quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Descartes e o mundo: mecanicismo, física e a imutabilidade divina



"Contentar-me-ei, porém, com vos advertir de que, para além das três leis que expliquei, não quero supor  outras senão  as que se seguem infalivelmente dessas verdades eternas, sobre as quais os matemáticos se acostumaram a apoiar as suas mais certas e mais evidentes demonstrações, verdades estas, digo eu, de acordo com as quais o próprio Deus nos ensinou que dispusera  todas as coisas em número, em peso e em medida,  e cujo conhecimento é tão natural a nossas almas que não poderemos deixar de julgá-las infalíveis, enquanto as concebermos distintamente, nem duvidar  de que, se Deus tivesse criado vários mundos, elas seriam em todos tão verdadeiras quanto neste aqui. Desse modo, aqueles que souberem examinar suficientemente as consequências dessas verdades e de nossas regras poderão conhecer os efeitos por suas causas e, para me explicar nos termos da Escola, poderão ter demonstrações a priori de tudo o que pode ser produzido nesse novo mundo."

RENÉ DESCARTES, O Mundo ou Tratado da Luz (traduzido por César Augusto Battisti para a edição da Editora da Unicamp), p.103

O trecho acima citado, retirado do início da obra "O Mundo ou Tratado da Luz" escrito entre 1629 e 1633, mas publicado somente após a morte do autor, apresenta de forma clara o projeto científico de Descartes: o tratamento dos fenômenos naturais a partir de princípios claros e distintos e, portanto, indubtáveis.

Tais princípios são encontrados no próprio sujeito, após uma laboriosa meditação, e servem de base segura para a posterior dedução do comportamento de todos os fenômenos do mundo físico. Para Descartes, aquilo que é verdadeiro da idéia de uma coisa é necessariamente verdadeiro da natureza dessa mesma coisa. Portanto, encontrar a idéia clara e distinta de uma coisa é saber com toda a certeza o que ela é.

Ora, para Descartes, a idéia clara e distinta da matéria é a pura extensão. Logo, matéria é pura extensão (res extensa).  Tudo o mais que não seja extensão pertencerá ao mundo do pensamento. Sendo assim, a metafísica funda a física e lhe dá uma base firme da qual esta pode derivar suas leis próprias.

Assim sendo, se a matéria é mera extensão, então toda a ciência física pode operar por leis meramente matemáticas. Tudo o que acontece no mundo segue leis matemáticas deduzidas da natureza da matéria como mera extensão. Não há no mundo físico nada mais do que matéria e movimento, ou, extensão e deslocamento espacial.

Note-se, en passant, que Descartes, citando as Escrituras, afirma que o próprio Deus ensinara os homens que o mundo fôra disposto em "número, em peso e em medida". É preciso lembrar também que essa não era uma simples medida diplomática para amaciar os ouvidos das autoridades eclesiásticas, mas que o apelo a Deus era uma necessidade intrínseca do sistema cartesiano, como testemunham as Meditações Metafísicas. Lá, o sábio francês afirma que todo o edifício da ciência segura se apóia, em última instância, em Deus.

Tal era o projeto mecanicista cartesiano: deduzir as leis necessárias e suficientes do movimento a partir de um conjunto mínimo de regras deduzidas, por sua vez, dos princípios claros e distintos da natureza da matéria.

Pois bem. Temendo reações contrárias - Galileu foi condenado no ano em que Descartes finalizava a obra, 1633 - Descartes postula a hipótese de um outro mundo que Deus poderia se propor a criar utilizando-se somente dos princípios aventados na obra. Em outros termos, Descartes dizia que, ao utilizar exatamente os princípios que ele postulava, Deus alcançaria o mesmo mundo que atualmente existe. Pretensão pouca é bobagem.

Se a natureza física é formada por entes materiais cujas relações de movimento obedecem a leis matemáticas, então o mundo é um mecanismo. Eis o que há de original em Descartes na concepção sobre o mundo: a autonomia da máquina. Já no famoso Discurso do Método, Descartes afirmava que os animais eram meras máquinas ou autômatos. Todo o seu comportamento era regido segundo leis mecânicas plenamente de acordo com os princípios da matéria enquanto mera extensão.

O que isso significa? Significa que não há nada dentro do animal a não ser um mecanismo que funciona automaticamente sem o controle de ninguém. O seu gato é um relógio que mia.

Mas e o homem? O homem tem um corpo material que funciona segundo leis mecânicas, mas que é controlado por uma substância pensante imaterial, a res cogitans. Isso significa que, ao menos logicamente, é possível pensar que, um dia, seja possível construir um autômato, uma máquina, cuja aparência externa seja igual a de um homem de verdade e que se comporte externamente como um homem de verdade, sem sê-lo.

Descartes aventou essa hipótese, rejeitando-a somente por causa da impossibilidade técnica de se construir uma máquina que conseguisse reunir internamente tantas partes e tantos mecanismos quantos seriam necessários para dar respostas adequadas a todas as situações a que o homem é obrigado a responder.

Todavia, a possibilidade, ainda que empiricamente não factível (ainda), existe. E existe justamente porque o corpo é tomado como uma máquina e, por conseguinte, capaz de operar autonomamente sem que ninguém precise controlá-la momento a momento. O mesmo dar-se-ia com o mundo. Ele pode operar autonomamente, sem ninguém controlando-o. Um grande relógio funcionando de acordo com leis mecânicas. 

O problema é que, por mais que o relógio seja autônomo em seu funcionamento, ele não surgiu de si mesmo. Ele só funciona porque alguém o construiu. E seu funcionamento só pode iniciar se alguém der a corda, ou, em termos mecânicos, o impulso inicial. E o relógio funciona somente por um tempo, enquanto a corda o impulsiona. Mas isso tem limites. Uma hora a corda acaba e a máquina pára de funcionar.

Ok, o relógio precisa de:

a) Alguém que o construa;
b) Alguém que dê a corda;
c) Alguém que o mantenha funcionando.

Àqueles familiarizados com as bases metafísicas do cartesianismo aqui expostas em posts anteriores, já sabem a resposta. O relojoeiro do mundo não pode ser outro senão Deus. Ora, Deus cria a matéria com determinada natureza e as operações dos corpos dar-se-ão segundo as leis que podem ser deduzidas dessa mesma natureza. O mecanismo, então, é criado por Deus. 

Mas e a corda? Bem, segundo Descartes, Deus criou a matéria e, sendo ela extensão, há inúmeras partes feitas de matéria - de tamanhos e formas variadas - que se tocam em todos os lados não havendo vazio possível, sob pena de fazer intercalar o nada entre as partes materiais. Acontece que Deus cria tais partes materiais com diversos movimentos próprios desde do seu primeiro momento de existência. É só e somente o choque entre essas partes que faz com que elas mudem e diversifiquem seus movimentos.

Eis que já temos quem tenha dado a corda no mecanismo. Atente-se para o fato de que, a matéria sendo mera extensão e o mundo físico sendo formado por partes materiais, o movimento só pode acontecer pela ação de contato entre essas partes. Ou seja, não há ação à distância ou vazio. Mas se nenhuma dessas partes se move a não ser pela ação de outras partes sobre elas, então se nenhuma se mover primeiro, nenhuma se moverá depois. 

Se é assim, entretanto, é necessário um primeiro impulso, pois nenhuma delas, segundo os princípios da matéria meramente extensa, poderá mover a si mesma. Sendo mera extensão, nenhuma parte pode mover a si mesma para mover as outras. Há que existir um primeiro impulso de uma causa que não seja ela mesma material, sob pena de regresso ao infinito.

O impulso é dado pelo relojoeiro divino. A segunda condição foi satisfeita. Deus dá o primeiro impulso nas partes materiais dotando-as desde sua criação de um determinado movimento próprio que só se altera no choque posterior com outras partes materiais.

E a terceira condição? Esse choque entre as partes não pode esgotar o impulso inicial como a corda de um relógio tende a diminuir sua ação? O relógio não pode parar?

A fim de manter a sua pretensão de um mundo físico regido somente por leis mecânicas, Descartes precisou de um relojoeiro para criar o mecanismo e dar a ele o impulso que as partes materiais não poderiam dar a si mesmas e agora precisa da imutabilidade da natureza divina e, por conseguinte, de sua ação para assegurar o funcionamento contínuo do mecanismo. Como se dá isso?

Simples. Deus sempre age da mesma forma, pois é imutável. Assim sendo, ao criar o mundo, Ele o mantém com as mesmas leis em todo o tempo. Por conseguinte, se Deus cria as partes materiais com um determinado movimento desde seu primeiro momento de existência e o mantém até que haja uma mudança por conta da ação de outros corpos, agindo Ele sempre da mesma maneira, as partes materiais tenderão a permanecer no estado em que estiverem até serem obrigadas a mudar por fatores externos.

Por conseguinte, "cada parte material permanece no mesmo estado enquanto o encontro com outras não a obrigue a alterá-lo." Ela não se tornará maior ou menor, não mudará de forma e não entrará em movimento ou em repouso a não ser que seja obrigada pela ação de uma outra parte material. Se se puser em movimento, permanecerá em movimento com força igual. Eis a primeira regra.

Deus sempre age do mesmo modo e preserva as coisas da mesma forma com que as criou. Toda a modificação não provém senão do choque entre as partes materiais. Havendo tais choques e, como consequência, as modificações que sofrem as partes materiais, aquilo que é impelido retira daquele que o impele a mesma quantidade de movimento que lhe é acrescida pelo impulso. Ou seja, se uma bola de bilhar se choca com outra, a diminuição da quantidade de movimento da primeira que se verifica no choque é acrescida exatamente à quantidade de movimento da segunda. 

Descartes explica:

"Ora, ocorre que essas duas regras resultam manifestamente apenas deste fato, de que Deus é imutável e de que, por agir sempre da mesma maneira, produz sempre o mesmo efeito. Pois, supondo que Ele tenha posto certa quantidade de movimento em toda matéria em geral desde o primeiro instante em que a criou, é preciso admitir que conserve sempre a mesma quantidade, ou então não acreditar que aja sempre do mesmo modo." (p.95)

Para que a quantidade de movimento seja sempre a mesma e para que o mecanismo não pare, é necessário que Deus mantenha sempre a mesma quantidade de movimento com a qual dotou o mundo no início.

A terceira regra se segue do mesmo princípio da ação divina. Ela diz que cada uma das partes do corpo que se move tende a se mover em linha reta, embora o corpo como um todo se mova sempre em curva. O modo mais simples de se entender essa regra é lembrar de como a pedra de uma funda em movimento, tão logo seja lançada, se desloca em linha reta.

A idéia é a de que, em cada momento particular de uma trajetória curva, ele tende sempre a se mover em linha reta. É somente a coerção dos outros corpos que mantém curvilínea a trajetória de um corpo. Mais uma vez, Descartes explica:

"Essa regra se apóia sobre o mesmo fundamento das outras duas, e depende apenas do fato de que Deus conserva cada coisa por uma ação contínua e, por conseguinte, que não a conserva tal como ela possa ter sido algum tempo antes, mas precisamente tal como ela é no mesmo instante em que Ele a conserva." (p.99) 

O movimento retilíneo simples, pois tudo o que é necessário para que ele se dê se encontra contido em cada instante determinável de uma trajetória. Ao contrário, o movimento circular necessita, para se dar, de pelo menos dois instantes.

Assim, se Deus mantém as coisas no estado em que estão num instante determinado, e se tudo o que é preciso para iniciar um movimento retilíneo está contido no instante de uma trajetória qualquer, então o único  movimento que tem sua origem na ação divina de preservação é o movimento retilíneo. Daí que todo o movimento diferente do movimento retilíneo se deve somente às ações recíprocas das partes materiais entre si.

Como se vê, o mecanicismo cartesiano só pode se sustentar apelando a princípios extra-mecânicos, seja para a criação do mecanismo do mundo, seja para a comunicação do primeiro impulso que faz o mecanismo funcionar, seja para a manutenção desse funcionamento no tempo. Não obstante, todo sistema mecanicista sofrerá com os mesmos problemas e terá que apelar para princípios cuja natureza não pode ser deduzida dos seus pressupostos ontológicos. Newton viu isso com clareza.

Para Descartes, contudo, a obra estava assentada sobre fundamentos inabaláveis, claros e distintos, de tal forma que se poderia construir uma física a priori, somente deduzindo as leis do comportamento dos corpos daquelas regras fundamentais fundadas na natureza da matéria enquanto mera extensão.  

E se a experiência comum contradissesse explicitamente essas regras tão bem fundadas? Descartes dizia que não poderia deixar de crer na verdade dessas regras, uma vez que repousavam sobre o fundamento mais sólido possível: a imutabilidade divina.

...

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domingo, 30 de setembro de 2012

Maimônides e os atributos divinos






"Certa pessoa, lendo as orações na presença do rabbi Haninah, dizia: ‘D’us, O grande, o valoroso, O tremendo, O poderoso, O forte, O potente.’ O rabbi disse a ele: ‘Você acabou todos os louvores a seu Mestre? Os três epítetos, ‘D’us, O grande, O tremendo’, não teríamos aplicado a D’us se Moisés não os tivesse mencionado na Lei e não tivessem os homens da Sinagoga vindo depois e estabelecido seu uso nas orações. E você diz tudo isso! Deixe-me ilustrar com uma parábola: ‘Havia uma vez um rei terreno que possuía milhões em moedas de ouro. Ele foi louvado por possuir milhões em moedas de prata. Isso, de fato, não o insultou?"


MOISÉS BEN MAIMÔNIDES, Guia dos Perplexos, cap. LIX

A história do rabbi Haninah é usada por Maimônides para ilustrar o problema dos atributos divinos. Em outros termos, o que podemos realmente atribuir a D’us sem ofendê-Lo? Na verdade, diz o sábio judeu, nada. Tudo o que dissermos sobre a realidade divina estará levando aquilo que é limitado ao núcleo do Ser supremo e, com isso, compurscando qualquer entendimento dessa realidade. Mas então nada pode ser dito d’Ele?

Maimônides afirma que qualquer que seja o atributo, ele não pertence exclusivamente ao objeto ao qual está aplicado. Embora esteja qualificando uma coisa, ele pode ser empregado para qualificar outras coisas. Se, por exemplo, alguém vê um objeto à distância e pergunta o que ele é e outra pessoa responde que se trata de um ser vivo, sem dúvida algo do objeto é conhecido. Mas como o atributo não se atribui exclusivamente ao objeto visto, permanece a questão acerca de qual tipo de ser vivo se trata. 

Os atributos positivos e os atributos negativos têm em comum o fato de que ambos necessariamente circunscrevem até certo ponto o objeto. Todavia, há uma diferença crucial entre eles. Os atributos positivos, embora não sejam peculiares ao objeto, descrevem a essência ou uma porção daquilo que queremos conhecer e os atributos negativos, por outro lado, não determinam a essência ou porção do objeto a não ser indiretamente, por exclusão daquilo que, de outra forma, não seria excluído.

E se o “objeto” a ser conhecido é D’us, o Ser perfeito, no qual nenhuma composição pode ser encontrada, então nada pode ser dito d’Ele a não ser negativamente. Qualquer coisa que se diga será, necessariamente, incluí-Lo em uma categoria que só serve para descrever seres limitados. “A Torah fala a língua dos homens”, lembra Maimônides. Ou seja, as Escrituras tomam os meios humanos para falar do Eterno, mas isso não significa que o que é dito d’Ele naquelas páginas, no que concerne à Sua essência, tenha exata correspondência com o que Ele é. 

O discurso sobre D’us deve ser, por conseguinte, negativo:

"Da mesma forma como por cada atributo adicional um objeto é mais especificado, e dessa forma trazido para mais próximo de uma apreensão verdadeira por parte do observador, assim também por cada atributo negativo adicional se avança na direção do conhecimento de Deus."

Toda definição se dá pela determinação do gênero e da diferença específica da coisa e todo atributo indica algo que a coisa tem, mas, ao mesmo tempo, limita-a. Estando a Realidade Suprema acima de qualquer limitação, todo atributo aplicado a ela significará diminuir sua perfeição e, por fim, definir D’us, dizer Sua essência, é colocá-Lo sob um gênero e sob uma especificação. Portanto, será como, na parábola do rabbi Haninah, louvar quem possui milhões em ouro dizendo que tem milhões em prata.

"Qual, então, pode ser o resultado de nossos esforços, quando tentamos obter conhecimento de um Ser que é livre de toda substância, que é o mais simples, cuja existência é absoluta, não se devendo à nenhuma causa,a cuja essência perfeita nada pode ser adicionado e cuja perfeição consiste, como mostramos, na ausência de todos os defeitos? Tudo o que entendemos é que, de fato, Ele existe, que Ele é o Ser a quem nenhuma de Suas criaturas é semelhante, que não tem nada em comum com elas, que não inclui pluralidade, que nunca é débil para produzir outros seres e cuja relação com o universo é aquela de um timoneiro com um barco. E mesmo esta não é uma relação, um símile real, mas serve somente para transmitir a nós a idéia que D'us governa o universo. Isto é, que D'us dá a ele duração e preserva sua organização necessária." (LVIII)


sábado, 22 de setembro de 2012

Descartes, Clavius, Beeckman e a Matemática Universal

                                         
                                                         Descartes e Isaac Beeckman

"As disciplinas matemáticas demonstram e justificam pelas mais sólidas razõestudo aquilo a que se dedicam a examinar,de tal forma que elas verdadeiramente geram ciência e expulsam completamente todas as dúvidas  na mente do estudante.  Dificilmente o mesmo pode ser dito de outras ciências, onde, na maior parte do tempo, o intelecto permanece hesitante e inseguro sobre a verdade das conclusões, tal é a multidão das opiniões e o  quão conflituosos são os juízos. Deixando de lado outros filósofos, as muitas seitas dos Peripatéticos são suficientes para provar isso. (...) Suponho que todos sejam capazes de perceber o quão distante isso está das demonstrações matemáticas. Os teoremas de Euclides, tanto quanto aqueles de outros matemáticos, são tão verdadeiros hoje, tão seguros em seus resultados, tão firmes  e sólidos em suas demonstrações,  quanto eles eram já  nas escolas muitos séculos atrás. (...) Assim sendo, uma vez que as disciplinas matemáticas  são dedicatas tão exclusivamente  ao amor e ao cultivo  da verdade, que nada é ali recebido que seja falso, nem mesmo aquilo que é meramente provável,  não há dúvida alguma que o primeiro lugar  entre as ciências deva ser concedido à Matemática."

CLAVIUS, Opera Mathematica


Étienne Gilson, no capítulo V de sua obra The Unity of Philosophical Experience, ao analisar a filosofia de René Descartes, aponta para dois acontecimentos interessantes dos primórdios do desenvolvimento do pensamento cartesiano. 

O primeiro deles é a influência de Cristóvão Clavius, o famoso matemático, geômetra e astrônomo jesuíta cujas obras reinavam absolutas na educação matemática dentro do currículo de ensino da escola de La Flèche, onde o Descartes fez seus estudos.

Gilson aponta para o impacto que a passagem acima, retirada da introdução da edição de 1611 do Opera Mathematica, pode ter tido sobre a inteligência do jovem francês. Nela nada é mais claro do que a afirmação da superioridade da matemática frente às outras ciências.

Ao contrário do amargo conflito de opiniões e de doutrinas e das incertezas que se estendiam por séculos e séculos (algo que já havia conduzido tantos ao ceticismo abraçado por Montaigne, outra grande influência na mente de Descartes), a matemática parecia atravessar os tempos como uma plácida região de certeza e solidez inabalável em meio ao tumulto incessante e febril das teorias e hipóteses das demais ciências.

Na matemática existiam verdadeiras demonstrações, raciocínio límpido, claro e indubitável, cujos resultados permaneceriam para sempre como um cabedal de verdades adquiridas pelo intelecto humano de uma vez por todas.

O que Clavius ali afirma é a superioridade científica da matemática. O que Descartes ouviu, ensina Gilson, foi a exclusividade da matemática como método de conhecimento científico.

Ora, os medievais, seguindo Aristóteles, conheciam e defendiam o caráter de certeza da matemática. O que eles jamais afirmariam seria a aplicação da matemática para a solução de quaisquer problemas científicas. Cada ciência trata de um conjunto de objetos determinados no real e o grau de certeza dessas ciências varia de acordo com a natureza desses mesmos objetos. 

Por conseguinte, seria estulto aquele que quisesse exigir de objetos não matemáticos a certeza  possível para objetos matemáticos. Diz Aristóteles na Metafísica, Livro XI, 3, 1061a [25-35], 1061b [5]:

"(...) o matemático investiga abstrações (pois antes de começar sua investigação, ele retira todas as qualidades sensíveis, como por exemplo: peso e leveza, dureza e seu contrário, e também calor e frio e outras contrariedades sensíveis, e deixa somente o quantitativo e o contínuo, às vezes em uma, duas ou três dimensões e os atributos quantitativos e contínuos destas. Ele não os considera  em nenhum outro aspecto e examina  as posições relativas de uns e seus atributos, as comensurabilidades e incomensurabilidades de outros e as proporções de outros. Contudo, atribuímos a uma só e mesma ciência todas essas coisas: geometria)."

A matemática tem sua certeza ancorada no fato de  que investiga abstrações, relações quantitativo-formais tomadas como subsistentes em si mesmas. Todavia, embora encaradas dessa maneira, essas mesmas relações não são, no mundo real, jamais encontradas a não ser como acidentes de coisas singulares e materiais. Como dizia Koyré, o mundo que os sentidos nos apresentam é um mundo do "mais ou menos", do "quase", do aproximativo, jamais o mundo da precisão.

A matemática era uma das três ciências teoréticas, junto com a Física e a Metafísica.  Nesse bem ordenado esquema das ciências cada uma delas ocupava um lugar determinado pela natureza de seu objeto de estudo. Assim sendo, somente uma mudança na concepção da natureza desses mesmos objetos poderia fazer com que a matemática se tornasse um método universal. 

Pois bem, Descartes leu em Clavius o que Clavius não afirmou, mas Gilson afirma que o segundo  acontecimento determinante no desenvolvimento da filosofia cartesiana se deu no encontro do jovem francês com um jovem holandês chamado Isaac Beeckman em 1618.

Beeckman, em seu diário, relata entusiamado como era bom ter encontrado alguém que se dedicasse, como ele, a "resolver problemas físicos por meio de demonstrações puramente matemáticas." Os dois tornaram-se de pronto amigos e trocaram correspondências nas quais tentavam resolver problemas de geometria e informavam um ao outro acerca de seus progressos nessa área.

O jovem e talentoso matemático holandês considerava-se, como Descartes, um físico-matemático. Mas se o ponto aqui é a aplicação da matemática ao mundo sensível, os escolásticos, seguindo novamente Aristóteles, haviam reservado um lugar para essa aplicação no que se convencionou chamar as "ciências médias".

Postadas entre a Física e a Matemática, as ciências médias ou intermediárias se caracterizavam pelo estudo das relações matemáticas nas coisas concretas. Ao invés de considerar os aspectos quantitativos  das coisas  como relações abstratas, separadas e subsistentes, como fazia a Matemática, essas ciências (p.ex. astronomia, harmonia, ótica) consideravam esses aspectos quantitativos como ainda pertencendo às coisas.

Todavia, a Física ainda era a ciência do mundo sensível, pois tratava das naturezas das coisas, ou seja, daquilo que elas são em si mesmas.   

Mais uma vez,  as idéias cartesianas parecem interpretar de forma sui generis doutrinas já conhecidas pelos escolásticos. ''É possível tratar matematicamente inúmeros fenômenos, como quer o senhor Descartes, mas certamente não todos e não exclusivamente por tal método", disseram os escolásticos.

A descoberta cartesiana da geometria analítica (definição e representação de formas geométricas de modo numérico) tornou seu autor ainda mais confiante nas potencialidades da matemática. Se era possível reduzir a geometria à álgebra, porque não seria também possível estender o método matemático a todos os âmbitos? Eis o projeto da Matemática Universal.

A matemática é exata justamente pelo fato de ser uma abstração de toda e qualquer matéria da coisa considerada. Jamais testemunhamos números ou formas geométricas no mundo, mas sempre seres com cor, sabor, cheiro, etc. Como dizia Aristóteles, é possível se enganar com a forma de algo à distância, mas não com a cor. A evidência primeira dos sentidos está longe de ter a simplicidade abstrata dos objetos matemáticos.

E se, como lembra Gilson, o mais importante numa abstração não é que se deixa, mas o que se toma em consideração, então deveria ser claro que aquilo que se afirma de um aspecto particular de um objeto real é verdadeiro daquele aspecto e não daquilo que é deixado de fora dessa consideração.

Dada a ambição cartesiana, nenhuma outra solução há senão a de reduzir tudo a noções tão simples quanto as dos números e, concomitantemente, solapar todas as diferenças que os objetos apresentassem no caminho desse projeto.

Se o método universal é matemático, então ele deve ser tão exato e tão convincente quanto as demonstrações matemáticas. Uma vez que se tenham compreendido as premissas e se tenha raciocinado corretamente, as demonstrações se apresentam sempre como indubitáveis e certas.

Ora, então há que se encontrar conteúdos cuja verdade seja indubitável e que servirão de premissas para as deduções rigorosas dessa matemática universal. Mas onde conseguí-los? Não nos sentidos, é claro. Eles fornecem sempre esse conjunto múltiplo de seres em contínua mutação.

A matemática trabalha com idéias abstratas, por conseguinte é só nas idéias que se podem encontrar as premissas indubitáveis que servirão como fundamento de toda a ciência. Elas serão somente idéias claras e distintas, ou seja, idéias cujo conteúdo verdadeiro, uma vez compreendido pela meditação persistente, não pode estar sujeito a qualquer dúvida.

"Tudo o que puder ser conhecido clara e distintamente da idéia de uma coisa pode ser dito dessa mesma coisa.", eis o princípio diretor dessa Matemática Universal. Tudo o que preciso saber sobre um triângulo está contido em sua definição. Defina-se "triângulo" e se saberá o que é um triângulo. 

Da mesma forma, ao se alcançar as idéias claras e distintas de "pensamento", "Deus" e "matéria", conhece-se a natureza do pensamento, de Deus e da matéria. Tudo mais será rigorosamente deduzido de tais fundamentos.

Não mais o homem partirá das coisas para as idéias, mas das idéias para as coisas. E relações entre idéias.

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Sobre a ciência e seus fundamentos



"Quando os objetos de uma investigação, em qualquer departamento, têm princípios, condições ou elementos, é através do entendimento destes que o conhecimento - isto é, conhecimento científico - é alcançado. Pois não achamos que conhecemos uma coisa até que tenhamos apreendido suas condições primárias ou primeiros princípios e conduzido a análise até seus mais simples elementos."

ARISTÓTELES, Física, I, 184a [10]


Quando os primeiros filósofos jônios enunciaram suas teorias sobre a natureza do mundo, eles o fizaram segundo a idéia de que sob as aparências sensíveis havia uma substãncia única cuja  natureza explicaria todas as modificações e transformações que os sentidos nos apresentam.

No livro I da Física, Aristóteles afirma que cada um desses pensadores escolheu algum elemento - ou conjunto de elementos - como o substratum de todas as coisas e tomou-o como eterno, "tudo mais sendo somente suas afecções, estados e disposições."

Nessa pequena descrição que Aristóteles faz dos primeiros físicos, duas coisas chamam a atenção. Em primeiro lugar, a afirmação de que a realidade a ser conhecida está sob as aparências sensíveis. Ou seja, a verdade do sensível não é o próprio objeto sensível dado hic et nunc, na imediatidade da experiência dos sentidos.

A verdade está no substratum, naquilo que está subjacente ao que se apresenta aos sentidos, mas que, no entanto, os objetos sensíveis manifestam como modificações, afecções ou estados. Se o mundo deve ser conhecido, se a origem e fundamento últimos do que é observado pelos sentidos deve ser objeto de ciência, isso só pode se dar pela identificação de uma estrutura subjacente aos próprios objetos sensíveis.

Como Aristóteles aponta, o estôfo do mundo, para tais pensadores,  era um substrato material que tinha em si "o princípio do movimento ou da mudança." Seja o que fosse esse substrato, era algo determinado: água, ar, fogo, terra, ou uma combinação desses elementos

Em segundo lugar, para todos esses pensadores o substrato do mundo deve ser imutável. E o motivo parece claro: se todas as coisas são modificações desse princípio único que rege o múltiplo, ele deve ser sempre idêntico a si mesmo. O fundamento não muda para que todas as coisas possam mudar. 

Na identificação do substrato último de todas as coisas com um elemento (ou conjunto de elementos) já se mostra a apreensão de uma ordem, pois se o elemento último é algo, tem uma ordem e a ordem que impõe ao mundo funda-se na sua própria imutabilidade.

Já se pode divisar aqui um germe daquilo que caracterizará todo conhecimento: a apreensão do uno no múltiplo. Isto é, a redução da multiplicidade cambiante a uma realidade estável subjacente que serve como regra ordenadora dessa mesma mutabilidade manifestada aos sentidos.

Quando Parmênides afirma que não há multiplicidade e que os sentidos são enganosos porque nos apresentam dados que estão em franca contradição com a afirmação lógico-racional de que o ser é imutável, ele está, entre outras coisas, enfatizando um dos lados da questão do conhecimento. Somente se conhece realmente aquilo que é imutável.

E, no entanto, os sentidos nos fornecem sempre seres mutáveis, cambiantes, o "tudo muda" de Heráclito. Como seria então possível conhecer? E se conhecer é apreender aquilo que há de mais real, como pode ser real um mundo em que as coisas vêm a ser e deixam de ser incessantemente?

O problema é herdado por Platão e Aristóteles e estes dão respostas contrárias a ele. Para Platão, conhecimento é rememoração do conhecimento haurido na contemplação das Idéias (ou Formas) eternas e imutáveis e os seres do mundo sensível não são mais do que uma imitações imperfeitas daquelas Idéias. 

Como ensina Victor Goldschmidt: "Os objetos sensíveis provocam, como causas ocasionais, a reminiscência, mas as Formas não são 'extraídas' das coisas sensíveis." 

Por conseguinte, o mundo sensível não é objeto de ciência, de saber verdadeiro e certo, somente de opinião, ou, como diz Platão no Timeu, de "mito verossímil".

É exatamente porque o intelecto humano - a parte divina da alma e que, portanto, mais se assemelha a Deus - tem a capacidade de "extrair" das coisas sensíveis a Forma que se encontra materializada concretamente em seres individuais e singulares que o conhecimento do mundo sensível é possível, segundo Aristóteles.

Mais uma vez, a ciência só é possível porque o homem é capaz de apreender uma estrutura intrínseca e imutável que define a coisa, rege suas mudanças, determina suas operações e potencialidades e que é repetível indefinidamente, jamais podendo se reduzir a qualquer um dos seus exemplares concretos dados na experiência.

Mostra-se assim o caráter "abstrato" de  toda ciência. O que a ciência busca não é este ou aquele fato bruto e irrepetível na sua singularidade, mas aquilo do qual ele é uma mera instância passageira e que só é alcançado por abstração das singularidades dos exemplares concretos.

O mesmo vale quando o cientista contemporâneo se concentra em somente um dos aspectos dos entes reais, como por exemplo, as relações quantitativas entre objetos físicos. Qualquer descrição matemática de como os corpos se comportam em determinadas condições é uma afirmação de que as relações quantitativas "extraídas" da observação representam aspectos reais de sua constituição e que, por sua vez, tais aspectos - embora não sendo tudo o que os objetos são - estão radicados na estrutura última desses mesmos objetos.

Em suma, uma ciência, para que seja ciência, exige, como pressuposto, que haja uma estrutura fundante e subjacente às coisas e que essa estrura seja passível de abstração na mente humana. O que vale para o cientista não é, então, esta gota d'água tomada em si, mas o que nela se manifesta de universal e que ultrapassa toda a individualização.

Assim, para a ciência, ser ordenado é ser um exemplar ou instância de uma estrutura formal que jamais se reduz aos exemplares concretos que a manifestam e que, por isso, é indefinidamente repetível.

Mas não é preciso pensar que essa estrutura seja temporalmente anterior aos exemplares como uma Idéia platônica, mas sim que ela seja anterior lógica e ontológicamente a eles, como seu fundamento e regra imutável. Só se tem conhecimento dessas estruturas pelas instâncias que a atualizam na experiência sensível e concreta, porém só há conhecimento científico se essas instâncias - entes singulares e múltiplos - forem "ultrapassadas" na unidade de uma estrutura subjacente e imutável.

É pela apreensão dessas estruturas que se compreendem as "disposições" que os fenômenos da experiência apresentam. Em outros termos, quando um cientista diz que a substância X é inflamável, ele está usando uma linguagem disposicional. Ele afirma que a substância X é inflamável porque apresenta, em circunstâncias determinadas, a tendência, inclinação ou disposição de inflamar-se. Na linguagem da teleologia, ela tem a "inclinação natural para certos efeitos."

O cientista não diz somente o que se deu, o que efetivamente observou, ele prediz o que se observará no futuro a partir daquilo que observou no passado, bem como o que se daria como efeito caso a causa se apresentasse. Se P se desse, B se seguiria como efeito.

Isto é, aquilo que a ciência afirma é que a coisa considerada tem em si a disposição de produzir certos efeitos e que essa disposição se mantém como uma potencialidade ou capacidade real da coisa mesmo que as circunstâncias adequadas à sua manifestação e atualização não se apresentem.

A substância X não é inflamável somente quando ela efetivamente pega fogo, mas principalmente quando ela não se inflama.  Ela é inflamável porque pode pegar fogo, porque essa é uma de suas capacidades reais, algo daquilo que a constitui.

Por conseguinte, qualquer ciência digna desse nome jamais pode ser um mero relatório de observações realizadas ou da conexão constante de eventos no tempo e no espaço. Ela deve ser, precipuamente, a identificação ou apreensão cognitiva de estruturas que se manifestam somente em entes singulares ou situações concretas no real observável, mas que sustentam essas mesmas instâncias na qualidade de fundamento imutável.


quinta-feira, 12 de julho de 2012

Terra plana na Idade Média? II: os enciclopedistas cristãos



"Beda não só preservou a ciência e a filosofia natural de seu tempo, mas também fez contribuições. Como outros autores cristãos fizeram antes dele, Beda escreveu uma obra à qual ele deu o título comumennte utilizado de 'Sobre a Natureza das Coisas' (De Natura Rerum). Esta foi compilada largamente a partir das obras de Plínio e de Isidoro de Sevilha e era pensada como uma introdução aos conceitos básicos da astronomia. (...) Embora tenha feito uso de Plínio e de Isidoro, Bede tratava seu material de forma mais inteligente do que eles, mas ocasionalmente caía vítima de seus erros, como quando concordou com Plínio que a Lua era maior que a Terra. Beda seguiu Isidoro e aceitou um mundo esférico e uma Terra esférica. Beda também discutiu assuntos meteorológicos, tais como os mares, trovões e cometas."

EDWARD GRANT, Science and Religion, from 400BC to AD 1550, p. 144

Como visto num post anterior*, a esfericidade da Terra era fato estudado, ensinado, comentado e aceito na faculdade de Artes das universidades medievais. Isso se deve ao fato de que o currículo normal dos estudantes dessa faculdade incluíam o trivium (retórica, gramática e dialética), o quadrivium (astronomia, aritmética, geometria e música), além de longos e detalhados estudos sobre os tratados científicos de Aristóteles (Física,  De Anima, De Caelo, etc.).

Qualquer estudante universitário dos séculos XIII em diante estava bem familizarizado com a demonstração da esfericidade da Terra realizada por Aristóteles e extensamente comentada e aprovada por inúmeros mestres e preofessores como, por exemplo, Tomás de Aquino.

Antes das grandes traduções das obras de Aristóteles nos séculos XII e XIII, a Europa ocidental só tinha contado com algumas obras e fragmentos do estagirita e da herança grega em geral. A maior parte dessas obras permaneceu desconhecida desde a queda do Império Romano no século V devido à perda quase completa do contato com a cultura grega ocasionada pelo caos político e social do qual os europeus se recuperaram muito lentamente nos séculos seguintes.

Todavia, isso não significa que nenhum esforço foi feito para manter acesa a chama do conhecimento nos primeiros séculos da Idade Média. Para entender como isso se deu é preciso recuar alguns séculos antes do desastre da queda do Império.

As realizações científicas de Aristóteles, Teofrastus, Arquimedes, Hiparcus, Herófilus, Euclides e de outros sábios gregos foram coligidas, sumarizadas e tornadas palatáveis em manuais de autoria de divulgadores como Eratóstenes, Crates e Posidônius ainda na era helenística. Esses manuais eram fontes úteis e práticas de informação, mas como se limitavam a reunir e resumir aquilo que os sábios ensinaram, frequentemente as informações eram contraditórias e conflituosas entre si.

Os romanos, conquistadores da Grécia, limitaram-se a continuar a tradição dos manuais, traduzindo-os para o latim ou escrevendo seus próprios manuais nos moldes gregos. Os casos mais famosos são os de Varro, Sêneca e Plínio, o velho. Tais enciclopédias latinas não eram melhores que as antecessoras helenísticas e continham muitas inconsistências, informações errôneas e fabulosas e, no caso de Plínio, enfatizavam o curioso e o estranho nos fenômenos naturais.

Entre  os séculos IV e IX, muitos autores produziram manuais e enciclopédias que tiveram grande influência na Idade Média até os séculos XII e XIII. Entre eles estavam Calcidius, Macrobius, Martianus Capella, Boethius, Cassiodorus, Boécio, Isidoro de Sevilha e o Venerável Beda. O bispo Isidoro de Sevilha (560-636) e o monge Venerável Beda (673 - 735), já na Idade Média, foram os mais famosos desses enciclopedistas cristãos que seguiram a tradição enciclopédica latina. Ambos escreveram obras sobre a natureza das coisas e compilaram toda a informação científica disponível em seu tempo.

Apesar do caráter muitas vezes inexato e conflitivo das informações reunidas nesses manuais, ambos buscaram preservar e contribuir para o saber científico com observações e comentários próprios sobre as sete artes liberais (trivium et quadrivium), zoologia, medicina, cronologia, astronomia, matemática, geometria e meteorologia


Como afirma o professor de Filosofia e História da Ciência Edward Grant em sua obra Physical Science in the Middle Ages

"Tomadas em conjunto, essas obras continham virtualmente a soma total do fato e da compreensão científicas em geral por todo o início da Idade Média. Elas confrontaram os autores subsequentes com uma massa assistemática, caótica e conflituosa de informação, frequentemente irreconciliável e incompreensível, acima da qual poucos poderiam elevar-se até um novo ensinamento científico tornar-se disponível por meio de fontes árabes e gregas." (p.9)

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sábado, 30 de junho de 2012

Poincaré e Duhem: lógica, contradição e física



"Não se deve evitar toda contradição. É necessário tomar seu partido. Duas teorias contraditórias podem, com efeito, desde que não sejam misturadas e que não se estaja buscando o fundo das coisas, ser ambas instrumentos úteis de pesquisa."

HENRI POINCARÉ, apud, Pierre Duhem

"Se nos restringimos a invocar somente razões de lógica pura, não se pode impedir um físico de representar por diversas teorias inconciliáveis diversos conhuntos de leis ou mesmo um grupo único de leis. Não é possível condenar a incoerência na teoria física."

PIERRE DUHEM, La Théorie Physique, son objet, sa structure, p.148


Pierre Duhem, ao final do capítulo IV de sua obra La Théorie Physique em que discute o modo inglês de lidar com a física - representação das leis físicas por meio de modelos mecânicos e algébricos independentes para cada conjunto de fenômenos -, formula uma questão que considera crucial sobre as relações entre lógica e teoria física:

"É permitido [ao físico] simbolizar diversos grupos distintos de leis experimentais, ou mesmo um grupo único de leis, por meio de várias teorias das quais cada uma repousa sobre hipóteses inconciliáveis com as hipóteses que baseiam as outras"?

Em outros termos, é possível construir teorias físicas que sejam contraditórias entre si, mas que, ainda assim, possam ser adequadas a um mesmo conjunto de fenômenos ou a conjuntos diferentes? Não é necessário que elas sejam excludentes entre si, já que suas respectivas hipóteses repousam sobre asserções incompatíveis?

Duhem cita Henri Poincaré como exemplo de um cientista para quem o caráter inconciliável das teorias não impede que elas sejam úteis para a pesquisa científica, desde que elas não sejam misturadas e que não se busque o fundo das coisas.

Com efeito, para Poincaré, a contradição entre teorias não é um problema. Um número indefinido de teorias incompatíveis entre si pode ser empiricamente adequado a um mesmo  conjunto de dados ou mesmo a conjuntos diferentes. Nada impede que o grupo X de fenômenos seja adequadamente tratado por uma teoria T1 e, ao mesmo tempo, por uma teoria T2. E mesmo que tais teorias sejam incompatíveis entre si, desde que elas não sejam utilizadas em simultâneo, misturando-as, nenhuma contradição se seguirá.

A adequação significa a compatibilidade com os fatos e com as predições e, por isso, duas teorias inconciliáveis podem ser simultaneamente adequadas, mas sua aplicação, por outro lado, não pode ser simultânea, sob pena de contradição.

Nada impede, igualmente, que conjuntos diferentes de fenômenos sejam tratados por teorias particulares sem ligação umas com as outras ou mesmo por teorias inconciliáveis. Não seria necessário unificá-las sob um mesmo padrão teórico. Mas Poincaré adverte, isso tudo é verdade desde que "não se busque o fundo das coisas", ou seja, desde que as teorias não sejam explicações da natureza do mundo.

Duhem concorda e assevera que declarações semelhantes às de Poincaré e de inúmeros outros cientistas escandalizariam todos os ouvintes que tomassem as teorias físicas como explicações do mundo natural. De fato, seria contradição patente e absurda pretender que duas teorias explicativas sobre a natureza dos fenômenos físicos possam ser simultaneamente verdadeiras.

Um físico não pode afirmar que a teoria T1 que diz que a matéria é mera extensão e a teoria T2 que diz que a matéria é constituída de átomos separados são igualmente verdadeiras, ainda que as equações delas decorrentes estejam plenamente de acordo com os fatos observáveis e suas predições. "A teoria explicativa deve, necessariamente, evitar até a aparência de contradição", diz-nos Duhem.

Todavia, se se admite que a teoria física é somente um sistema de classificação das leis experimentais, uma descrição matemática sem pretensões acerca da determinação da constituição última dos fenômenos, então nenhuma contradição poderá surgir do uso não-simultâneo de teorias simultaneamente adequadas, mas inconciliáveis entre si.

Embora incompatíveis, T1 e T2 são igualmente adequadas aos fatos e, desde que não sejam utilizadas ao mesmo tempo, nenhuma contradição se segue da afirmação de sua adequação simultânea. Sob tal perspectiva, o físico pode utilizar, para um mesmo conjunto de fenômenos, uma teoria que diz que a matéria é mera extensão e, logo depois, uma outra que diz que a matéria é formada de átomos separados. Da mesma forma,  conjuntos diferentes de fenômenos podem ser tratados por teorias diferentes e inconciliáveis, sem que seja necessário uní-las sob uma mesma classificação.

Embora concorde com Poincaré e defenda que a lógica não obriga o cientista a não utilizar teorias contraditórias entre si, desde que não sejam utilizadas simultaneamente e nem com pretensões de buscar "o fundo das coisas", Duhem considera que entre os diversos conjuntos de fenômenos deve reinar uma ordem matemático-dedutiva rigorosa e é nesse ponto que ele se distancia dos instrumentalistas e daqueles que ele denomina de "utilitaristas".

É certo que não há contradição lógica em utilizar descrições matemáticas incompatíveis entre si para descrever conjuntos diversos de fenômenos. Nada impede, do ponto de vista lógico, que entre as teorias físicas que tratam dos fenômenos físicos reine a mais completa desordem e ausência de unidade em que cada conjunto de objetos seja descrito por teorias sem nenhuma ligação entre si.

Algo como alguém que utiliza ferramentas e instrumentos diferentes para cada tipo de trabalho. A lógica não condena esse procedimento e nem um princípio de economia do pensamento poderia justificar peremptoriamente a necessidade de uma unificação das teorias.

O que então pode invocar Duhem para defender sua idéia de que a teoria física deve ser logicamente coordenada?

"Essa opinião é legítima porque ela resulta em nós de um sentimento inato, que não é possível justificar por considerações de pura lógica, mas que não é possível abafar completamente. (...) Assim, todos aqueles que são capazes de refletir, de tomar consciência de seus próprios pensamentos, sentem em si mesmos uma aspiração, impossível de abafar, à unidade lógica da teoria física. Tal aspiração a uma teoria na qual todas as partes concordam logicamente umas com as outras é, ademais, inseparável companhia daquela outra aspiração, da qual já constatamos a potência irresistível, a uma teoria que seja uma classificação natural das leis físicas." (p.150/152)

Sem força lógica para constranger o cientista, essa aspiração, no entanto, estaria firmemente fundada no que Duhem chama de senso comum. É nesse repositório onde a ciência encontra a legitimação de seus princípios. Toda a clareza e certeza científicas não são mais do que reflexo e prolongamento da certeza e da clareza  das verdades do senso comum.

O apelo de Duhem ao senso comum faz a ciência repousar sobre um conteúdo infraracional e pré-filosófico, um sentimento que se impõe fortemente. Étienne Gilson cita Duhem entre aqueles que, pela negação ou desconfiança da metafísica, acabam por perder a própria ciência no ceticismo e no irracionalismo.

Decerto Duhem não negou a metafísica, mas a separou radicalmente da ciência empírica por meio de uma rigorosa análise de seus métodos. A idéia de uma classificação natural das leis experimentais é a ligação possível entre as teorias físicas consideradas como descrições matemáticas do comportamento manifesto das magnitudes físicas e uma ordem ontológica das coisas.

Se o cientista não pode saber o que são as coisas em sua natureza última porque seu método a isso não o permite alcançar, ele pode, no entanto, pela coordenação lógica que encontra entre as equações das teorias físicas, afirmar que algo do real é efetivamente captado e progredir numa unificação cada vez maior das leis observacionais.

Não sendo logicamente necessária e nem mesmo exigida por um princípio de economia do pensamento, essa coordenação lógica, essa unidade da teoria física, não pode se impor a não ser por uma inclinação natural, um sentimento que parece ser inescapável. Ao que parece, para Duhem, ou o cientista acata esse sentimento ou a ciência física se torna um conjunto de  teorias independentes sem ligação entre si, um mero conjunto de instrumentos úteis, mas que não garantem qualquer acesso a nenhum aspecto do real.

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Leia também:

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sábado, 23 de junho de 2012

Étienne Gilson: metafísica, conhecimento e experiência filosófica



"Quando, devido a alguma descoberta científica fundamental, um homem metafisicamente inclinado, pela primeira vez, capta a verdadeira natureza de toda uma ordem da realidade, o que ele está captando, desse modo, pela primeira vez, é somente uma determinação particular do Ser como tal. Contudo, a intuição do Ser está sempre lá e se o nosso filósofo falha em discernir seu sentido, ele vai cair vítima de sua influência contagiosa.  Aquilo o qual é somente uma determinação particular do Ser, ou um ser, vai ser investido com a universalidade do próprio Ser. Em outras palavras, uma essência particular vai ser creditada com a universalidade do Ser e será permitido excluir todos os outros aspectos da realidade."

ÉTIENNE GILSON, The Unity of Philosophical Experience, p. 315

Durante a toda extensão de seu livro A Unidade da Experiência Filosófica Étienne Gilson analisa um fenômenos que considera constante na história da filosofia e que lhe parece a fonte das muitas decepções e e dos erros que essa mesma história apresenta: a substituição da experiência filosófica por algum modo particular de conhecimento.

Seja o "Logicismo" de Abelardo, o "Teologismo" de Ockham, o "Matematismo" de Descartes, o "Fisicismo" de Kant ou o "Sociologismo" de Comte, todos esses "ismos" apresentam uma e a mesma estrutura, a submissão da filosofia, respectivamente, à Lógica, à Teologia, à Matemática, à Física e à Sociologia.

O resultado é, ele também, típico e invariável. Ao tentar basear ou identificar a filosofia com uma das ciências particulares, o filósofo perde os próprios fundamentos racionais dessas ciências. Afinal, alguma ciência particular pode justificar a si mesma a partir de seus pressupostos e métodos? Onde se perde filosofia, não se encontra ciência. O resultado é o ceticismo.

Contudo, embora o ceticismo se estabeleça depois do fracasso de cada uma dessas identificações errôneas,  uma nova tentativa de alcançar o conhecimento é feita e a filosofia continua seu caminho. Daí Gilson sente-se à vontade de enunciar uma primeira lei da experiência filosófica: a filosofia sempre enterra seus coveiros.

Em outros termos, sempre depois de um Sextus Empiricus, de um Montaigne ou de um Hume, vem um Plotino, um Descartes e um Kant que mais uma vez tenta retomar o caminho da especulação filosófica. 

Mas o que busca a filosofia, ou mais precisamente, a metafísica? Para Gilson, ela busca o fundamento último de toda e qualquer coisa, a realidade fundamental que, embora independente e para além da experiência, funda a própria experiência e não é fundada por nada além dela mesma. 

"É um caráter observável das doutrinas metafísicas que, tão divergentes quanto possam ser, elas concordam na necessidade de encontrar a causa primeira de tudo o que é. Chame-a matéria com Demócrito, o Bem com Platão, o Pensamento que se pensa a si mesmo com Aristóteles, o Uno com Plotino, o Ser com  todos os filósofos cristãos, a Lei Moral com Kant, a Vontade com Schopenhauer ou a Idéia absoluta de Hegel, a Evolução Criadora de Bargson, ou o que quer que se queira citar, em todos os casos, o  metafísico é um homem que olha por trás e para além da experiência buscando um fundamento último de toda a experiência real e possível." (p.307)

Segundo Gilson, essa tendência é tão forte que, mesmo que nos atenhamos somente ao Ocidente, é possivel afirmar uma segunda lei, a saber, que  por sua própria natureza o homem é um animal metafísico.

E o homem é metafísico porque é essencialmente racional. Ele busca, para além dos fatos brutos, aquilo que une a multiplicidade numa unidade. O que é ciência senão uma atividade que se dedica a encontrar estruturas universais e repetíveis que fundam a experiência sensível e que jamais se reduzem a seus exemplares concretos? Uma lei natural, seja ela qual for, é uma estrutura que ultrapassa o que se dá simplesmente na experiência sensível e concreta. 

A metafísica é essa mesma tendência racional buscando a razão última das coisas. A razão, por conseguinte, sempre anseia transcender os limites da experiência dada. Daí Gilson retira uma terceira regra segundo a qual a metafísica é o conhecimento alcançado por uma razão naturalmente transcendente em sua busca pelos primeiros princípios, ou causas primeiras, do que é dado na experiência sensível.

E se a metafísica trata daquilo que é fundamental no sentido mais geral que se possa pensar, segue-se que toda e qualquer identificação dela com alguma ciência particular ou ângulo do real só pode conduzir ao erro e ao fracasso. Como a metafísica busca ultrapassar todo conhecimento particular,  nenhuma ciência particular é competente seja para resolver problemas metafísicos, seja para julgar suas soluções metafísicas, ensina-nos Gilson.

O homem sempre falha na busca metafísica quando concebe todas as coisas como uma só e as identifica todas com alguma dessas coisas. Tales acertou ao dizer que a realidade é una, mas errou ao identificar tudo com a água. Da mesma forma todos aqueles que, ao anunciar a unicidade de tudo o que é, fundamentaram tudo em algo particular no mundo. Assim, diz-nos Gilson, as falhas dos metafísicos decorrem de seu uso imprudente do princípio de unidade presente na mente humana.

Resta ainda a pergunta crucial: o que é isso que funda todas as coisas e que, ao mesmo tempo, não é nenhuma delas em particular e nem pode com nenhuma delas ser identificado? A resposta é o Ser. Sua evidência e necessidade é tão acachapante que o nada, a absoluta ausência de Ser, não é sequer pensável.

"Mas se é verdade que que o pensamento humano é sempre sobre o Ser; que cada  e todo aspecto da realidade, ou mesmo da irrealidade, é necessariamente concebido como Ser, ou definido com referência ao Ser, segue-se que o entendimento do Ser é o primeiro a ser alcançado, o último no qual todo o conhecimento é resolvido e o único a ser incluído em todas as nossas apreensões. O que é primeiro, último e sempre no conhecimento humano, é seu primeiro princípio e seu constante ponto de referência." (p.313)

É necessário concluir que desde que o Ser é o primeiro princípio de todo o conhecimento humano, ele é forçosamente o primeiro princípio da metafísica.

O intelecto intui que algo é, vê imediatamente que algo é. Vê também que aquilo que é, enquanto é, não pode ser e não ser simultaneamente e que uma coisa é ou não é, não havendo uma terceira alternativa. E, mais importante, ele vê que o que é agora veio a ser por ação de algo que já era. O Ser procede do Ser.

Tais princípios são os mais gerais possíveis e nenhum outro é-lhes anterior, todos os outros princípios de todas as outras ciências pressupondo-os necessariamente. São os princípios indemonstráveis apreendidos por intuição intelectual que tornam possíveis todas as demonstrações da razão discursiva.

Contudo, se tudo o que é é Ser, cada coisa é Ser de acordo com sua própria essência. Ser algo é ser um exemplar de uma essência, a primeira determinação do Ser. Nunca se pode perder de vista essa distinção e, a partir dela, chegamos à última conclusão apresentada por Gilson: todos os fracassos da metafísica devem ser traçados até o fato de que o primeiro princípio do conhecimento humano foi ou ignorado ou mal utilizado pelos metafísicos.

O Ser é anterior ao pensamento e a verdade não reside numa dedução de um sistema do mundo a partir do pensamento, mas na relação de toda realidade que conhecemos com o Ser, no qual tudo é reunido.

A fidelidade ao Ser é a fidelidade à verdade.

domingo, 3 de junho de 2012

Étienne Gilson: sobre as consequências das teorias filosóficas



"Com efeito, é certo que que toda doutrina filosófica comporta uma certa proporção de elementos contingentes, cuja origem se encontra no tempo, no lugar e nas diversas circunstâncias nas quais foi elaborada essa doutrina. Tais elementos podem formar uma massa quantitativamente mais importante que o resto, e seu estudo é parte integrante da história das filosofias. Por outro lado, cada doutrina filosófica é regida pela necessidade intrínseca de sua própria posição e pelas consequências que dela decorrem em virtude das leis universais da razão. Acontece frequentemente que o filósofo que define pela primeira vez uma de suas posições não consiga, ele mesmo, discernir todas as consequências que dela advém. Contudo, essas consequências estão contidas virtualmente ali e é sempre possível que um outro as descubra. A função própria das escolas filosóficas é revelar as consequências dos princípios que aqueles mesmos que os postularam não haviam percebido, ou que, tendo percebido,haviam acreditado poder se furtar a aceitar." (Tradução minha do original em francês)

ÉTIENNE GILSON, Réalisme Thomiste et Critique de la Connaissance, p. 157


O filósofo e historiador da filosofia francês Étienne Gilson, na obra da qual a citação acima é retirada, as tentativas levadas a cabo por diversos pensadores neotomistas de buscar nos pais da filosofia moderna novas bases para o realismo aristotélico-tomista. Ao longo do livro, Gilson expõe ciosamente as doutrinas  desses filósofos e aponta para aquilo que ele crê como a principal falha dessas tentativas, a saber, a pretensão de alcançar o realismo partindo de premissas que são absolutamente contrárias a tal empreendimento.

Esses pensadores, cujos nomes praticamente já se perderam no esquecimento, tinham por objetivo realizar uma "crítica" do conhecimento e, por meio disso, fundamentar de forma indubitável o realismo próprio do pensamento tomista. Em outros termos, o projeto era afastar o tomismo de um "realismo ingênuo" ou pré-filosófico e fundá-lo em dados incontestáveis e inabaláveis a fim de fazer frente ao ceticismo moderno.

Ora, para tanto, os pontos de partida escolhidos foram Descartes e Kant, ou seja, o idealismo inatista e o idealismo transcendental. Gilson, na análise dessas tentativas, mostra como esses projetos não só não chegaram ao fim pretendido, como também que não poderiam alcançá-lo de forma alguma, dadas as premissas de onde partem.

Com efeito, como permanecer aristotélico-tomista - cuja teoria do conhecimento afirma a apreensão do ser como o dado primário - e, ao mesmo tempo, afirmar o cogito como a certeza  primeira e fundante de todo conhecimento ou, ainda, afirmar  que nenhum objeto é alcançado em sua natureza própria, em si, mas somente a partir de formas puras e categorias a priori que o constituem como objeto de conhecimento?

O empreendimento é falho e fadado ao fracasso simplesmente porque é contraditório. 

Mas, como Gilson sempre faz questão de sublinhar, a história da filosofia é também fonte de conhecimento filosófico, pois nos apresenta as tentativas falhadas e as razões para suas falhas. E a lição a ser aprendida é o fato de que - embora pareça trivial - com frequência esquece-se que, dadas certas suposições, premissas, axiomas ou posições, certas consequências se seguirão, saiba-se quais sejam elas ou não, queira-se ou não.

Dado isto, então aquilo. Assim, em filosofia, não é o caso de simplesmente escolher as premissas e esperar que as conclusões sejam aquelas desejadas. As primeiras suposições ou afirmações trazem em si os germes de seu desenvolvimento e tudo o que vem depois é o desenrolar de uma meada que talvez o seu proponente  jamais tenha conseguido discernir o alcance.

Se alguém inicia uma epistemologia com a afirmação do cogito cartesiano, faz opção por uma abordagem que tem em si suas próprias exigências. Entre elas, está a de fundar uma epistemologia idealista, ou seja, uma teoria segundo a qual o início e o fundamento do conhecimento está na idéia e não nas coisas.

Ao mesmo tempo, o cogito implica uma desconfiança radical das faculdades de conhecimento sensível e, por conseguinte, o questionamento do próprio mundo externo e a admissão de um critério de conhecimento que só vai ser satisfeito por idéias que sejam tão ou mais claras e distintas quanto o próprio cogito

Quem diz que o primeiro dado indubitável do conhecimento é o eu sou, eu existo cartesiano, está dizendo, ao mesmo tempo, que nada que seja menos claro e distinto do que essa idéia pode servir como conhecimento e, por conseguinte, qualquer apelo ao mundo sensível - posto em dúvida como parte essencial do cogito - torna-se, por consequência lógica, absolutamente impossível e injustificável.

Para sair de tal situação, somente pela idéia clara e distinta de um Deus perfeito que, por ser uma instância externa às faculdades sensíveis, pode garantir a sua confiabilidade. Mas o quão distante está uma doutrina assim da afirmação realista aristotélico-tomista da confiabilidade dos sentidos e da evidência do mundo externo!

Dificilmente seria possível imaginar algo mais desarrazoado do que tentar fundar um realismo a partir de uma perspectiva que, de antemão, põe sob suspeita a própria existência do mundo externo e que concebe que tudo o que percebemos sobre o mundo pode ser mero sonho ou engano de um gênio maligno. Como aponta Gilson, o que se funda na idéia, permanece encarcerado na idéia.

Em outros termos, as teorias filosóficas têm uma coerência interna que não se curva aos desejos de seus próprios proponentes e que nenhum filósofo ou pensador pode esperar retirar de seus princípios outra coisa que não aquilo que já está contido virtualmente neles.

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Heisenberg, natureza e objetividade



"Se é permitido falar de uma imagem da natureza segundo as ciências exatas de nosso tempo, por ela é necessário entender, mais do que a imagem da natureza, a imagem de nossas ligações com a natureza. A antiga divisão do universo em um desenvolvimento objetivo no tempo e no espaço de um lado, e uma alma que reflete  sobre esse desenvolvimento no outro lado - divisão correspondente àquela de Descartes em res extensa e res cogitans - não é mais adequada para servir de ponto de partida se se almeja compreender as as ciências modernas da natureza. É, antes de tudo, a rede de ligações entre o homem e a natureza que é o objetivo central dessa ciência. (...) A ciência, cessando de ser o espectador, reconhece-se como parte das ações recíprocas entre  a natureza  e o homem." (Tradução minha da edição francesa da Gallimard)

WERNER HEISENBERG, A Natureza na Física Contemporânea, p.33-34

O físico alemão Werner Heisenberg, no trecho citado acima, aponta para o que ele considera o resultado mais relevante da física contemporãnea, a saber, uma modificação profunda da própria concepção de natureza. Os resultados da chamada física quântica haviam colocado problemas epistemológicos, metodolófgicos e ontológicos outrora inimaginados.

Tais problemas advinham justamente dos resultados empíricos alcançados por essa ciência e colocavam em xeque pressupostos acalentados pela ciência desde os seus primórdios no início da Idade Moderna. Dois conceitos estreitamente ligados faziam parte essencial da imagem da natureza da ciência moderna: objetividade e determinismo.

O caráter objetivo do conhecimento da natureza se fundava na bifurcação cartesiana segundo a qual os fenômenos físicos poderiam ser estudados de forma totalmente independente das subjetividades humanas graças à sua natureza eminentemente quantitativa. Ou seja, existe o mundo físico, regido por leis matemático-geométricas, habitado por entes materiais, extensos, com comprimento, largura, profundidade, sem qualidades e que agem uns sobre os outros no tempo e no espaço. Figura e movimento explicam o mundo.

Do outro lado, havia o homem que estuda tais processos e que pode abstrair sua própria presença nesse mundo físico e, assim, obter resultados objetivos e exatos. Todas as qualidades, como o cheiro, sabor, cor, etc, não eram parte desse mundo físico, somente, como diz Heisenberg, "resultados das ações recíprocas entre a matéria e nossos sentidos". Essa imagem, com mais menos diferenças ou modificações, passou a ser a imagem canônica da natureza.  

O outro conceito essencial dessa ciência era o determinismo. Ao mesmo tempo em que o conceito de natureza era modificado pela bifurcação cartesiana, a idéia da causalidade sofria modificações correspondentes. Os modernos abandonaram, aos poucos, a doutrina das quatro causas aristotélicas (formal, final, eficiente e material), pois ela ligava-se diretamente a um cosmos eminentemente qualitativo.

Segundo Heisenberg, "a transformação do conceito de causa no conceito atual de causa produziu-se ao curso de séculos, em ligação íntima com a transformação da realidade inteira, tal como os homens a concebiam, e com o nascimento das ciências da natureza no início da era moderna. Na medida em que o processo material ganhava em realidade, o termo causa  se aplicava ao processo material particular que precedia o evento a explicar e que, de alguma forma, o provocava."

Dessa forma, a causalidade significa somente que um estado físico atual decorre de um estado anterior e que o conhecimento exato deste faculta ao cientista prever acuradamente aquele. Como afirma Heisenberg, eis aí o determinismo, a idéia de  que "há leis naturais fixas que determinam rigorosamente o estado futuro de um sistema a partir de um estado atual."

A tese central de Heisenberg é que essa imagem não se sustenta mais. O realismo ingênuo que havia tomado como possível uma imagem objetiva das partículas elementares - ou seja, uma imagem nos moldes da bifurcação clássica referida acima - deveria ser abandonado em nome de uma concepção muito mais abstrata, segundo a qual a imagem da natureza dessas partículas elementares não poderia fazer abstração  dos processos físicos que tornam possíveis as observações.

Na vida cotidiana, a influência desses processos é secundário, mas na física das partículas elementares, eles são proponderantes. A intervenção de um aparelho de observação, nesse nível, impede o cientista de conhecer simultaneamente a posição e a velocidade de uma partícula. O ato mesmo de medir, de "observar" por instrumentos e aparelhos, interfere no que é conhecido. Conhecimento estatístico ao invés de determinismo.

Para Heisenberg, "não se pode mais, de forma alguma,  falar do comportamento da partícula sem ter em conta o processo de observação. Consequentemente, as leis naturais que, na teoria dos quanta, nós formulamos matematicamente, não se referem mais à partículas elementares propriamente ditas,  mas ao conhecimento que delas temos.  A questão de saber se essas partículas existem "em si mesmas" no espaço e no tempo não pode mais ser colocada sob essa forma. Com efeito, nós somente podemos falar de eventos que se desenrolam enquanto, pela ação recíproca da partícula com não importa qual outro sistema físico - por exemplo, instrumentos de medida -, tenta-se conhecer o comportamento da partícula.. A concepção da realidade das partículas elementares está, então, estranhamente dissolvida, não pela névoa de uma nova concepção de realidade obsecura ou mal compreendida, mas na claridade transparente de uma matemática que não representa  mais o comportamento da partícula elementar, mas sim o conhecimento que dela nós temos. (...) não se pode mais falar simplesmente de uma natureza 'em si'."

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Descartes, Newton e a filosofia natural





"Antes de fazer uso dos princípios que foram estabelecidos, creio que não será fora de propósito entrar no exame daqueles que o Sr. Newton faz servir de fundamento de seu sistema. (...) Inimigo de todo limite e, sentindo que a Física constantemente o embaraçava, ele a baniu de sua filosofia. E, com medo de ser obrigado a solicitar sua ajuda ocasionalmente, ele tomou para si erigir como leis primordiais as causas íntimas de cada fenômeno particular. Assim fazendo, toda dificuldade foi aplainada. Sua obra não versa sobre nenhum problema a não ser aqueles tratáveis por meio de cálculos que ele sabia como realizar. Um fenômeno analisado geometricamente se torna para ele um fenômeno explicado. Dessa forma, esse ilustre rival do Sr. Descartes cedo experimentou a singular satisfação de se achar grande filósofo somente pela virtude de ser um grande geômetra.  (...) concluo que, seguindo o método desse grande geômetra, nada é mais fácil que desenvolver o mecanismo da natureza. Quereis estabelecer a razão de um fenômeno complicado? Exponha-o geometricamente e tereis feito tudo." (Tradução minha do original em francês)

E. S. DE GAMACHES, Principes généraux de la Nature appliqués au méchanisme astronomique et comparés aux principes de la Philosophie de Monsieur Newton, 1740, p.67


O trecho acima citado pertence à uma obra científica francesa já do século XVIII e mostra as razões da resistência francesa ao newtonianismo como filosofia natural. Ao avaliar os fundamentos teóricos newtonianos, De Gamaches chega à conclusão de que eles são insustentáveis e chega a afirmar que Newton não é um filósofo natural.

Há uma disputa científico-conceitual crucial em toda essa discussão, mas também uma disputa entre países tradicionalmente rivais. De um lado a Inglaterra e do outro a França, velhos adversários desde antes da Guerra dos Cem anos ainda na Idade Média.

De Gamaches, em outra passagem, afirma que Newton, embora grande geômetra, sentia-se particularmente incomodado com o fato de sua nação ter de buscar e tomar emprestado de um povo estrangeiro "a arte de esclarecer os processos da natureza e seguí-las em suas operações". Em outros termos, Newton seria um nacionalista exacerbadamente incomodado com o protagonismo de uma nação estrangeira na filosofia natural. 

E qual seria tal nação a quem a Inglaterra tinha sempre que "pedir emprestado" a arte do conhecimento do mundo natural? De Gamaches, um cartesiano convicto, não deixa dúvida de que é à França a que se refere e de que é Réné Descartes o grande mestre nessa arte.

Não obstante, a despeito da diatribe nacionalista de De Gamaches contra Newton, resta aí um problema que ultrapassa as querelas pouco científicas entre nações rivais. A questão central se encontra na própria concepção do que é, afinal, a Física.

O cartesiano francês afirma que Newton, embaraçado com os problemas próprios da Física, expulsou-a de sua filosofia. É uma grave acusação. Mas ela está fundamentada nas bases conceituais daquilo que ele concebe como uma Física.

O cerne da questão, para De Gamaches, é o fato de que Newton considera como explicado qualquer fenômeno que possa ser analisado geometricamente. Em outros termos, Newton era um belíssimo geômetra, mas um péssimo físico.

E qual a razão de um julgamento tão severo? Ora, as bases da física cartesiana. Para Descartes, a Física deveria, por obrigação, ser derivada de princípios metafísicos. É através da consideração da natureza última da matéria, por exemplo, que se podem deduzir as leis gerais da Física e daí as leis dos fenômenos mais particulares.

A matéria cartesiana não será mais que um "substância que tem extensão em comprimento, largura e profundidade". O mundo físico é, então, feito de corpos extensos, sem cheiro, sabor, cor, valor ou finalidade que se movimentam por impacto segundo leis geométricas. Dessas bases todo e qualquer fenômeno pode ser deduzido com o rigor e a certeza de uma demonstração matemática. Tudo se resolve em termos de figura e movimento, para o escândalo de Pascal.

A Física cartesiana lançava suas raízes na Metafísica, na medida em que é esta, e não a experiência sensível ou a observação, que determina, concomitantemente, quais os objetos próprios da Física e qual a natureza dos mesmos.

Quão inadequada parecerá a um cartesiano uma filosofia natural cujas bases postulam a existência de "propriedades ocultas" como as forças newtonianas que não podem ser deduzidas das bases metafísicas do mecanicismo!

Ora, como Thomas Kuhn bem salientou, a adição das forças de atração e de repulsão ao mecanicismo criou um enorme problema conceitual para os adeptos daquele gênero de explicação científica que se gabava de haver expulsado as qualidades ocultas características da Física escolástica:


"Em meados do século XVIII foi quase universalmente aceita, e o resultado foi uma genuína reversão (o que não é o mesmo que um retrocesso) a um padrão escolástico. Atrações inatas e repulsões juntaram-se ao tamanho, forma, posição e movimento como propriedades fisicamente irredutíveis da matéria." (The Structure of Scientific Revolutions, p.105)


De onde Newton retirou essas forças? Segundo ele mesmo, da experiência. Mas como a experiência poderia fornecer o conhecimento da estrutura última da matéria? Para um cartesiano, isso só pode se dar via razão, ou seja, como resultado da apreensão racional das idéias claras e distintas. 

E outra, como atrações e repulsões à distância poderiam ser compatibilizadas com uma física cujos fundamentos do movimento estão no impacto? Se não há choque ou tração, como um corpo pode agir sobre outro corpo à distância?

Todavia, o próprio Newton admite que não conhece a natureza dessas forças e que, sobre elas, não constrói hipóteses. Basta-lhe que alguns poucos princípios fundamentais possam ser derivados da experiência, confirmados por experimento e depois utilizados para explicar o comportamento de outros fenômenos. O questionamento das causas últimas desses mesmos fenômenos deve ser deixado de lado.

A situação fica ainda pior. Não contente em adicionar propriedades ocultas ao mecanicismo, Newton ainda pretende derivá-las da experiência e eximir-se de fornecer sua causa última, a natureza dessas mesmas forças.

Por essa razão, De Gamaches afirma que, no final das contas, Newton não faz Física. Como ele não sabe como fazer Física, ele trata nos fenômenos somente aquilo que pode ser calculado e acha que, uma vez tendo geometrizado os fenômenos, explicou-os satifatoriamente.

Para De Gamaches o que falta a Newton é fundamentar sua Física em princípios metafísicos indubitáveis de tal forma que todos os fenômenos do mundo natural possam ser deles logica e rigorosamente deduzidos, assim como Descartes teria fundado sua Física em princípios indubitáveis acerca da natureza da matéria.

Não basta então, diz o cartesiano francês, geometrizar os fenômenos, dar uma descrição matemática de como eles se comportam na experiência comum, mas deduzir esse comportamento de fundamentos certos e inabaláveis acerca da sua natureza fundamental.

Expor a razão de um fenômeno é deduzí-lo de suas propriedades últimas descobertas por uma sã metafísica e não somente expô-los geometricamente. O conflito aqui gira em torno não da adequação empírica dessas geometrizações dos fenômenos, mas do tipo de explicação que a Física exige.

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