sexta-feira, 17 de agosto de 2018

Sócrates, desígnio e o culto devido aos deuses





"Meu bom amigo, ele disse, põe em tua cabeça que tua própria mente, a qual está dentro de ti, controla teu corpo como quer. E, da mesma forma, deves crer que a inteligência que está no universo ordena todas as coisas como deseja."

SÓCRATES, segundo XENOFONTE, Memórias

Os escritos de Xenofonte sobre Sócrates têm manifestamente um caráter apologético e buscam defender o filósofo das acusações que o levaram à morte diante do tribunal ateniense. Xenofonte esforça-se em mostrar como Sócrates era útil a todos por sua capacidade de dar conselhos nas mais variadas situações e para os propósitos mais práticos, como quando ensinou a uma cortesã os métodos mais eficientes para conquistar os melhores amantes. A capacidade dialético-argumentativa de Sócrates, nesses relatos, está a serviço menos de definições conceituais e mais da indicação ao interlocutor do caminho certo a seguir ou da decisão correta a tomar. Sócrates é, sobretudo, um amigo sábio e bom conselheiro.

Nessa linha argumentativa, Xenofonte relata como Sócrates era piedoso e como incentivava a piedade em seus interlocutores, principalmente os jovens. Ele registra um diálogo entre Sócrates e um certo Aristodemos acerca do culto devido aos deuses. Sabendo que Aristodemos não sacrificava e nem orava aos deuses, não buscava os oráculos e os videntes e menosprezava aqueles que o faziam, Sócrates o convida a discutir sobre o que é religião.  

Sócrates pergunta a Aristodemos se ele já havia admirado alguém por seu talento artístico, ou seja, por sua capacidade de produzir algo. Como um bom grego, ele responde que admirava Homero na poesia, Sófocles no teatro, Polyclitus na escultura e Zeuxis na pintura. Em seguida, Sócrates pergunta quem é mais admirável, quem cria coisas inanimadas ou quem cria coisas vivas, inteligentes e ativas. Aristodemos responde que é mais admirável quem cria coisas vivas, desde que sejam obra não do acaso, mas do desígnio.

Sócrates usa a resposta de Aristodemos e pergunta o que é devido ao acaso e o que é devido ao desígnio, pois há aquilo que não possui fim explícito e aquilo que obviamente tem propósito e utilidade. Aristodemos afirma que as coisas com desígnio são aquelas que possuem evidentemente fim e utilidade. 

Sócrates então questiona se não foi justamente pela utilidade que aquele que criou os homens dotou-os de vários meios de percepção, como os olhos e os outros sentidos que os capacitam a perceber os diversos entes do mundo. Além disso, há outras evidências de providência. Os olhos, por serem delicados, são protegidos pelas pálpebras e os cílios os protegem do vento. E mesmo o suor da testa não pode prejudicar a vista graças à presença providencial das sobrancelhas.

Igualmente, os dentes frontais dos animais são adaptados ao corte dos alimentos e os molares à mastigação. A boca é próxima dos olhos e do nariz, enquanto o orifício anal, por onde os desagradáveis excrementos são exonerados, fica o mais longe possível dos sentidos. Pode tudo isso ser efeito do acaso ou de desígnio providencial? E os instintos reprodutivos que inclinam os entes vivos à procriação, as mães ao cuidado dos filhotes e os filhotes à preservação de sua própria vida?  Aristodemos concorda que tudo isso deve-se à arte de um sábio e bom artífice.

Sócrates continua e pergunta se Aristodemos crê que possui alguma inteligência. Diante de sua resposta positiva,  o filósofo indaga se ele crê também que não há inteligência em nenhum outro lugar, dado que ele  mesmo não é senão ínfima parte do cosmo. Isto é, se Aristodemos acredita que a ordenação que a vasta magnitude do mundo exibe deve-se ao acaso. Aristodemos responde que não vê quem poderiam ser os controladores da produção dessa ordem como ele vê quem são os produtores de artefatos.

Mas, diz Sócrates, a mente que controla o corpo não é também vista e Aristodemos deve admitir que, segundo seu raciocínio, ele mesmo nada faz e tudo é fruto do acaso, já que não pode testemunhar sensivelmente a mente que controla as ações. Aristodemos parece recuar e afirma que não descrê dos deuses, apenas os considera grandes demais para necessitarem de seus sacrifícios. E se tivesse qualquer evidência de que os deuses se importam com os homens, ele não seria displicente em seus deveres para com eles.

O filósofo argumenta que o homem é o único animal ao qual os deuses concederam andar ereto, o que o permite ver melhor aquilo que está à sua frente e acima, tornando-o menos vulnerável aos ferimentos. Além dos pés, concederam mãos que são os principais instrumentos de sua felicidade superior. Os deuses presentearam os homens com a língua a fim de que pudesse articular sons e comunicarem-se uns com os outros. E enquanto os animais só desfrutam das atividades sexuais em períodos determinados do ano, os homens desfrutam-nas por todo o período de sua vida.

Acima de tudo, os deuses concederam uma mente que é capaz de reconhecer a própria existência dos deuses, que é capaz de tomar providências contra a fome e a sede, o frio e o calor, a doença e outros males, que busca o conhecimento e guarda na memória o que aprendeu. Não é, então, evidente que o homem, quando comparado aos outros animais, vive tal qual os deuses? Uma mente humana em um corpo de boi seria tão inútil quanto ter mãos e não possuir inteligência. Não é isso evidência suficiente de que os deuses importam-se sim com os homens?

Aristodemos afirma que convencer-se-ia se os deuses enviassem aos homens conselheiros que dissessem a eles o que fazer e o que evitar. Sócrates indaga se quando os deuses respondem nos oráculos ao povo ateniense eles não respondem também a ele e se quando os olímpicos fazem portentos, os beneficiários não são todos os homens. Nesse caso, Aristodemos é o único a ser ignorado? Sócrates pergunta se seria certo supor que os deuses deram ao homem a convicção de que ele pode fazer o bem e o mal sem que isso seja verdade. E, na suposição de que eles nos enganam, depois de tanto tempo, o homem já teria descoberto a farsa. 

Ademais, do mesmo modo que a mente controla o corpo, a inteligência que habita o universo controla todas as coisas à sua vontade. Pois se a visão humana alcança longas distâncias, não se deve crer que a visão do deus não possua o poder de ver tudo a um só tempo ou que a sua mente não possa pensar diversas coisas simultaneamente, dado que o homem pode pensar em muitas coisas sucessivamente. De fato, afirma Sócrates, se Aristodemos fizer o teste de servir aos deuses, ele verá que eles quererão revelar-lhe eventos que estão vedados à predição humana. Constatará que o divino é tão grande e poderoso que pode ver e ouvir tudo, estar presente a tudo simultaneamente e cuidar de tudo ao mesmo tempo.

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