
"Está evidentemente de acordo com a razão que haja concordância entre as duas hipóteses dos matemáticos sobre os movimentos dos astros a o epiciclo e a do excêntrico; uma e outra concordam por acidente com aquilo que está de acordo com a natureza das coisas, o que era admitido por Hiparco."
THEON DE SMYRNA, Astronomia
O trecho acima de Theon de Smyrna (335D.C./405D.C.), filósofo, matemático e astrônomo, pai de Hipácia de Alexandria, reproduz a descoberta do também astrônomo e matemático Hiparco de Nicéia (190B.C./120B.C.) segundo a qual duas ou mais hipóteses astronômicas podem igualmente ser adequadas à observação.
Hiparco havia demonstrado que tanto a hipótese dos epiciclos quanto a hipóteses das órbitas excêntricas*, apesar de incompatíveis entre si, eram, no entanto, igualmente adequadas para salvar os fenômenos, ou seja, eram plenamente concordantes com a experiência observacional e permitiam predições acertadas.
Ora, se duas ou mais hipóteses podem ser adequadas aos fenômenos observados, então qual o critério para decidir pela verdadeira? Evidentemente, somente uma poderia ser verdadeira, somente uma poderia estar de acordo com a natureza das coisas. As outras hipóteses eram concordantes com a observação por acidente.
Concebidas pelos gregos como hipóteses matemáticas submetidas à adequação de suas proposições e predições aos movimentos regulares e observáveis dos astros, as teorias astronômicas não podiam implicar qualquer tipo de doutrina sobre a natureza última de seus objetos de estudo.
Ao astrônomo cabia somente criar hipóteses meramente concordantes com o comportamento manifesto dos corpos celestes. Por outro lado, definir as essências, as naturezas desses corpos, era tarefa do físico que procedia através de princípios não matemáticos, mas pelos princípios gerais do movimento e das causas intrínsecas aos fenômenos.
O astrônomo desenvolvia descrições matemáticas dos eventos celestes, tendo como pedra de toque a adequação observacional. O físico, como Aristóteles, se dedicava a determinar a Forma (Eidos) e a matéria dos corpos celestes, bem como as condições gerais do movimento supralunar e sublunar.
A questão levantada por Hiparco se estenderia por muitos séculos ainda, sendo parte importante das discussões acerca da nova astronomia nos séculos XVI e XVII e permeando as obras de Brahe, Kepler e Galileu. Uma vez que o modelo matemático astronômico foi estendido à física, o problema permanece relevante no debate atual sobre o realismo e o instrumentalismo científico.
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*Excêntricas eram as órbitas circulares (de planetas ou epiciclos) cujo centro não coincidia com a Terra e epiciclos eram órbitas circulares cujo centro residia em uma órbita circular em torno da Terra.
Vídeos ilustrativos que apresentam o funcionamento dos epiciclos e dos excêntricos:
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