quarta-feira, 23 de junho de 2021

Comentário curto ao "Górgias" de Platão - parte 4


"Depois de emudecer o adversário, Sócrates tira sozinho as suas últimas conclusões, respondendo às suas próprias perguntas. Abrangendo numa visão rápida os resultados obtidos, verifica que o fundamento sobre todas as reflexões sobre a acertada conduta do homem tem de ser o reconhecimento de que o agradável nem sempre coincide com o bom e o salutar."

WERNER JAEGER, Paideia, p. 632 (Trad. Artur M. Parreira)

Cálicles, agastado, vendo-se novamente encurralado pelos argumentos de Sócrates, desiste de de ser interrogado, e sugere ao filósofo que faça a si mesmo as suas perguntas e as responda em seguida. Sócrates aceita a proposta, não sem antes lamentar a atitude de seu interlocutor que não aceita ser corrigido. Sócrates, ato contínuo, passa a resumir o caminho de seu argumento desde o início.

"Bem não é a mesma coisa que prazer. O bem depende universalmente de 'ordem, retidão e arte, e mostra a si mesmo em uma condição de 'regulação e de ordem'. Isso significa que a alma temperada ou 'disciplinada' é a boa alma, e que a alma 'impunida' e 'indisciplinada' é má. A primeiro age 'adequadamente à situação' em todas as situações da vida, e consequentemente age bem, faz bem e é 'feliz'. A outra, não agindo apropriadamente nas situações da vida, não é meramente má, mas infeliz, especialmente se não é mantida sob controle pelo 'castigo'. Tais são os princípios sob os quais tanto a conduta pública quanto a conduta privada devem ser organizadas." (A.E.TAYLOR, Plato: the Man and his Work, p.123)

Sócrates prossegue afirmando que a alma intemperada é má, e não é amiga dos deuses e nem dos homens. Os sábios ensinaram que a comunhão, a amizade, a ordem e a temperança unem o céu e a terra, os homens e os deuses, e é por isso que este mundo é chamado de cosmos. Cálicles, diz o filósofo, apesar de pensador, não observa a igualdade geométrica e propugna a desigualdade do excesso. 

Em seguida, Sócrates reafirma a verdade de que desses dois males, sofrer injustiça ou cometer injustiça, o segundo é o maior. Como o homem pode se defender de ambos? No caso de não cometer injustiça, será necessário algum poder e alguma arte, dado que já foi acordado nessa discussão que alguém comete injustiça por ignorância. 

No segundo caso, o de não sofrer injustiça, mister é ter o poder de um tirano ou ser amigo e imitador do tirano, pois desse modo estará livre de qualquer injustiça. Se a amizade é louvar e desprezar as mesmas coisas, como dizem os sábios, então o imitador do tirano deverá assemelhar-se o mais possível de seu modelo/amigo a fim de cair em suas graças. Mas o imitador do tirano, sendo este intrinsecamente injusto, não furtar-se-á a cometer ele mesmo injustiças, caindo então no maior dos males.

Cálicles intervém dizendo que Sócrates não entende que o imitador matará quem porventura se recusar a imitá-lo por sua vez. O filósofo responde que sabe que isso acontecerá, porém o imitador será um homem mau que condenará um homem bom. Não será isso, pergunta Cálicles, motivo de indignação? Não, se se reflete sobre o que até aqui foi dito. A Cálicles Sócrates pergunta se o homem deve preservar a vida a todo custo, praticando aquelas artes que possam mantê-lo vivo ou salvá-lo. O seu interlocutor afirma que sim.

Sócrates, em sua argumentação, tenta fazer Cálicles perceber que, se o maior mal é sofrer injustiça, o homem será obrigado, se quiser ser poupado desse mal, a acumular poder tirânico ou compactuar com o poder tirânico. E isso o conduzirá, pela dinâmica intrinsecamente injusta dessa relação, a cometer injustiças, este sim o maior dos males. Salvar ou preservar a própria vida a todo custo tem como preço o cometimento de injustiças. O homem não pode jamais estar completamente a salvo de sofrer injustiças, sob pena de tornar-se um homem mau.

Ora, se salvar a própria pele é a prioridade de Cálicles, então por qual razão ele despreza a natação e outras artes como a navegação, a medicina e a engenharia de guerra que asseguram e salvam a vida dos homens da mesma forma que faz a retórica? Ademais, viver muito ou pouco, apegar-se à vida, não é próprio do sábio. Este entrega-se à divindade, e reflete como deve viver a sua vida da forma mais perfeita possível, seja assimilando-se à constituição sob a qual ele vive, como Cálicles deve fazer-se semelhante à democracia de Atenas se quiser obter poder. E só será aceito pelo demos aquele que for da mesma natureza que o povo, e não mero imitador.

Cálicles não se convence ainda, e Sócrates tenta um novo caminho. Há duas maneiras de treinar seja o corpo ou seja a alma, uma com vistas ao prazer e a outra com vistas a um bem maior. A primeira é lisonja vulgar, mas a segunda objetiva o maior aperfeiçoamento. É mister agir da mesma forma com relação à cidade. Cálicles concorda.

Todavia, é preciso considerar se ambos, Cálicles e Sócrates, já construíram uma edificação, se ela foi de boa qualidade, se tiveram bons mestres e se já construíram sem a ajuda destes. Se a resposta for negativa, seria prudente não se meter a construir prédios públicos. Mutatis mutandis, o mesmo se daria se o caso fosse a medicina. Não poderiam ousar ser médicos do Estado se não houvessem curado pessoas, não possuíssem boa saúde, etc. 

Essa breve indução servirá a Sócrates como ponte para a pergunta realmente importante: alguém já se tornou melhor, deixou de ser mau, por influência de Cálicles? Ele percebe aonde o raciocínio de Sócrates quer chegar, e, irritado, reclama que o filósofo é contencioso. Não é por amor à contenda que Sócrates pergunta o que pergunta, mas para saber a opinião de Cálicles sobre como dirigir os assuntos de Estado.

O filósofo afirma que se o objetivo  do administrador do Estado é tornar o cidadão melhor, então Péricles, Cimon, Temístocles e Miltíades (todos elogiados por Cálicles como exemplos de homens públicos) não foram bons homens públicos, pois eles mesmos sofreram depois injustiças por parte do mesmo povo que outrora lideraram. O argumento aqui é um condicional segundo o qual "se X,Y,Z são bons, então farão P também bom. Como P não é bom, então X, Y e Z não podem ser bons." 

Contrariado, Cálicles afirma que certamente nenhum homem chegou próximo de seus desempenhos. Sócrates responde que tais homens fizeram bom serviço ao Estado, mas nada fizeram para instilar no cidadão as virtudes. Cálicles os elogia sem perceber que eles foram a causa remota da degradação atual de Atenas, servindo os cidadãos com bens e obras, mas sem preocupação com a temperança e a justiça. O mesmo se dá com os homens de Estado contemporâneos.

Comenta Werner Jaeger, em seu clássico Paideia:

"Os estadistas famosos de Atenas foram meros servidores do Estado, em vez de serem educadores do povo. Converteram-se no instrumento das fraquezas da natureza humana, que procuraram explorar, em vez de as superarem por meio da persuasão e da coação. Não eram médicos e ginastas, mas antes confeiteiros, que à força de gordura incharam o corpo do povo, embotando-lhe os músculos outrora rijos. Claro está que as consequências desse empanturramento só mais tarde se manifestarão." (p. 637)

Lamenta-se amiúde que tais homens tenham sido traídos depois de tantos bens feitos à cidade. Porém, a lamentação é falsa por causa do fato de que foram eles mesmos que fizeram o povo do jeito que ele é. Como os sofistas, que se dizem professores de virtude e reclamam que seus alunos os traíram. Não seria possível que os alunos, se transformados em bons cidadãos pelo ensino dos sofistas, pudessem trair e agir mal com seus antigos mestres. Se fossem confiantes em sua arte, os sofistas não pediriam sequer pagamento, pois saberiam que os alunos não deixariam de recompensá-los.

(O comentário será encerrado na parte 5)

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Νεκρομαντεῖον: Comentário curto ao "Górgias" de Platão - parte 3 (oleniski.blogspot.com)

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Νεκρομαντεῖον: Comentário curto ao "Górgias" de Platão - parte 1 (oleniski.blogspot.com)

quinta-feira, 10 de junho de 2021

Comentário curto ao "Górgias" de Platão - parte 3

"A substância do homem está em jogo, não um problema filosófico no sentido moderno."

ERIC VOEGELIN, Order and History vol. III - Plato and Aristotle, p. 12

A despeito dos argumentos apresentados por Sócrates, Cálicles insiste na identidade entre prazer e o bem. A estratégia socrática será mostrar que, assim como a saúde e a doença, sendo opostos, não podem estar presentes simultaneamente, o bem e o mal não podem ser simultâneos. Ocorre que se se admite que a falta é desagradável e, ainda, que no processo de saciamento da sede há simultaneamente o desprazer da sede e o prazer do saciamento parcial, então é preciso admitir que prazer e desprazer podem estar presentes ao mesmo tempo.

Ora, mas se Cálicles defende a identidade do prazer e do bem e concorda que o bem e o mal não podem estar juntos, então como é possível que prazer e desprazer possam estar unidos? Há uma contradição clara. O argumento, cremos, pode ser exposto da seguinte maneira:

a) Cálicles defende que prazer é idêntico ao bem assim como desprazer é idêntico ao mal; 

b) Cálicles concorda que o bem e o mal, opostos, não podem estar presentes simultaneamente;

c) Exemplum in contrarium: Sócrates mostra que prazer e desprazer podem estar presentes simultaneamente no caso do saciamento da sede;

d) Coisas idênticas não podem ter capacidades ou incapacidades diferentes;

e) Logo, Cálicles tem de admitir que prazer não pode ser idêntico ao bem assim como desprazer não pode ser idêntico ao desprazer.

Sócrates usa um segundo argumento. Cálicles identificou o prazer ao bem, e os bons identificou aos valentes e inteligentes. Mas, diz Sócrates, não é verdade que os covardes se alegram mais do que os corajosos quando o exército inimigo recua e sofrem mais do que os valentes quando o exército inimigo avança? Sim, concorda Cálicles. Sendo assim, não é verdade que, entre ambos, o prazer e o desprazer estão presentes, embora em quantidades um pouco diferentes? E, se é desse modo, o bem e o mal estão também presentes neles na proporção do prazer e do desprazer, dado que bem e mal e prazer e desprazer são respectivamente idênticos? 

Alfred Taylor comenta em seu Plato: the Man and his Work:

"O próprio Cálicles faz uma distinção entre os 'bons' homens e os 'maus', o 'bom' sendo o inteligente e valente e o 'mau' o tolo e covarde. Consequentemente, ele deve sustentar que o bom 'está presente no' primeiro e não no segundo. Mas ele não pode negar que tolos e covardes sentem prazer e dor, no mínimo, tanto quanto o inteligente e o corajoso, se não mais ainda, pois os covardes, por exemplo, sentem mais desprazer em face do inimigo e mais prazer na sua retirada do que os homens bravos sentem. Assim, há objeções empíricas à identificação entre prazer e o bem." (p.121)

Dado que fica demonstrado que o bem não é simplesmente idêntico ao prazer, Cálicles só tem uma saída: admitir que há prazeres bons e prazeres ruins. Os bons são aqueles úteis ao homem e os maus são aqueles prejudiciais. Sócrates consegue mesmo fazer Cálicles concordar de que o bem é o fim último e que os prazeres estão submetidos a esse fim. 

Aqui entra um problema central. Nem todos os homens são capazes de identificar o bom prazer e o mau prazer, então é mister haver um especialista que os identifique corretamente. Quem será esse especialista? Sócrates declara que a questão é saber qual deve ser a maneira segundo a qual o homem deve viver, isto é, como homem de ação ou como filósofo. 

Anteriormente, Sócrates havia afirmado que a culinária era uma lisonja ou um agrado, e não uma arte. A culinária seria um modo de agradar aos homens pelo prazer, sem nenhuma pretensão de explicar as razões das coisas com as quais produz o prazer nos homens. No que tange às coisas da alma, não há, semelhantemente, artes que buscam o melhor interesse da alma e também modos de agrado que visam somente agradar as almas sem nenhuma preocupação com o seu bem? Cálicles concorda.

A arte de tocar flauta, o coral, a poesia e o teatro não buscam todos a satisfação dos homens e não o seu interesse mais profundo? E se retirarmos os instrumentos musicais da poesia, não ficará somente a fala oral, como a do retórico? Com essa indução, Sócrates chega ao seu alvo: a retórica. Esta será também apenas um agrado, uma lisonja, um modo empiricamente fundado de produzir o prazer e o agrado na assembleia. Mas Cálicles não segue a indução até à sua conclusão e afirma que há dois tipos de retórica, uma como Sócrates descreve e outra com o fim nobre de aperfeiçoar a alma dos cidadãos.

Sócrates pergunta se Cálicles conhece algum orador que seja como esses retóricos que buscam não agradar o público, mas dizer somente o que ele deve ouvir. Cálicles diz que não conhece nenhum na geração dos homens contemporâneos. O que é estranho, pois ele está diante de Górgias e não cita o sofista como exemplo de orador que busca o bem. Sócrates parece haver conseguido fazer com que mesmo Cálicles admitisse, sem o perceber, que a retórica de Górgias, como Sócrates havia afirmado, não passava de lisonjas.

Seja como for, Cálicles ataca apontando como exemplo de dignidade nomes ilustres do passado como Temístocles, Miltíades, Cimon e Péricles. Tais homens foram grandes em satisfazer seus próprios desejos e os dos outros, responde o filósofo. Se houvesse um governante que tudo o que dissesse e tudo o que fizesse fosse dirigido a um fim nobre, seria como um artista, pintor ou construtor, que tudo realiza com vistas a dar uma forma definida à sua obra. O artista dispõe as coisas em ordem, faz com que todas as partes estejam em harmonia com todas as outras, até que tenha construído um todo regular e sistemático. O mesmo se dá com todos os artistas.

Uma casa na qual há ordem e regularidade é boa. O mesmo pode ser dito de um barco ou do próprio corpo humano. A saúde é a ordem do corpo e a ordem da alma são a temperança (σωφροσύνη) e a justiça (δικαιοσύνη). E será implantar essas qualidades nos homens o objetivo de cada palavra do bom retórico. Pois não há bem em liberar ao doente o consumo de todo tipo de comida. Cálicles concorda.

Isso se aplica também à alma e Cálicles é conduzido a admitir que para uma alma destemperada, é preciso também proibições na forma de restrição e de castigo. Acuado, Cálicles rejeita novamente a conclusão da indução. Mas parece não haver escapatória.

Retomemos os passos da argumentação. Dado que a identidade entre prazer e bem não se sustenta, como mostraram os exemplos apresentados por Sócrates, Cálicles teve de realizar uma distinção entre bons e maus prazeres. Isto é, bom não é idêntico a prazer, mas se torna um qualificativo do prazer. Os prazeres podem ser bons ou maus. 

Sócrates já havia impugnado a tese de Cálicles no momento em que este admitiu a existência de prazeres bons e de prazeres maus. Se, de início, Cálicles defendia a completa fruição sem peias dos prazeres, quaisquer que eles fossem, ao concordar com Sócrates de que há prazeres bons e prazeres maus, ele será obrigado, por lógica, a consentir com:

a) a fruição completa e indistinta dos prazeres é impossível, pois o prazer não é idêntico ao bem;

b) se há prazeres maus, há que se evitá-los, pois o homem busca o seu próprio bem;

c) só se pode evitar os prazeres maus com temperança e, portanto, com restrição dos desejos e com castigo.

Cálicles alega não compreender Sócrates, e não deseja mais responder às suas questões. Sugere que Sócrates faça as perguntas a si mesmo e as responda em seguida.

(o comentário continuará na parte 4)

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sábado, 5 de junho de 2021

Kitaro Nishida, Natureza e experiência subjetiva


"Geralmente pensamos que a natureza puramente mecânica seja verdadeiramente uma realidade objetiva, e olhamos a natureza concreta na experiência direta como um fenômeno subjetivo. (...) No entanto, não nos é possível pensar uma realidade separada dos fenômenos da consciência. Se dissermos que é subjetiva por ter relação com os fenômenos da consciência, a natureza puramente mecânica também seria subjetiva."

KITARO NISHIDA, Ensaio sobre o Bem, p. 102 (trad. Joaquim Antonio Monteiro)

A partir de seu conceito de experiência pura, que afirma a unidade ontológica completa do real, anterior à distinção de sujeito e de objeto, o filósofo japonês Kitaro Nishida, em seu Ensaio sobre o Bem, trata no capítulo VII da concepção moderna da Natureza. A realidade é una, afirma, mas há diversas formas de a encarar e realizar distinções no seu seio, e a concepção de uma Natureza puramente objetiva, distinta de todo aspecto subjetivo, é um conceito abstrato.

A Natureza objetiva, tal como concebida pela ciência, nasce da eliminação conceitual de toda atividade subjetiva. Mesmo o conceito de matéria implica um fato da consciência, pois a matéria só poderia ser notada a partir de uma experiência consciente e, portanto, subjetiva. Sendo uma abstração, a Natureza objetiva não mostra a realidade tal como ela se apresenta à nossa experiência comum.

Como a ciência física privilegia os aspectos quantitativos, ela não é capaz de distinguir entre animais, vegetais e os homens, tudo sendo pensado a partir de uma mesma força mecânica. Essa não é a Natureza tal como a observamos, mas sim uma abstração conceitual. A realidade observada é repleta de caraterísticas qualitativas, cada uma delas correspondendo a um determinado conceito e a um sentido próprio. Os entes do mundo possuem diversos aspectos e poder-se-ia explicá-los a partir de diversos ângulos.

No mundo há animais, vegetais e pepitas de ouro. A ciência, por conta de seu recorte ontológico-metodológico, só consegue enxergar um aspecto desses entes, ainda que seja um aspecto válido em si mesmo. Ocorre, contudo, que há diferenças qualitativas óbvias à observação comum e cotidiana que são abstraídas pelos cientistas em nome da objetividade. O erro está em tomar esse recorte específico como o único passível de representar a realidade.

Ademais, em todas as coisas da Natureza, animadas e inanimadas, em maior ou menor grau, há uma função unificadora que não pode ser fruto de um movimento mecânico apenas. Mas as leis mecânicas e a função unificadora não entram em conflito, como em uma estátua de cobre que obedece a um só tempo às leis da física e da química de seu material e à lei da obra de arte que expressa nosso ideal. O poder unificador da Natureza é um fato manifesto à nossa observação, e dá sentido e fim essa mesma Natureza.

"A verdadeira realidade não possui cisão entre sujeito e objeto, portanto a Natureza efetiva não é um conceito abstrato dotado apenas de objetividade, mas consiste nos fatos concretos da consciência que abarcam tanto o sujeito quanto o objeto", assevera Nishida. Há coincidência entre a unidade de nossa subjetividade e o poder unificador da Natureza. A suposta independência de sujeito e objeto é que faz o espírito e a Natureza serem duas modalidades de realidade.

O que Nishida aponta, cremos, é que na formulação da chamada "linguagem científica objetiva" frequentemente se perde de vista o fato de que o homem é parte do mundo e que, por conseguinte, a consciência e a intencionalidade são fatos tão reais quanto a existência das pedras. O homem não é um ente que observa o mundo de fora e que ocasionalmente o contamina com propriedades que o mundo real não comporta de nenhuma maneira. 

A questão não é, por conseguinte, saber como um mundo objetivo e opaco pôde dar origem a um ser intencional e reflexivo, pois não se está diante de uma anomalia que parece contradizer um fato estabelecido e que, por isso, requer explicação. A realidade humana é uma realidade tão "mundana" quanto a existência das pedras. Há uma unidade do real que ultrapassa a cisão entre sujeito e objeto e que, portanto, ultrapassa também o recorte ontológico operado pela ciência.

Todavia, Nishida não defende aqui um idealismo subjetivista. No capítulo seguinte de seu livro, tratando do tema do espírito, o filósofo afirma que, se a Natureza objetiva separada da subjetividade é uma abstração, a concepção de um espírito puro separado da Natureza objetiva também é uma abstração. Não há espírito que não aja sobre algo. A perspectiva de Nishida, se assim posso expressar, é a da suprema coincidência dos opostos que a tudo supera em sua unidade abarcante. Quando não há sujeito e objeto, quando não há "eu", a realidade se revela tal como ela é. 

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