"Com efeito, é certo que que toda doutrina filosófica comporta uma certa proporção de elementos contingentes, cuja origem se encontra no tempo, no lugar e nas diversas circunstâncias nas quais foi elaborada essa doutrina. Tais elementos podem formar uma massa quantitativamente mais importante que o resto, e seu estudo é parte integrante da história das filosofias. Por outro lado, cada doutrina filosófica é regida pela necessidade intrínseca de sua própria posição e pelas consequências que dela decorrem em virtude das leis universais da razão. Acontece frequentemente que o filósofo que define pela primeira vez uma de suas posições não consiga, ele mesmo, discernir todas as consequências que dela advém. Contudo, essas consequências estão contidas virtualmente ali e é sempre possível que um outro as descubra. A função própria das escolas filosóficas é revelar as consequências dos princípios que aqueles mesmos que os postularam não haviam percebido, ou que, tendo percebido,haviam acreditado poder se furtar a aceitar." (Tradução minha do original em francês)
ÉTIENNE GILSON, Réalisme Thomiste et Critique de la Connaissance, p. 157
O filósofo e historiador da filosofia francês Étienne Gilson, na obra da qual a citação acima é retirada, as tentativas levadas a cabo por diversos pensadores neotomistas de buscar nos pais da filosofia moderna novas bases para o realismo aristotélico-tomista. Ao longo do livro, Gilson expõe ciosamente as doutrinas desses filósofos e aponta para aquilo que ele crê como a principal falha dessas tentativas, a saber, a pretensão de alcançar o realismo partindo de premissas que são absolutamente contrárias a tal empreendimento.
Esses pensadores, cujos nomes praticamente já se perderam no esquecimento, tinham por objetivo realizar uma "crítica" do conhecimento e, por meio disso, fundamentar de forma indubitável o realismo próprio do pensamento tomista. Em outros termos, o projeto era afastar o tomismo de um "realismo ingênuo" ou pré-filosófico e fundá-lo em dados incontestáveis e inabaláveis a fim de fazer frente ao ceticismo moderno.
Ora, para tanto, os pontos de partida escolhidos foram Descartes e Kant, ou seja, o idealismo inatista e o idealismo transcendental. Gilson, na análise dessas tentativas, mostra como esses projetos não só não chegaram ao fim pretendido, como também que não poderiam alcançá-lo de forma alguma, dadas as premissas de onde partem.
Com efeito, como permanecer aristotélico-tomista - cuja teoria do conhecimento afirma a apreensão do ser como o dado primário - e, ao mesmo tempo, afirmar o cogito como a certeza primeira e fundante de todo conhecimento ou, ainda, afirmar que nenhum objeto é alcançado em sua natureza própria, em si, mas somente a partir de formas puras e categorias a priori que o constituem como objeto de conhecimento?
O empreendimento é falho e fadado ao fracasso simplesmente porque é contraditório.
Mas, como Gilson sempre faz questão de sublinhar, a história da filosofia é também fonte de conhecimento filosófico, pois nos apresenta as tentativas falhadas e as razões para suas falhas. E a lição a ser aprendida é o fato de que - embora pareça trivial - com frequência esquece-se que, dadas certas suposições, premissas, axiomas ou posições, certas consequências se seguirão, saiba-se quais sejam elas ou não, queira-se ou não.
Dado isto, então aquilo. Assim, em filosofia, não é o caso de simplesmente escolher as premissas e esperar que as conclusões sejam aquelas desejadas. As primeiras suposições ou afirmações trazem em si os germes de seu desenvolvimento e tudo o que vem depois é o desenrolar de uma meada que talvez o seu proponente jamais tenha conseguido discernir o alcance.
Se alguém inicia uma epistemologia com a afirmação do cogito cartesiano, faz opção por uma abordagem que tem em si suas próprias exigências. Entre elas, está a de fundar uma epistemologia idealista, ou seja, uma teoria segundo a qual o início e o fundamento do conhecimento está na idéia e não nas coisas.
Ao mesmo tempo, o cogito implica uma desconfiança radical das faculdades de conhecimento sensível e, por conseguinte, o questionamento do próprio mundo externo e a admissão de um critério de conhecimento que só vai ser satisfeito por idéias que sejam tão ou mais claras e distintas quanto o próprio cogito.
Quem diz que o primeiro dado indubitável do conhecimento é o eu sou, eu existo cartesiano, está dizendo, ao mesmo tempo, que nada que seja menos claro e distinto do que essa idéia pode servir como conhecimento e, por conseguinte, qualquer apelo ao mundo sensível - posto em dúvida como parte essencial do cogito - torna-se, por consequência lógica, absolutamente impossível e injustificável.
Para sair de tal situação, somente pela idéia clara e distinta de um Deus perfeito que, por ser uma instância externa às faculdades sensíveis, pode garantir a sua confiabilidade. Mas o quão distante está uma doutrina assim da afirmação realista aristotélico-tomista da confiabilidade dos sentidos e da evidência do mundo externo!
Dificilmente seria possível imaginar algo mais desarrazoado do que tentar fundar um realismo a partir de uma perspectiva que, de antemão, põe sob suspeita a própria existência do mundo externo e que concebe que tudo o que percebemos sobre o mundo pode ser mero sonho ou engano de um gênio maligno. Como aponta Gilson, o que se funda na idéia, permanece encarcerado na idéia.
Em outros termos, as teorias filosóficas têm uma coerência interna que não se curva aos desejos de seus próprios proponentes e que nenhum filósofo ou pensador pode esperar retirar de seus princípios outra coisa que não aquilo que já está contido virtualmente neles.
Em outros termos, as teorias filosóficas têm uma coerência interna que não se curva aos desejos de seus próprios proponentes e que nenhum filósofo ou pensador pode esperar retirar de seus princípios outra coisa que não aquilo que já está contido virtualmente neles.
Um comentário:
Muito bom!
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