quinta-feira, 10 de junho de 2021

Comentário curto ao "Górgias" de Platão - parte 3

"A substância do homem está em jogo, não um problema filosófico no sentido moderno."

ERIC VOEGELIN, Order and History vol. III - Plato and Aristotle, p. 12

A despeito dos argumentos apresentados por Sócrates, Cálicles insiste na identidade entre prazer e o bem. A estratégia socrática será mostrar que, assim como a saúde e a doença, sendo opostos, não podem estar presentes simultaneamente, o bem e o mal não podem ser simultâneos. Ocorre que se se admite que a falta é desagradável e, ainda, que no processo de saciamento da sede há simultaneamente o desprazer da sede e o prazer do saciamento parcial, então é preciso admitir que prazer e desprazer podem estar presentes ao mesmo tempo.

Ora, mas se Cálicles defende a identidade do prazer e do bem e concorda que o bem e o mal não podem estar juntos, então como é possível que prazer e desprazer possam estar unidos? Há uma contradição clara. O argumento, cremos, pode ser exposto da seguinte maneira:

a) Cálicles defende que prazer é idêntico ao bem assim como desprazer é idêntico ao mal; 

b) Cálicles concorda que o bem e o mal, opostos, não podem estar presentes simultaneamente;

c) Exemplum in contrarium: Sócrates mostra que prazer e desprazer podem estar presentes simultaneamente no caso do saciamento da sede;

d) Coisas idênticas não podem ter capacidades ou incapacidades diferentes;

e) Logo, Cálicles tem de admitir que prazer não pode ser idêntico ao bem assim como desprazer não pode ser idêntico ao desprazer.

Sócrates usa um segundo argumento. Cálicles identificou o prazer ao bem, e os bons identificou aos valentes e inteligentes. Mas, diz Sócrates, não é verdade que os covardes se alegram mais do que os corajosos quando o exército inimigo recua e sofrem mais do que os valentes quando o exército inimigo avança? Sim, concorda Cálicles. Sendo assim, não é verdade que, entre ambos, o prazer e o desprazer estão presentes, embora em quantidades um pouco diferentes? E, se é desse modo, o bem e o mal estão também presentes neles na proporção do prazer e do desprazer, dado que bem e mal e prazer e desprazer são respectivamente idênticos? 

Alfred Taylor comenta em seu Plato: the Man and his Work:

"O próprio Cálicles faz uma distinção entre os 'bons' homens e os 'maus', o 'bom' sendo o inteligente e valente e o 'mau' o tolo e covarde. Consequentemente, ele deve sustentar que o bom 'está presente no' primeiro e não no segundo. Mas ele não pode negar que tolos e covardes sentem prazer e dor, no mínimo, tanto quanto o inteligente e o corajoso, se não mais ainda, pois os covardes, por exemplo, sentem mais desprazer em face do inimigo e mais prazer na sua retirada do que os homens bravos sentem. Assim, há objeções empíricas à identificação entre prazer e o bem." (p.121)

Dado que fica demonstrado que o bem não é simplesmente idêntico ao prazer, Cálicles só tem uma saída: admitir que há prazeres bons e prazeres ruins. Os bons são aqueles úteis ao homem e os maus são aqueles prejudiciais. Sócrates consegue mesmo fazer Cálicles concordar de que o bem é o fim último e que os prazeres estão submetidos a esse fim. 

Aqui entra um problema central. Nem todos os homens são capazes de identificar o bom prazer e o mau prazer, então é mister haver um especialista que os identifique corretamente. Quem será esse especialista? Sócrates declara que a questão é saber qual deve ser a maneira segundo a qual o homem deve viver, isto é, como homem de ação ou como filósofo. 

Anteriormente, Sócrates havia afirmado que a culinária era uma lisonja ou um agrado, e não uma arte. A culinária seria um modo de agradar aos homens pelo prazer, sem nenhuma pretensão de explicar as razões das coisas com as quais produz o prazer nos homens. No que tange às coisas da alma, não há, semelhantemente, artes que buscam o melhor interesse da alma e também modos de agrado que visam somente agradar as almas sem nenhuma preocupação com o seu bem? Cálicles concorda.

A arte de tocar flauta, o coral, a poesia e o teatro não buscam todos a satisfação dos homens e não o seu interesse mais profundo? E se retirarmos os instrumentos musicais da poesia, não ficará somente a fala oral, como a do retórico? Com essa indução, Sócrates chega ao seu alvo: a retórica. Esta será também apenas um agrado, uma lisonja, um modo empiricamente fundado de produzir o prazer e o agrado na assembleia. Mas Cálicles não segue a indução até à sua conclusão e afirma que há dois tipos de retórica, uma como Sócrates descreve e outra com o fim nobre de aperfeiçoar a alma dos cidadãos.

Sócrates pergunta se Cálicles conhece algum orador que seja como esses retóricos que buscam não agradar o público, mas dizer somente o que ele deve ouvir. Cálicles diz que não conhece nenhum na geração dos homens contemporâneos. O que é estranho, pois ele está diante de Górgias e não cita o sofista como exemplo de orador que busca o bem. Sócrates parece haver conseguido fazer com que mesmo Cálicles admitisse, sem o perceber, que a retórica de Górgias, como Sócrates havia afirmado, não passava de lisonjas.

Seja como for, Cálicles ataca apontando como exemplo de dignidade nomes ilustres do passado como Temístocles, Miltíades, Cimon e Péricles. Tais homens foram grandes em satisfazer seus próprios desejos e os dos outros, responde o filósofo. Se houvesse um governante que tudo o que dissesse e tudo o que fizesse fosse dirigido a um fim nobre, seria como um artista, pintor ou construtor, que tudo realiza com vistas a dar uma forma definida à sua obra. O artista dispõe as coisas em ordem, faz com que todas as partes estejam em harmonia com todas as outras, até que tenha construído um todo regular e sistemático. O mesmo se dá com todos os artistas.

Uma casa na qual há ordem e regularidade é boa. O mesmo pode ser dito de um barco ou do próprio corpo humano. A saúde é a ordem do corpo e a ordem da alma são a temperança (σωφροσύνη) e a justiça (δικαιοσύνη). E será implantar essas qualidades nos homens o objetivo de cada palavra do bom retórico. Pois não há bem em liberar ao doente o consumo de todo tipo de comida. Cálicles concorda.

Isso se aplica também à alma e Cálicles é conduzido a admitir que para uma alma destemperada, é preciso também proibições na forma de restrição e de castigo. Acuado, Cálicles rejeita novamente a conclusão da indução. Mas parece não haver escapatória.

Retomemos os passos da argumentação. Dado que a identidade entre prazer e bem não se sustenta, como mostraram os exemplos apresentados por Sócrates, Cálicles teve de realizar uma distinção entre bons e maus prazeres. Isto é, bom não é idêntico a prazer, mas se torna um qualificativo do prazer. Os prazeres podem ser bons ou maus. 

Sócrates já havia impugnado a tese de Cálicles no momento em que este admitiu a existência de prazeres bons e de prazeres maus. Se, de início, Cálicles defendia a completa fruição sem peias dos prazeres, quaisquer que eles fossem, ao concordar com Sócrates de que há prazeres bons e prazeres maus, ele será obrigado, por lógica, a consentir com:

a) a fruição completa e indistinta dos prazeres é impossível, pois o prazer não é idêntico ao bem;

b) se há prazeres maus, há que se evitá-los, pois o homem busca o seu próprio bem;

c) só se pode evitar os prazeres maus com temperança e, portanto, com restrição dos desejos e com castigo.

Cálicles alega não compreender Sócrates, e não deseja mais responder às suas questões. Sugere que Sócrates faça as perguntas a si mesmo e as responda em seguida.

(o comentário continuará na parte 4)

...

Leia também: 

Νεκρομαντεῖον: Comentário curto ao "Górgias" de Platão - parte 2 (oleniski.blogspot.com)

Νεκρομαντεῖον: Comentário curto ao "Górgias" de Platão - parte 1 (oleniski.blogspot.com)

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