável, móvel, com capacidade de contração, expansão e ação sobre matéria pode ter influenciado as caracterizações modernas do espírito, principalmente aquelas do espiritualismo e do ocultismo.

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domingo, 27 de junho de 2010

ERA e a simpatia pelo catarismo


Ninguém pode negar o fato de que há uma certa simpatia contemporânea pelo paganismo na cultura popular. Mas há também uma simpatia menos explícita pelos movimentos heréticos da Idade Média. De certo modo, isso não é estranho, uma vez que não são poucos os teóricos que traçam nesses movimentos de inspiração gnóstica as origens de diversas características da modernidade.

Um dos exemplos dessa simpatia é o vídeo da música "Ameno" do grupo francês Era. O compositor e líder desse grupo, o francês Eric Lévi, demonstra em suas músicas, geralmente de inspiração e sonoridade medievais, uma evidente admiração pela seita dos cátaros.

Os cátaros foram adeptos de uma heresia com ares gnósticos que se caracterizou, entre outras coisas, pela crença na pureza de seus membros ("cathar" significa "puro"), bem como pela rejeição da autoridade eclesiástica e dos sacramentos do cristianismo católico. Eles se concentraram na região da Languedoc, na França, e se acastelaram em Montségur com o fim de se defenderem da investida militar da cruzada convocada por Inocêncio III no século XIII.

O vídeo não é novo, mas merece uma pequena análise de seu simbolismo. Ele inicia mostrando um grupo de crianças percorrendo os campos da Languedoc. Desse grupo, uma menina tem sua atenção capturada por um monumento de pedra com inscrições que fazem referência aos cátaros.

Desde o início, vê-se que, do grupo, só uma se interessou pelo monumento. Ou seja, nem todos são chamados. Imediatamente, somos transportados para a Idade Média onde vemos a mesma menina do início do vídeo. A mensagem é de que há uma ligação entre a França de hoje e aquela França medieval e que o que aconteceu lá tem conseqüências hoje.

A vida tranqüila é interrompida pelo surgimento de um cavaleiro que, ameaçadoramente, carrega uma espada. É uma referência à cruzada católica contra os cátaros e albigenses do século XIII. O A oposição está dada entre os pacíficos cátaros, que são "crianças espirituais" e o poderio violento do catolicismo.

O cavaleiro chega ao monumento e tenta, com a espada, cortar a parte superior do mesmo. Ele não consegue e, sob o impacto do choque, a espada é lançada para longe de suas mãos. O simbolismo é aqui interessante. Evidentemente, em um nível, é uma referência à destruição do castelo de Montségur pelas forças cruzadas. O monumento, como o castelo, são feitos de pedra. E a parte superior do monumento, com forma selmelhante à uma cabeça, a qual o cavaleiro tenta cortar, faz alusão ao centro de difusão do catarismo, o supracitado castelo.

Ao mesmo tempo, ele significa também o cerne da doutrina cátara que o catolicismo pretendeu destruir. Contudo, segundo o vídeo, o catarismo resistiu, pois a espada caiu das mãos do cavaleiro. A espada cai fincada na terra e sua forma assemelha-se claramente à uma cruz. Ou seja, a cruz caiu das mãos da Igreja e a autoridade espiritual não mais pertence à ela. Ela pertence à criança, símbolo do cátaro, que toma a espada em suas mãos.

A menina não investe contra o cavaleiro. Não quer vingança. Ao contrário, ela toma a espada para cortar o monumento. Nesse instante, a espada não é mais um instrumento de violência, mas sim de penetração espiritual que rasga o sentido oculto dos mistérios e revela a verdade mais profunda. O cavaleiro não conseguiu penetrar, mas o "puro", a criança, consegue. "Quem não se tornar como criança, não entrará no Reino dos Céus".

Em seguida, uma luz liga diretamente o monumento aos céus e representa assim a verdade divina do catarismo. Ele liga o celeste e o terreno na medida em que o monumento se torna o símbolo tradicional do "centro do mundo". As imagens mostram as nuvens passando, para indicar a oposição entre as eras que passam e a verdade que permanece sempre a mesma representada pelo monumento sólido.

E de dentro desse "centro" a menina retira a cruz cátara, sua herança e seu direito. O vídeo retorna ao presente e a menina tem em suas mãos a cruz cátara e vai carregá-la pendurada no pescoço. O significado não é difícl de interpretar: as novas gerações redescobrem o catarismo e o adotam devotamente.

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Link do vídeo:



terça-feira, 25 de maio de 2010

Proclus Diadochus e os limites das teorias astronômicas


"Quando se trata de coisas sublunares, nós nos contentamos em tomar em conta aquilo que produz na maior parte dos casos, por causa da instabilidade da matéria que as forma. Quando, por outro lado, queremos conhecer as coisas celestes, usamos o sentimento, e fazemos apelo a uma multidão de artifícios muito distantes de toda verossimilhança. Portanto,nós que estamos colocados, como se diz, no lugar mais baixo do universo, devemos nos contentar com a aproximação de cada uma dessas coisas. Que tal é o caso torna-se manifesto pelas descobertas que se fazem sobre as coisas celestes; pois de diferentes hipóteses tiram-se as mesmas conclusões relativas aos mesmos objetos; entre essas hipóteses, existem as que salvam os fenômenos por meio de epiciclos, outras por meio de excêntricos, outras por meio de esferas desprovidas de astros e girando em sentido inverso.
Os deuses, certamente, possuem um julgamento mais seguro; mas, quanto a nós, precisamos contentar-nos em atingir apenas a aproximação dessas coisas; pois somos homens...de modo que falamos de acordo com o que é verossímil e os discursos que fazemos assemelham-se a fábulas."

PROCLUS DIADOCHUS, Comentário ao Timeu de Platão


A doutrina do filósofo neoplatônico Proclus Diadochus (412-485 D.C.) aqui transcrita é rica em lições sobre a ciência antiga. Em primeiro lugar, Proclus afirma a divisão entre o mundo supralunar e sublunar já postulada por Aristóteles e, seguindo as linhas mestras do mestre de Estagira, declara que o conhecimento das coisas sublunares se dá pela maior parte dos casos por causa da instabilidade da matéria (hylê), que por vezes resiste à Forma (eidos).

Logo depois, trata das coisas supralunares, asseverando que elas não são são conhecidas por sua natureza (afasta-se aqui de Aristóteles), mas somente por aproximação. Mas a que tipo de aproximações Proclus se refere? Àquelas já tratadas por Hipparchus, Theon de Smyrna e Ptolomeu: as descrições matemáticas do movimento observado dos corpos celestes.

É preciso lembrar aqui que, como Pierre Duhem ensina, a astronomia era a única das ciências antigas que havia alcançado o "grau de aperfeiçoamento em que a linguagem matemática serve para exprimir as leis descobertas por experiências precisas". Entretanto, esse gênero de ciência tem seus limites e Proclus sabe que de diversas hipóteses as mesmas conclusões podem se seguir.

Ao invés de provar uma asserção através da demonstração de sua derivação lógica de princípios evidentes, como na Física aristotélica, a astronomia matemática só podia criar hipóteses cujas conseqüências fossem adequadas aos movimentos observáveis dos astros. Assim sendo, os epiciclos e excêntricos, hipóteses igualmente adequadas ao que se observava nos céus (como já havia demonstrado Hipparchus), só poderiam salvar os fenômenos e nunca provar algo sobre a natureza dos movimentos celestes.

Essa doutrina será passada à frente por outro filósofo neoplatônico, Simplicius, e chegará à Europa medieval através de seus comentários a Aristóteles, influenciando até mesmo Tomás de Aquino.

Contudo, o século XVII abolirá a divisão das esferas e aplicará a matemática até então reservada ao estudo astronômico dos corpos celestes a todo o mundo sublunar, iniciando assim a Revolução Científica. Para muitos, com essa extraordinária mudança, a física moderna herda a questão levantada por Hipparchus, Proclus e Simplicius acerca da verdade das hipóteses de cunho matemático.

sábado, 15 de maio de 2010

Hipparchos e a adequação das hipóteses astronômicas


"Está evidentemente de acordo com a razão que haja concordância entre as duas hipóteses dos matemáticos sobre os movimentos dos astros a o epiciclo e a do excêntrico; uma e outra concordam por acidente com aquilo que está de acordo com a natureza das coisas, o que era admitido por Hipparchos."

THEON DE SMYRNA, Astronomia




O trecho acima de Theon de Smyrna (335D.C./405D.C.), filósofo, matemático e astrônomo, pai de Hipácia de Alexandria, reproduz a descoberta do também astrônomo e matemático Hipparchos (190B.C./120B.C.)segundo a qual duas ou mais hipóteses astronômicas podem igualmente ser adequadas à observação.

Hipparchos havia demonstrado que tanto a hipótese dos epiciclos quanto a hipóteses das órbitas excêntricas*, apesar de incompatíveis entre si, eram, no entanto, igualmente adequadas para salvar os fenômenos, ou seja, eram plenamente concordantes com a experiência observacional e permitiam predições acertadas.

Ora, se duas ou mais hipóteses podem ser adequadas aos fenômenos observados, então qual o critério para decidir pela verdadeira? Evidentemente, somente uma poderia ser verdadeira, somente uma poderia estar de acordo com a natureza das coisas. As outras hipóteses eram concordantes com a observação por acidente.

Concebidas pelos gregos como hipóteses matemáticas submetidas à adequação de suas proposições e predições aos movimentos regulares e observáveis dos astros, as teorias astronômicas não podiam implicar qualquer tipo de doutrina sobre a natureza última de seus objetos de estudo.

Ao astrônomo cabia somente criar hipóteses meramente concordantes com o comportamento manifesto dos corpos celestes.Por outro lado, definir as essências, as naturezas desses corpos, era tarefa do físico que procedia através de princípios não matemáticos, mas pelos princípios gerais do movimento e das causas intrínsecas aos fenômenos.

O astrônomo desenvolvia descrições matemáticas dos eventos celestes, tendo como pedra de toque a adequação observacional. O físico, como Aristóteles, se dedicava a determinar a Forma (Eidos) e a matéria dos corpos celestes, bem como as condições gerais do movimento supralunar e sublunar.

A questão levantada por Hipparchos se estenderia por muitos séculos ainda, sendo parte importante das discussões acerca da nova astronomia nos séculos XVI e XVII e permeando as obras de Brahe, Kepler e Galileu.

Uma vez que o modelo matemático astronômico foi extendido à física, o problema permanece relevante no debate atual sobre o realismo e o instrumentalismo científico.

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*Excêntricos eram órbitas circulares (de planetas ou epiciclos) cujo centro não coincidia com a Terra e epiciclos eram órbitas circulares cujo centro residia em uma órbita circular em torno da Terra.

Vídeos ilustrativos que apresentam o funcionamento dos epiciclos e dos excêntricos:




segunda-feira, 3 de maio de 2010

O simbolismo mitológico indiano e o Absoluto metafísico






"A filosofia e a ortodoxia hindu esclarecida são fundamentalmente monistas e monoteístas, apesar das multidões de deuses e seres supra-humanos em que é prolífica a mitologia no país. As múltiplas representações são apenas especializações, virtudes específicas, atitudes, componentes, facetas.Olhados sob o ponto de vista da própria divindade (...), os aspectos da existência que nos parecem contraditórios - criação, duração, dissolução - são apenas um e o mesmo em termos de origem e significado final.(...) A compreensão dessa unidade é o objetivo da sabedoria hindu."

HEINRICH ZIMMER, Mitos e Símbolos na Arte e Civilização da Índia, pag. 113


O simbolismo de Vishnu deitado sobre Ananta, a serpente de mil cabeças, é sublimemente rico. É, no seu sentido mais profundo, uma tradução simbólica e mitológica das mais altas verdades metafísicas da filosofia e da religião hindu.

Vishnu representa o Absoluto, Brahman, imanente e transcendente. Imanente porque se revela em todas as coisas e transcendente porque nada pode esgotá-lo. Podemos dizer que o vaso é de barro, mas o vaso é uma forma cambiante de uma matéria, o barro, que permanecerá e assumirá outra forma.

Desse modo, o vaso é barro, mas o barro não é só um vaso. Ele transcende essa configuração particular e transitória, tem em si mesmo inúmeras outras possibilidades ainda não atualizadas.

De modo análogo, o que sou hoje é a atualização daquilo que tinha em potência. Contudo, cada homem "é" sempre mais do que é num momento determinado. Ele "é" também tudo aquilo que tem potência para ser e que talvez um dia possa atualizar.

Vishnu, na figura do Absoluto, engloba todo o cenário em torno. Ele é Ananta, é o oceano, é Lakshmi, sua esposa que acaricia seus pés e também Brahma, o demiúrgico deus que nasce de seu umbigo. Todos não são mais que emanações, aspectos de uma só e mesma realidade, distintos somente por uma função no teatro cósmico universal.

Vishnu deitado siimboliza também o aspecto masculino, produtor que se une ao aspecto passivo da infinita possibilidade, feminina e passiva, representada pelo oceano, pela infinitude de Ananta e pela divina esposa Lakshimi.

Da infinitude potencial, maternal e uterina das águas do oceano, Vishnu como poder masculino formador faz brotar Brahma, o deus criador do universo manifestado. Ele vem montado numa flor de lótus e tem quatro rostos representando as quatro eras da manifestação. Após o fim dessas eras, o todo retorna de novo à fonte para, depois de gestado como uma criança, retornar em novo ciclo.

Mas se da infinita potencialidade do oceano nasce o mundo manifestado, nama-rupa, este não esgota o Absoluto. Como ensinam os Upanisads, o que sobra do infinito é sempre infinito e Ananta, a serpente de mil cabeças, representa também o infinito que ainda "sobra" após a manifestação.

As representações artísticas, em que deuses, como Vishnu e Shiva, assumem o papel do Absoluto, têm missão didática, de apoio à meditação, de veículo de sabedoria metafísica por meios mitológicos. E mesmo quando diante de trindades, como a Trimurti, os deuses não são mais que aspectos de uma só e mesma realidade absoluta.

Visnu é o aspecto mantenedor, Brahma o criador e manifestador e Shiva é o destruidor. Três aspectos do Absoluto que, por vezes identificado simbolicamente a Vishnu ou Shiva, engloba os três numa unidade transcendente à qualquer determinação.

Brahman, a realidade subjacente e impessoal, está para além de qualquer determinação e é a fonte última de tudo quanto há, dos deuses, homens, animais, demônios, vegetais e tudo quanto já se manifestou, se manifesta agora ou venha a se manifestar em algum momento.

Brahman é Purusha, o homem universal e primevo, de cujo sacrifício tudo provêm, a respeito do qual se diz no Rig Veda: "[Este] homem (Purusha) é o universo inteiro/o que foi e o que ainda vai ser."

Purusha significa homem (macho, não espécie) e seu significado simbólico e filosófico é multifacetado e tem conotações diferentes, embora análogas, em diversas tradições dentro da Índia, inclusive aquelas não-védicas, como o Shankhya.

No caso, o Absoluto é um homem porque nele todas as coisas são um mesmo organismo, os órgãos são subordinados, hierarquizados e têm funções específicas. Essas partes são o organismo, mas este não é a simples soma quantitativa das partes. O homem transcende qualitativamente as partes e estas são como que virtualizadas quando se toma o homem como um todo.

Brahman é sempre mais do que se pode seguramente expressar. Os limites do símbolo não são os da coisa simbolizada e não se pode permitir que induzam ao erro. O Absoluto não é um homem, não é algo, nem tampouco é nada. É a infinita possibilidade de determinações.

Não é "algo", não tem fronteiras intrínsecas ou é limitado por "outro". Portanto, não pode ser distinto de nada. Como dito nos Upanisads, "é o Um-sem-segundo".

É o infinito, o que não tem "ser" porque não tem forma, limites, Eidos, mas que é a condição de possibilidade da determinação e de todo e qualquer ser determinado que, por conseqüência, é limitado, finito e transitório.

Brahman não é isso ou aquilo (neti neti), pois nada do que é manifestado pode identificar-se plenamente com Ele, assim como o vaso de barro não é o barro, que o transcende e o torna possível.

Assim sendo, é necessário que aquele que se aproxima das imagens artísticas e dos contos mitológicos dos deuses indianos tenha em mente que a realidade para a qual eles apontam e à qual eles prestam verdadeiro culto ultrapassa de muito os nomes e as formas, ainda que estas sejam aquelas dos deuses.

Om Shanti Shanti Shanti!

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quarta-feira, 21 de abril de 2010

A função do darwinismo na epistemologia de Karl Popper


É um traço facilmente identificável a forte influência desempenhada pelo darwinismo no pensamento tardio de Karl Popper. O filósofo austríaco chegou a afirmar que sua teoria do conhecimento era uma epistemologia pós-darwiniana.

Contudo, qual o verdadeiro papel desempenhado pela teoria evolutiva de Charles Darwin na epistemologia popperiana? O darwinismo figuraria como uma base segura para as reflexões epistemológicas ou seria apenas uma analogia útil?

No artigo disponibilizado abaixo tento mostrar que o papel do darwinismo na teoria do conhecimento de Popper não passa por um viés naturalista (onde proposições filosóficas são baseadas em dados biológicos), e sim por uma relação que se mantém no nível apriorístico da lógica.

O artigo, publicado na revista Kinesis, é um resumo do último capítulo de minha dissertação de mestrado que versou sobre o darwinismo na epistemologia de Popper.

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Artigo:


Conferência proferida por Popper em 1977 no Darwin College de Cambridge: