quinta-feira, 7 de março de 2024

Dionísio Areopagita e a teologia negativa em "Os Nomes Divinos" (Livro IV, sobre o Bem)


"No primeiro princípio das coisas a simples existência é ela mesma a bondade primordial e absoluta em si. Assim como o Sol, luminoso em sua essência, e o fogo, quente por essência, não necessitam de qualquer auxílio para agir além de seu próprio ser (e cada um ilumina e esquenta por meio de seu ser), assim também o Bem em si, cuja natureza é a absoluta bondade (bonitas), não carece, para além dessa bondade, de nenhuma deliberação ou escolha por auxílio da qual pudesse transmitir suas bênçãos."

MARSILIO FICINO, Comentário aos Nomes Divinos, capítulo LXXIX

O quarto livro de Os Nomes Divinos, de Dionísio Areopagita, trata do Bem e do Mal. O Princípio último de todas as coisas para o platonismo é o Bem, como apontavam Platão na República e Plotino nas Enéadas. Tudo o que há, houve ou pode haver é uma manifestação (imitação ou participação) do Bem eterno cuja natureza é indizível e incognoscível. O Bem, por ser o Princípio de tudo, não está submetido a qualquer uma das limitações das coisas. 

Dionísio afirma que o Bem, pelo simples fato de sua existência, traz todas as coisas à realidade, tal como o Sol, sem nenhuma escolha ou deliberação, ilumina todos aqueles que são capazes de serem iluminados. O poder do Princípio se manifesta não por uma decisão ou uma deliberação de criar as coisas. O ser humano precisa deliberar e decidir se fará ou não algo, se tomará ou não determinado curso. Esse aspecto calculativo e discursivo da vida humana é um sinal de sua natureza limitada. 

Precisamos escolher este ou aquele curso de ação. Cogitamos, imaginamos e discursamos sobre as possibilidades à nossa disposição a fim de termos uma maior certeza do que faremos. As limitações desse gênero estão ausentes do Princípio último de todas as coisas. Seria errôneo imaginar que Deus estivesse em algum momento em dúvida acerca da criação das coisas. 

Dionísio repete nesse início de capítulo um tema já enunciado por Plotino: o Princípio gera os entes por sua simples presença ou existência. O que existe no mundo é fruto direto do Princípio como (utilizando o exemplo de Plotino) o fogo gera o calor. Onde há fogo, há calor. Não por uma deliberação do fogo, mas simplesmente por conta da sua essência. Quando se acende o fogo, a emanação do calor é imediata e persiste enquanto o fogo estiver presente. 

O Sol é um símbolo platônico do Princípio. Ele ilumina todas as coisas capazes de receber a sua luz. Em termos metafísicos, o Princípio traz à existência tudo aquilo que é capaz de existir. Cada um dos entes deste mundo possui uma essência por conta da qual pertence a um determinado tipo de ser. Essa é a sua limitação ou determinação primeira e fundamental. Nesse sentido, ninguém escolhe ser o que é. As coisas simplesmente são o que elas são. Não há, e nunca haverá, um momento anterior à existência em que haja a escolha de ser isso ou aquilo.

Marsilio Ficino, comentando Dionísio, afirma que "em todas as coisas posteriores ao primeiro, essência é uma coisa e a bondade outra". O Bem é o fundamento de todas as coisas. Entretanto, cada coisa é diferente da outra por sua essência. Dito de outro modo, é a essência que diferencia e que limita as coisas tornando-as isso ou aquilo. O Bem é a fonte e o fundamento de todas essas diferenciações, e, exatamente por isso, está acima de qualquer limitação essencial.

Obviamente, o Bem não gera as coisas como um ser limitado gera ou age. O ser humano age segundo a sua vontade e a sua razão, que são potências diferentes e nem sempre em concordância. Porém, nenhuma diferença existe entre a vontade e a razão em Deus, pois não há diferenciações no Princípio. O Sol, imagem visível de Deus, simboliza a ação criadora do Princípio justamente por iluminar todos os seres imediatamente, sem necessidade da deliberação que caracteriza o modo humano de criar e de agir.

"Deus, como o Bem, cria por Sua própria existência pura, isto é, por Sua bondade, enquanto outras coisas realizam o que elas realizam por participação nesse Bem", ensina Ficino. O Bem, então, não é pensado aqui no sentido moral, mas é tomado no sentido ontológico. O bem moral se segue do Bem ontológico, fundamento de tudo. O Bem é a realidade quando encarada como algo desejável. E nada pode ser mais desejável do que o Princípio último de todas as coisas desejáveis. 

Como dito acima, o Bem é a fonte de todas as coisas e, por isso, consequentemente, está acima de todas elas e não possui quaisquer das limitações que caracterizam as coisas. Nesse sentido, é possível dizer que o Bem é Não-Ser, e que é Não-Mente. Então, o Bem não existe e não pensa? Para compreender esse ponto, é preciso retornar ao princípio do discurso apofático, isto é, afirmar a perfeição para negar a imperfeição, e negar a perfeição para não afirmar a imperfeição.

Ao tratar do Princípio Absoluto de todas as coisas, a linguagem utilizada não deve afirmar alguma imperfeição, como dizer que o Princípio Absoluto é inexistente. Alternativamente, tampouco é adequado afirmar que o Princípio Absoluto é existente. No primeiro caso, atribui-se uma falta, uma privação. No segundo, afirma-se uma perfeição. Porém, é uma perfeição limitada. Se é errado dizer que o Bem é inexistente (por se tratar de uma privação), por outro lado, é inadequado dizer que o Bem é existente (na medida limitada em que, por exemplo, uma maçã é existente).

Então, quando se afirma que o Bem é Não-Ser, o que se deseja expressar é a absoluta transcendência do Bem, e não a sua inexistência. Decerto o Bem existe, mas em uma razão tão transcendente que, de certo modo, seria mais correto dizer que o Bem é Não-Ser, a fim de que as limitações próprias dos seres não lhe sejam atribuídas. A negação aqui não tem o papel de indicar uma insuficiência ou uma ausência, mas, ao contrário, indica a absoluta transcendência com relação a todas as coisas, quaisquer que elas sejam.

O Bem dá origem a tudo e abraça tudo, das mais sublimes realidades até às mais humildes, como o Sol ilumina tudo o que alcança. Todos os entes existem por causa do Bem e, cada um a seu modo, deseja e busca o Bem. Os seres intelectuais, buscam por meio do intelecto, os seres irracionais buscam por sua vida, os seres inanimados buscam por sua mera existência. Em todos os casos, os entes existem por causa do Bem e permanecem na existência na medida em que estão "voltados" ao Bem.

Não é necessário entender isso em termos literais, como se uma pedra tivesse desejo tal qual um ser humano deseja algo. A pedra tem a sua existência graças ao Bem. De certa forma, ela "sai" do Bem para a existência. Mas a pedra não se torna ontologicamente autônoma, como se pudesse existir sem mais nenhuma relação com o Bem. Ela precisa estar continuamente sustentada na realidade pelo Bem, o que, em certo sentido, significa que a pedra está sempre "voltada" para o Bem. 

Analogamente, um objeto amarrado a uma corda presa no teto permanece suspenso somente pelo tempo em que a corda o sustenta. Ele está dependurado (pendendo de), isto é, dependendo da corda para permanecer suspenso. Nesse sentido, a dependência tem duas "direções": ela "desce" do teto até o objeto pela corda, e "sobe" do objeto até o teto pela corda. O teto sustenta o objeto de cima para baixo, mas o objeto precisa estar ligado ao teto pela corda para que esteja suspenso. Trata-se de um só e mesmo fenômeno enxergado de dois modos diferentes. 

No fundo, o que Dionísio deseja expressar é a absoluta dependência ontológica das coisas com relação ao Bem. Há como um circuito, a "saída" e o "retorno" simultâneos das coisas ao Bem. A existência das coisas jamais significa uma separação absoluta do Bem, uma vez que sua permanência na existência só pode se dar pela ação contínua do Bem. Semelhante ao movimento circular de um objeto que, embora distanciado do seu centro, jamais se separa totalmente do centro adquirindo uma trajetória independente.

O Bem é igualmente chamado de Beleza. O que poderia ser mais belo do que o Princípio de onde todos os entes provêm? Platão, no Timeu, afirma que tudo o que é um artista deriva de um modelo consistente é belo. A beleza do cosmos indica, então, a sua imitação de um modelo que é eternamente consistente. O Demiurgo, autor da ordenação do Cosmos, imita as Formas eternas, e dá existência às coisas. O Bem é o modelo ao qual todos os entes imitam, cada um na sua medida.

Ao fim e ao cabo, diz Dionísio, é o Bem, enquanto Belo, que "causa as harmonias, as simpatias e as comunidades de todas as coisas". O Belo reúne e ordena, mantém os entes na existência, é o fim (telos, τέλος) de tudo o que há e pode haver. Ele é paradigmático (πᾰρᾰδειγμᾰτῐκόν), o modelo de onde todas as coisas adquirem seus limites próprios. Dionísio ousadamente afirma que mesmo o Não-Ser é belo, quando se refere ao Bem enquanto princípio absolutamente transcendente.

O Belo é o poder harmonizador de todas as coisas, realiza a coordenação universal, reúne por ligações eternas as misturas dos elementos. Proclo, comentando o Timeu, afirma que Atena possui um aspecto filosófico e um aspecto filopolêmico. Pelo aspecto filosófico, a deusa realiza a virtude, que está na ordem do formal. Pelo aspecto filopolêmico, ela realiza a harmonia entre os contrários no mundo. A polêmica (polemos, πόλεμος) é a guerra, a oposição sem conciliação. O Belo, tal qual Atena filopolêmica, é a conciliação daquilo que não estava unido e que não se manteria unido não fosse por sua ação.

...

Leia também: Νεκρομαντεῖον: Dionísio Areopagita (oleniski.blogspot.com)

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

Mário Ferreira dos Santos e a "A Sabedoria da Unidade" (capítulo II)

"Onde há propriedades de alguma coisa, há alguma coisa, onde há unidade há ser, onde há ser há unidade. Um ser, sem unidade, seria um ser que não é o que é. Nesse caso, seria nada."

MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS, "A Sabedoria da Unidade", p. 11

O filósofo brasileiro Mário Ferreira dos Santos, no início do capítulo II de sua obra matética "A Sabedoria da Unidade", retoma o que foi dito no capítulo precedente (Νεκρομαντεῖον: Mário Ferreira dos Santos e a "A Sabedoria da Unidade" (capítulo I) (oleniski.blogspot.com), afirmando que não se pode confundir os diversos logoi da unidade. O logos da unidade em geral (de toda e qualquer unidade) não pode ser confundido com o logos desta unidade (uma maçã, por exemplo), que é um composto (synolon, σύνολο) de uma estrutura eidética (eidos, εἶδος, Forma) e de uma estrutura hilética (hylé, ὕλη, matéria), e nem confundido com a tensão como esforço de coerência entre as partes de um Todo.

Logos da unidade ≠ Logos desta unidade (composto de estrutura eidética e estrutura hilética)  Logos tensional (esforço real de coerência)

Todos esses logoi residem no Ser, e este é a atualidade (Ato, aquilo que é) sem deficiência, o Ser Supremo. Não pode haver outro princípio supremo que o Ser, pois tudo o que é, foi ou pode ser reside e tem sua origem no ato de Ser. O Ser é a absoluta simplicidade, dado que tudo o que é múltiplo tem ser, tem realidade. Mas o múltiplo pode se dissociar e se decompor, contudo permanecendo as partes que o compunham como entes no Ser. Assim, para que multiplicidade exista, é preciso que as partes, estando associadas ou dissociadas, tenham realidade, façam parte do Ser.

O Ser não se multiplica, como se fosse cortado como um bolo em que os pedaços cortados diminuem a quantidade do bolo restante. Ao contrário, a presença do Ser não é quantitativa. Todo o ser que existe, que possui alguma realidade, possui em si mesmo o Ser na sua integralidade como seu fundamento. Da mesma forma, se o Ser está presente em tudo de modo absoluto e simples, não divisões internas no Ser, nem passagem temporal. Ao contrário, são as coisas, ao durarem, ao permanecerem no Ser, que estão no tempo.

O Ser não sofre mutações ou mudanças, pois como mudaria para algo que não fosse o próprio Ser? Mudaria para o Nada? Mas, o Nada não existe, e nem pode existir, uma vez que o Nada é a absoluta ausência de Ser, seja potencial ou atual.*

Os logoi são reais, não são invenções da mente humana. Contrariamente aos nominalistas, que restringem os universais à representações mentais, o realismo moderado, que Mário Ferreira esposa, afirma que há um fundamento in re (nas coisas) para os conceitos que concebemos. Se não houvesse esse fundamento, os conceitos seriam meras ficções. E se os conceitos possuem fundamento in re, apontam para alguma positividade, para algo que é um alius (outro), para uma presença que, por conseguinte, nega a ausência de realidade.

A unidade, diz Mário Ferreira, é clusa (do latim, claudo, tapar, fechar, encerrar), pois ela fecha algo, inclui nela o que é a coisa e exclui aquilo que não é (inclusão e exclusão). Em outros termos, a unidade fecha em si mesma tudo aquilo que é real sobre algo, e, consequentemente, expulsa de si, como o outro (aliud), tudo o que não pertence à sua clausura. Aquilo que a unidade inclui pertence à ela in se, o que implica que não haja divisão interna à unidade.

O que a unidade inclui é idêntico (idem, no latim; autos, no grego) à ela mesma, e é outro (alter, no latim; allós, no grego) para tudo aquilo que lhe for diferente. Toda unidade, com relação a uma unidade diferente dela, é outra que outra, isto é, não pode ser idêntica a qualquer outra, sendo por isso sempre a outra de uma outra unidade.

Tudo aquilo que possui alguma positividade, tem algum ser, tem alguma realidade. E, sendo algo positivo, pelo ato mesmo de ser algo real, exclui de si todas as outras possibilidades de ser. Algo que é X, no ato mesmo de ser X, nega todas as possibilidades de Não-X, sejam elas A, B, C, D, etc. Tudo o que não seja X, será diferente de X, será outro que X. 

Só se pode captar aquilo que possui alguma realidade, alguma positividade. A ausência de uma positividade é o não-ser, e este não pode ser captado, dado que não possui em si nenhuma positividade. Quando tratamos de uma ausência, não captamos algo, só fazemos referência à falta de algo. Assim, é somente por referência ao positivo que podemos nos referir ao não-positivo, ao negativo, ao que não é, ao que não existe.

A divisão ocorre justamente quando há ausência de uma positividade em que está presente em Y. Por exemplo, basta que percebamos que uma maçã é colorida para sabermos que ela é diferente de um conceito, que não possui cor. Ambos possuem positividade, cada um a seu modo, mas o que está presente em um e ausente no outro é o que os torna diferentes. Só posso distinguir as coisas se encontro nelas alguma diferença, alguma positividade que está presente em uma e não na outra.

"O que é um é outro que outro, e o mesmo que si mesmo", afirma o filósofo brasileiro. É preciso ver na fraseologia de Mário Ferreira, que parece somente reafirmar coisas que são óbvias, o esforço de esclarecer, dentro do âmbito da linguagem, o que está no fundamento da própria linguagem. Não à toa, por ser um esforço de reconhecer e de apresentar os fundamentos da realidade, a linguagem parece dar voltas em torno de si, tentando morder a própria cauda como uma serpente.

Em certo sentido, a identidade é indizível, e todo esforço de dizê-la esbarra em dificuldades imensas. A identidade é tão fundamental que não conseguimos representá-la a não ser pela linguagem do múltiplo. Representamos a identidade pela fórmula lógica A=A. Ocorre que, ao igualarmos um A a outro A, querendo representar a identidade, fazemos uso da diferença. Não obstante, ninguém consegue realmente negar a realidade fundamental da identidade, isto é, o ser isso que se é e não outra coisa.

Como a linguagem depende do Ser e o Ser é unidade, não é de se surpreender que aquilo que é derivado seja, em alguma medida, incapaz de expressar o seu próprio fundamento. Mário Ferreira quer expressar aqui o caráter absolutamente fundamental da unidade. Não é o um que nasce do múltiplo. É o múltiplo que, ontológica e logicamente, é subordinado ao um. 

A unidade é também uma estrutura, ou, como Mário Ferreira denomina, uma tectônica. A razão disso já foi exposta anteriormente. A unidade pode ser composta interiormente, isto é, compreender em si um conjunto de positividades, ou pode ser absolutamente simples. A unidade absolutamente simples corresponde ao Ser, cuja simplicidade decorre do fato de que nada há que seja oposto ao Ser, ou diferente dele, enquanto fundamento de tudo o que é e pode ser.

A unidade é composta interiormente quando reúne em si as positividades essenciais de um certo ente. Toda maçã possui as mesmas características (cor, cheiro, tamanho, sabor, etc.) que, embora sejam diferentes entre si, compõem uma unidade que é mais do que a soma dessas características, e se constitui em um Todo. Embora múltiplo internamente, o Todo é Um, uma unidade indivisa, invariável e coerente. 

Mário Ferreira mostra que há aqui cinco esquemas fundamentais:

1) Ser, que é positividade, afirmação positiva;

2) Não-ser, recusa de positividade, negação;

3) Unidade, que é indiviso in se e divido ab alio, isto é, indiviso em si e distinto de outro;

4) Divisão idem et alter, o si mesmo e o outro;

5) Multiplicidade, que é o outro que outro.

Note-se como esses esquemas se encadeiam do fundamental até o fundamentado. Em primeiro lugar, há que haver a positividade. Algo deve ter presença, ou, de acordo com o que o princípio da Filosofia Concreta afirma, algo há. A primeira evidência insofismável é que alguma coisa existe. Seja o que for essa coisa que existe, ao existir, afirma-se a si mesma, e, por isso mesmo, nega tudo o que não é ela ou poderia não ser ela. Desse modo, ao ser X, exclui-se ontológica e logicamente tudo o que é não ser X.

Não ser X é negar a positividade de X, ou seja, significa não possuir em si mesmo todas as positividades que caracterizam X. Nada impede que haja coincidência parcial, que um não-X possua algumas das positividades de X. Mas pelo próprio fato de que não há coincidência total, algo está ausente em não-X que está presente em X. 

Havendo X, afirma-se uma unidade, e é enquanto unidade que X se distingue de não-X. Considerado como um Todo, X é indiviso em si. Sendo indiviso como uma unidade de composição, X necessariamente está dividido (é diferente) de toda outra unidade de composição que não seja X. Ele é idem para si e alter para outro. A multiplicidade, portanto, só pode ter o seu fundamento na unidade, dado que aquilo que é positivo em uma unidade e que está ausente em outra é que determina a divisão.

Toda divisão está ligada ao não-ser relativo, ou seja, ao fato de que toda ausência é relativa a uma positividade. A unidade, contudo, pode ser absoluta, uma vez que o Ser é a unidade simples que reúne em si toda e qualquer positividade sem nenhuma diferença.

 ...

* Para uma discussão mais detalhada da unidade absoluta do Ser, recomenda-se a leitura das obras "Filosofia Concreta" e "Filosofia da Crise". 

 ...

Leia também:

Νεκρομαντεῖον: Sabedoria da Unidade (oleniski.blogspot.com)

Νεκρομαντεῖον: Mário Ferreira dos Santos (oleniski.blogspot.com)

sábado, 10 de fevereiro de 2024

Aristóteles, Física e o conceito de natureza

"Seria absurdo tentar provar que a natureza existe, pois é evidente que há muitas coisas desse gênero. E provar o que é evidente por meio do inevidente é a marca do homem incapaz de distinguir o que é certo daquilo que é incerto."

ARISTÓTELES, Física, livro II, parte 1, 193a

No âmbito da Física, das coisas que existem, algumas existem por natureza e algumas por outras causas. Aristóteles, já no início do livro II, apresenta sua distinção fundamental entre aquilo que é natural e aquilo que é artificial. Entes que existem por natureza, são, por exemplo, os animais as plantas e os corpos simples (terra, fogo, ar e água). O que reúne todos esses entes é o fato de eles possuem "dentro de si" o princípio de suas mudanças e de seu repouso (local, de crescimento, decréscimo ou alteração).

O animal move a si mesmo, a planta cresce por si mesma, o fogo se dirige para o alto, assim como a terra se dirige para baixo. Em todos esses casos, não há nenhuma interferência externa para que essas operações aconteçam. Elas nascem, por assim dizer, "de dentro" desses entes sem que nenhuma ajuda exterior seja necessária. Isso significa que as operações de um ser natural se devem exclusivamente a tendências intrínsecas àquele ser, e que variam segundo o tipo de ser que ele é.

As chamas do fogo, não havendo obstáculos, sempre sobem. Uma pedra, se retirada do chão e depois deixada a si mesma, desce na direção do solo. As plantas crescem e se nutrem. O animal, além de crescer e se nutrir, também se locomove e possui apetite. Todas essas operações acontecem como manifestação de uma tendência que é interior a esses entes. Nenhuma delas é produto da ação causal de um ser externo agindo sobre eles.

O traço definidor daquilo que é natural é justamente esse caráter intrínseco das operações típicas dos entes naturais. Em outro sentido, a natureza de um ser define o conjunto de potencialidades que ele possui simplesmente por ser aquele tipo de ser. A planta possui um conjunto definido de características que lhe pertencem simplesmente por ser planta. Ela só pode realizar aquilo que está contido na sua natureza. A planta pode crescer, mas não pode voar.

A natureza, então, é "a fonte ou a causa de ser movido e de estar em repouso naquilo que pertence a ele primariamente, em virtude de si mesmo e não em virtude de um atributo concomitante". O ente natural tem em si mesmo, não em outro, o poder de mudar. Uma mesa, au contraire, não possui o poder de mudar por si mesma. Aliás, o seu próprio vir a ser, isto é, sua vinda à realidade, se dá justamente pela ação transitiva de uma causa que lhe é externa, o carpinteiro, que junta partes materiais independentes segundo um plano ou uma ideia que é externa e sem relação com o material empregado. 

Obviamente, as coisas naturais também possuem causas externas. Um animal só vem à realidade pela ação causal de seus progenitores. O fogo tem que ser aceso por alguém ou por algo. O ponto de distinção entre o natural e o artificial reside na espontaneidade intrínseca e regular da mudanças que o ser natural apresenta. A distinção não está em ter ou não uma causa para a sua existência, mas, sim, no tipo de ser que o ente natural é.

Aristóteles acrescenta que o ser natural é uma substância (οὐσία), aquilo que, groso modo, existe por si mesmo e não em outro. O ser natural possui nele mesmo o seu "princípio ordenador", que define o tipo de ser que ele é. A natureza, consequentemente, além de ser um princípio intrínseco, define o que é a coisa. Por isso, perguntar sobre a natureza de algo é perguntar o que é a coisa. Saber o que é uma coisa é saber um conjunto essencial de características fixas que são intrínsecas a essa coisa e que permitem identificar ou antecipar as capacidades e as incapacidades que se seguem desse conjunto.

Em seguida, o filósofo macedônio afirma que o termo "de acordo com a natureza" é aplicado a todas as coisas e atributos que pertençam a elas em virtude do que elas são. Por exemplo, a propriedade das chamas do fogo de subir em direção ao céu é algo de acordo com a natureza, pois é intrínseca ao fogo, sendo uma de suas características típicas. 

Note-se que uma cadeira também é definida por um determinado "princípio ordenador" que a define como uma cadeira. O ponto é que, antes de ser uma cadeira, havia uma matéria (seja ela qual for) que, por si mesma, não tinha a característica de ser cadeira. Um pedaço de madeira, sendo algo natural, tem as propriedades típicas de toda e qualquer porção de madeira. Mas nenhum pedaço de madeira tem a capacidade de se tornar uma cadeira exclusivamente por seus meios

Enquanto madeira, tornar-se uma cadeira por si mesma não está entre as suas capacidades naturais. Decerto, a madeira possui a potencialidade de ser moldada como uma cadeira. Existe nela uma moldabilidade natural que permite que certas mudanças (algumas, não todas) sejam realizadas nela por um agente externo. Mas ela, sozinha, espontaneamente e de forma regular, jamais se torna uma cadeira. O ato de ser uma cadeira é imposto na madeira por um agente externo, fazendo-a assumir uma forma que ela jamais assumiria por sua própria capacidade.

Um embrião humano, apesar de ter tido causas externas (seus pais), desenvolve-se completamente independente de seus progenitores na direção fixa e regular de um ser humano completo. As mudanças que sofre são internas, são diferenciações que acontecem dentro do organismo segundo um princípio ordenador que lhe é intrínseco, e que manifesta o tipo de ser que ele é. O desenvolvimento de um feto humano difere do de um feto de pato. 

Em ambos os casos, contudo, o que se está formando não é fruto da imposição externa de uma forma à uma matéria que, por si mesma, não teria aquela forma imposta de fora. A cadeira é o produto da junção de partes materiais já existentes e que são unidas segundo o plano de um agente exterior. O embrião se desenvolve pela diferenciação interna dos órgãos que se formam espontaneamente segundo um plano que é intrínseco ao próprio embrião, e que manifesta assim a sua natureza.

É inegável que existam naturezas, afirma Aristóteles. Seria absurdo tentar provar o que é evidente, e quem exige uma prova desse tipo de coisa não sabe distinguir entre o que é evidente e o que não é. Um homem cego pode muito bem falar sobre cores como quem fala sobre palavras sem conhecer o seu significado. Ninguém pode consistentemente negar a existência de naturezas. Basta olhar para o mundo para se ter a certeza de que há coisas naturais.

Alguns pontos podem ser salientados nesse ponto. O primeiro e óbvio é que Aristóteles não está afirmando que tudo é natural. Basta que haja alguma coisa natural para que a sua afirmação seja verdadeira. O segundo ponto é que, para o físico, cujo objeto de estudo é o natural, não pode haver dúvida de que existem entes naturais. Uma ciência, qualquer que ela seja, tem como primeira exigência a identificação da existência de seu objeto de estudo. Se não houvesse natureza, não haveria Física como uma ciência.

O terceiro é que a existência de naturezas é evidente pela experiência (ἐμπειρία, empeiria), isto é, é um fato empírico. Negar as naturezas seria negar a experiência direta do mundo e de nós mesmos. Ninguém em sã consciência espera que a água na panela congele sob o fogo ou que do embrião humano resulte uma girafa. É fato que os resultados esperados naturalmente nem sempre acontecem por conta da ação de fatores intervenientes. O embrião de um gato, por diversos motivos, pode se desenvolver insuficientemente ou defeituosamente.

Perceba-se, no entanto, que só conhecemos o insuficiente, o defeituoso, o imperfeito e a exceção graças ao conhecimento prévio do comportamento regular. Em si mesma, a exceção não pode ser conhecida a não ser pelo conhecimento prévio da regra, isto é, ela supõe a regra. 

O fundamento primeiro da Física como ciência (e de todas as ciências naturais), é a existência daquilo que é natural, que, como Aristóteles aponta, "acontece sempre ou na maior parte das vezes". Negar a existência da natureza é negar a possibilidade da própria ciência. Como pode haver ciência deste mundo sensível e empírico se não houver a mínima ordem, a mínima previsibilidade? A existência das naturezas não é uma descoberta da ciência, mas é seu pressuposto mais básico. 

Recordando a definição de Aristóteles, ciência (epistēmē, ἐπιστήμη), é tudo aquilo que se deriva a partir de princípios (que não são, eles mesmos, derivados de outros princípios). Cada ciência tem seu objeto de estudo, e, portanto, tem seus princípios próprios correspondentes a seu objeto. Contudo, o princípio de toda e qualquer ciência empírica é o reconhecimento da existência das naturezas. Uma ciência não pode provar a existência de seu objeto de estudo, ela reconhece como evidente a sua existência.

Um físico não pode provar, com os meios da Física, que as coisas têm naturezas. Seria como alguém querendo sair da água puxando os próprios cabelos. A Física só pode se instalar como ciência no reconhecimento prévio da existência de seu objeto de estudo: a natureza. Precedendo o trabalho científico está a evidência empírica direta e inegável do seu objeto. 

Portanto, a regularidade natural é o princípio indemonstrável a partir do qual toda a ciência física vai ser erigida. "Indemonstrável", no presente contexto, significa aquilo que não necessita de demonstração ou de prova por ser sabidamente verdadeiro ou autoevidente. Negar a natureza seria negar a previsibilidade dentro do mundo. Não somente das coisas exteriores, mas também de nós mesmos. 

Imaginar que as maçãs podem amanhã não ser mais doces não parece ser tão problemático. Outra coisa bem diferente é imaginar que todos os comportamentos regulares de todas as coisas naturais podem amanhã mudar, e depois disso mudar de novo incessantemente. Negar a regularidade natural é negar qualquer previsibilidade, inclusive a de nosso corpo. Se não há regularidade, então nada impede que no próximo segundo meu próprio cérebro deixe de funcionar como tem funcionado até hoje.

Eis um ponto interessante, pois a conditio sine qua non das ciências naturais, quaisquer que elas sejam, é o reconhecimento da existência daquilo que é extra-científico, isto é, do que está fora do âmbito da própria ciência. Nenhum cientista pode provar, com os dados e os métodos de sua ciência, que haverá sempre uma regularidade natural. Ou bem isso é assumido como verdadeiro ou bem não há ciência empírica. 

Se a existência de naturezas for assumida como uma hipótese, então, logicamente, tudo o que a ciência diz sobre o mundo será meramente hipotético. Entretanto, dessa forma, seria impossível explicar por qual razão as coisas naturais se comportam de modo regular. Se não há nada que seja intrinsecamente regular, nenhuma explicação será possível para nada no mundo, dado que explicar algo cientificamente é identificar as suas causas. E causas irregulares não explicam cientificamente nada.

Mesmo David Hume, do alto de seu ceticismo acerca da regularidade natural, foi incapaz de encontrar outra explicação para a nossa tendência de esperar regularidade no comportamento das coisas que não fosse algo também regular, a saber, o hábito. Se é o hábito que explica que nós sempre esperamos regularidade no comportamento das coisas, então essa explicação repousa sobre a suposição do efeito regular do próprio hábito como uma tendência natural de formar certas convicções. A explicação supõe exatamente aquilo que ela deveria explicar.

Aristóteles segue a sua exposição asseverando que alguns identificaram a natureza ou a substância de um ente natural com o seu constituinte imediato. Por exemplo, o bronze seria a natureza da estátua e a madeira a natureza da cama. A favor dessa visão, Antífon observava que se alguém enterrasse uma cama de madeira, e se algo dela viesse a nascer, seria uma árvore e não uma cama. O que mostraria que o arranjo feito pelo artista seria meramente acidental, enquanto a madeira, a sua natureza, seria o elemento permanente.

Dessa forma, alguns defenderam que o constituinte material é a natureza da coisa. Os primeiros físicos identificaram a natureza com a matéria da qual todas as coisas seriam feitas. Aristóteles refere-se à tradição pré-socrática de identificar a physis, a natureza, com algum elemento primordial (terra, água, ar, átomos, etc.) e encarar todas as coisas que se apresentam aos nossos sentidos como modificações e estados desse elemento primordial.

Poderíamos denominar esse gênero de explicação de materialismo, uma vez que toda a diversidade e todas as operações das coisas dentro do mundo seriam derivadas da matéria da qual elas são feitas. O que equivale a dizer, o fim e ao cabo, que todas as coisas que testemunhamos (e nós mesmos) não são nada mais do que o material do qual são constituídas (seja esse material qual for). 

Não é difícil reconhecer aqui uma tendência bastante presente na ciência moderna, qual seja, a tentativa de explicar a realidade física pela mera interação das porções de matéria de acordo com suas propriedades básicas. A concepção do que é a matéria pode variar (corpúsculos, pura extensão, etc.), mas a ideia geral é a mesma: tudo o que se pode conhecer e tudo o que é necessário para explicar os fenômenos naturais reside nas propriedades básicas da matéria.

A questão, contudo, é saber o que é mais primordial para a coisa ser o que ela é. O que faz com que uma coisa seja uma cadeira? Acaso é o fato de ser feita de madeira? Fosse assim, não haveria distinção real entre um armário, uma mesa e uma cadeira feitos de madeira. Que isso é absurdo ninguém duvida. Uma cadeira é realmente distinta de uma mesa, ainda que ambas sejam feitas de madeira. Mais do que isso, aquilo que explica o que é uma cadeira não é o seu material, pois é fato que ela pode ser feita de vários materiais: plástico, metal, etc.

A distinção entre uma mesa e uma cadeira não está em nenhuma qualidade ou propriedade da madeira, do plástico ou do metal do qual elas são feitas. Assim como a estátua não pode ser explicada por qualquer característica do bronze do qual ela é feita. Um Apolo não pode ser reduzido a quaisquer das propriedades do bronze do qual foi feito. É claro que o material pode ser adequado ou inadequado para produzir a estátua, mas isso explicaria somente a razão pela qual foi utilizado este material e não aquele para a sua produção.

Vê-se que, ainda que se trate de artefatos (objetos que devem sua existência ao desígnio de um artífice), o elemento que determina o que a coisa é não reside na matéria da qual ela é feita. O que distingue uma cadeira de uma mesa é o tipo de coisa que ela é, e não aquilo do qual é constituída. Isso não significa que o elemento material seja desimportante ou dispensável. Significa apenas que aquilo que torna uma coisa o que ela é, a sua substância, não se encontra na matéria.

A tentação de explicar tudo pela matéria constituinte das coisas decorre da percepção errônea daquilo que são as coisas primordialmente. Se é inegável que a matéria é um elemento indispensável para a explicação de diversos aspectos das coisas deste mundo, é igualmente verdade que ela é incapaz de explicar tudo o que essas coisas são. Ou melhor, a matéria é insuficiente para explicar o que são essas coisas. A pergunta "o que é isso?" não é respondida pela indicação do material do qual as coisas são constituídas.

Então, qual é o elemento que explica o que são as coisas? Se tomamos uma cadeira, o que explica o fato de que se trata de uma cadeira é o seu princípio de ordenação que foi imposto à matéria por um artífice consciente. É o elemento formal, isto é, a Forma (εἶδος, eidos, em grego) que torna a coisa o que ela é. Uma cadeira tem uma Forma diferente de uma mesa, apesar de ambas serem feitas de madeira. É bom que se diga que Forma não se refere somente ao formato exterior da coisa, mas, primordialmente, à ordenação da coisa segundo uma regra.

No caso dos artefatos, a ordenação vem de fora, é extrínseca. Nos entes naturais, a ordenação vem de dentro, é intrínseca. Um cavalo, um ser humano e um pinguim são todos, no fim das contas, constituídos pelo mesmo tipo de matéria fundamental (ossos, músculos, sangue, ou algo ainda mais fundamental, seja o que for), mas o que os diferencia é o tipo de ser que cada um é. A distinção se encontra no âmbito formal, e é isso que determina a natureza de cada um deles.

Aristóteles conclui que a natureza está antes na Forma do que na matéria. O homem nasce do homem, mas a cama não nasce da cama. Isso se deve ao fato de que a cama é construída de fora por um artífice. A sua Forma não lhe é intrínseca, ela é imposta, implantada em uma matéria já existente. Já no ser humano, a Forma determina o que é o ser humano desde o seu início, intrinsecamente, de modo que a matéria e a Forma vêm unidas indissoluvelmente em uma única substância.

A natureza se manifesta no crescimento do ente natural. Aristóteles usa um exemplo curioso para distinguir esse desenvolvimento natural daquilo que é artificial. A arte da medicina conduz não a ela mesma, mas à saúde. Isto é, a arte da medicina, como qualquer arte, conduz a um objetivo distinto dela mesma. O médico não trata o paciente para alcançar a arte da medicina. O médico utiliza a medicina como meio para um fim outro, a saber, a reconstituição da saúde do paciente.

A arte se define como um raciocínio reto na produção de algo, um meio para alcançar um fim. A natureza, por outro lado, não persegue objetivos externos à ela mesma. O crescimento, ou desenvolvimento, de algo natural não tem um fim externo. O ente natural se desenvolve, por assim dizer, para se tornar o que ele é. Ou seja, ao se desenvolver, ou ao operar, o ente natural manifesta exatamente aquilo que ele é. 

O ato de desenvolvimento não se dá na direção da qual ele iniciou, mas sim na direção à qual a coisa tende. A planta, por exemplo, cresce e se desenvolve para se tornar plenamente uma planta. Todas as potencialidades que ela vai atualizando realizam o que significa ser uma planta. O objetivo final, se assim podemos dizer, é a própria planta, e não a produção de algo externo à ela (como na arte). A natureza constitui o que é a coisa, e por isso rege o seu desenvolvimento e as suas operações. A coisa natural tende a realizar a sua regra interna.

...

Leia também:

Νεκρομαντεῖον: Aristóteles (oleniski.blogspot.com)

terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

Huang Po, budismo, o ordinário e o extraordinário


"Ordinário e extraordinário são indistintos. Tudo é perfeito!"

SENGZHAO (384/414 D.C.)

O grande mestre budista Ch'an chinês do século IX D.C., Huang Po, exortava seus discípulos a distinguir o que era o espírito ordinário e o que era o espírito extraordinário. Vendo, porém, que estes não compreendiam suas palavras e que, com isso, tornavam o vazio algo concreto, o sábio insistia sobre o fato de que no momento que eles não tivessem mais "sentimentos ordinários sobre o extraordinário" não haveria mais Buddha a não ser em seus espíritos.

O problema era que os discípulos se apegavam aos conceitos mesmos de ordinário e de extraordinário, e, assim, afastavam-se cada vez mais do espírito. Em um só instante em que prevalecesse uma emoção, cairia o discípulo em um outro destino. Os aprendizes insistem querendo saber o princípio pelo qual desde sempre o espírito é o Buddha. E o mestre responde que não é nada que, ao buscá-lo, o buscador se distinga dele.

Mas, se não há distinção, por que o mestre usa a cópula "é"? Huang Po responde que se os discípulos não discriminam entre o ordinário e o extraordinário, quem usa a cópula? Quando tiverem os discípulos esquecido tudo o que concerne ao espírito, onde eles ainda o buscarão?

Huang Po parece brincar com o conceito de distinção do extraordinário e do ordinário, ora exortando os discípulos a realizarem essa distinção, ora criticando-os por realizarem essa distinção. O discurso do mestre, contudo, se encontra em dois níveis. No nível humano, ou melhor, no nível da realidade fenomênica, há diferença entre a experiência ordinária e a experiência extraordinária do Boddhisattva. Ninguém negaria que a experiência do Buddha Sakyamuni difere daquela do homem comum, submetido como está ao ciclo do Saṃsāra.

Não obstante, do "ponto de vista" do espírito puro (que não é um ponto de vista, posto que é absoluto), as distinções mesmas de ordinário e extraordinário perdem o seu sentido. Todavia, o apego a essas formas duais de pensamento, por válidas que sejam no plano fenomênico da experiência comum, entravam a verdadeira compreensão do espírito puro (que é o próprio Buddha, para além de toda e qualquer distinção). 

O espírito puro, nesse sentido, não é dizível dentro do vocabulário dual do mundo fenomênico. Sim, o espírito puro não é uma experiência ordinária, e, portanto, se distingue dela pelo seu caráter extraordinário. Mas ao chamar o espírito puro de "extraordinário", arriscamo-nos a torná-lo algo cuja estranheza depende dos parâmetros da experiência ordinária. Ou seja, se o ordinário é o mundo das coisas, o extraordinário será o mundo das coisas fora do comum, mas ainda assim no âmbito das coisas.

Por isso Huang Po acusa os discípulos de transformarem o vazio em "algo concreto", isto é, algo encontrável, semelhante a qualquer coisa da experiência ordinária. Os termos "ordinário" e "extraordinário" são inadequados para descrever o espírito puro justamente porque pertencem à experiência fenomênica. O "ordinário" é o comum, o que sempre acontece da mesma forma. O "extraordinário" é aquilo que foge à regra, o incomum, o que não acontece de modo regular.

O espírito puro, porém, não é "algo" e nem uma "coisa", seja ela comum ou incomum, ordinária ou extraordinária. Chamar o espírito puro de "extraordinário" é diminuí-lo, é transformá-lo em uma coisa entre outras coisas. Em uma linguagem filosófica, isso significa hipostasiar o que não é um ente de fato. Comumente, o ser humano hipostasia aquilo que não é realmente uma coisa. Por exemplo, quando trata como coisas conceitos abstratos (Nação, Estado, etc.). Nesses casos, dá-se substancialidade àquilo que não é substancial ou àquilo que só existe na dependência de algo substancial.

O problema é que o espírito puro não é algo que não seja real ou que dependa de algo real. Ao contrário, são as coisas reais que dele têm a sua existência. Desse modo, o espírito puro não pode ser considerado algo por estar abaixo da linha da realidade, mas, sim, por transcender infinitamente todas as coisas do mundo fenomênico. O Princípio não pode apresentar as limitações próprias daquilo do qual ele é o princípio.

No momento em que os discípulos tivessem abandonado todo "sentimento ordinário sobre o extraordinário", não haveria mais Buddha a não ser em seus espíritos, dizia Huang Po. No momento em que os discípulos ultrapassassem as dualidades do tipo ordinário/extraordinário, não haveria mais diferenças entre o Buddha e eles mesmos. Em outros termos, saberiam que, desde sempre e para sempre, sempre foram o Buddha, pois o Buddha é o espírito.

Ultrapassar o estado das distinções é realizar o estado búdico do qual estamos "separados" somente por ignorância. É realizar a absoluta equanimidade diante de todas as coisas. No entanto, sem apego, sem desprezo e sem negação. Nada é obstáculo se o espírito é livre. Por um lado, tudo é reunido no Buddha sem distinções de qualquer tipo. Por outro lado, nada se destaca como objeto de desejo ou de aversão. A mesma equanimidade do espírito puro que reúne em si todas as coisas distintas. também torna-as todas um vazio indistinto.

Se em um só instante alguma emoção prevalecesse, diz Huang Po, o discípulo cairia em outro destino. Se uma só coisa se tornasse objeto de atenção especial, de desejo ou de aversão, o discípulo sairia do espírito búdico da unidade absoluta e retornaria ao mundo fenomênico da distinção e das dualidades. Não são duas realidades (o espírito búdico de um lado e o mundo fenomênico do outro), mas uma só e idêntica realidade que só se manifesta em termos de separação por conta da ignorância que nasce do apego a este ou àquele ente ou estado de espírito.

No limite, até os meios de transmissão e de ensino empregados pelos mestres podem se converter em obstáculos à iluminação. As respostas de Huang Po, do modo como são filtradas pelos anseios e apegos dos discípulos, longe de esclarecerem o caminho, tornam-se fins em si mesmos, ocasiões para a mente se entreter como novos objetos de atenção. Tal qual um prisioneiro que, de posse da chave da porta de sua cela, em vez de abrí-la, se dedica a estudar a chave e suas relações com a fechadura.

O espírito puro não é algo que, ao buscá-lo, o buscador dele se distinga, ensina Huang Po. Aquele que busca algo é diferente daquilo que ele busca. A unidade fundamental do Buddha não pode ser algo que se busca. Não há, tampouco, qualquer relação "X é Y", na qual X é diferente de Y. Portanto, mesmo o uso da cópula "é" se deve aos limites intrínsecos de nossa linguagem. Se Huang Po usa a linguagem dual do mundo fenomênico, ele o faz somente para indicar aos discípulos a Via (道). 

É preciso que o discípulo não se apegue às limitações da linguagem, e enxergue a realidade suprema para além dos meios usuais de expressão. É a Lua que importa, não o dedo que para ela aponta. Fora do mundo fenomênico das distinções e das dualidades, não resta quem use a linguagem dual. Se os discípulos houvessem ultrapassado a distinção entre o ordinário e o extraordinário, não haveria sequer o mestre a quem fazer suas questões.

Aliás, não faria sentido sequer formular questões. Não há pergunta onde não há o "outro" que se desconhece. Só há o "mesmo", eternamente sem diferenças. Quando o discípulo esquecer do próprio espírito (com suas agitações, desejos e aversões), nada restará a ser buscado. Tudo estará ali porque tudo é desde sempre reunido no espírito búdico indiferenciadamente. E, ao fim, nada terá sido encontrado.

...

Leia também:

Νεκρομαντεῖον: Zen (oleniski.blogspot.com)

Νεκρομαντεῖον: budismo (oleniski.blogspot.com)

Νεκρομαντεῖον: filosofia oriental (oleniski.blogspot.com)

sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

Aristóteles, Física e o conceito de mudança


"Podemos definir a mudança como a atualização do móvel enquanto móvel, sendo a sua causa o contato com aquilo que pode mover."

ARISTÓTELES, Física, Livro  III, 202a [5]

No Livro III de sua Física, Aristóteles almeja elucidar o conceito capital de mudança (κίνησις). O objeto próprio da ciência física são os móveis, isto é, os entes capazes de mudança. Alguns desses entes são naturais, enquanto outros são artificiais. Os entes naturais são aqueles que possuem uma natureza, definida como "princípio de mudança e de repouso". Eles possuem intrinsecamente uma regra de mudança que determina o tipo de ser que eles são. O gato, por exemplo, é um ser natural porque tem em si mesmo um princípio que o diferencia de todos os outros seres, e que se manifesta no desenvolvimento típico do gato, com todas as suas potencialidades características, sejam ativas ou passivas. 

A natureza do gato, nesse sentido, é aquilo que ele é, e, por isso mesmo, não é algo que venha a ele de fora, como se fosse imposto por um ser externo e diferente dele. Ao contrário, o artefato, aquilo que é resultado da produção (ποίησις) e da arte (τέχνη), recebe do artista (extrinsecamente) a sua forma, aquilo que o define. A mesa não nasce naturalmente da madeira. O carpinteiro impõe a forma da mesa na madeira, tornando real uma das suas inúmeras potencialidades. 

Há quatro tipos de mudança: substancial (geração ou corrupção), quantitativa (aumento ou diminuição), qualitativa (perda ou aquisição de uma qualidade) e local (deslocamento de um lugar a outro). Por exemplo, João foi concebido por seus pais (geração substancial), cresceu até 1,70m (quantidade), tornou-se adulto (qualidade), mudou-se do Rio para São Paulo (mudança local) e faleceu (corrupção substancial). Todos esses tipos de mudanças podem acontecer em um mesmo ente material.

Diferentemente da física do século XVII, Aristóteles admite mais tipos de mudança do que somente o movimento local. Galileu, Descartes (principalmente) e, em certa medida, Newton, definiram a nova física que se circunscreve a descrever matematicamente aquilo que pode ser mensurado nos corpos, em especial as suas características geométricas. Por essa razão, como mostra o filósofo, físico, matemático e historiador da ciência Pierre Duhem, em seu texto L'Évolution des Théories Physiques, um conjunto amplo de fenômenos restou fora do âmbito das explicações físicas:

"O geômetra não conhece nos corpos senão uma única espécie de modificações, a mudança de figura e de posição no espaço, o movimento local. O físico concebe e analisa um movimento infinitamente mais geral que abraça, em suas diversas formas, toda sorte de mudança na substância e as qualidades dos corpos. Movimento, o movimento local pelo qual os corpos mudam de figura e de posição, mas também o movimento enquanto o ato pelo qual uma qualidade se torna mais ou menos intensa (...), o movimento como a operação pela qual as qualidades se transformam umas nas outras (..), o movimento como aparição e desaparição de uma qualidade (...), o movimento como a combinação que une os elementos simples para formar os mistos." * 

Ao reconhecer esses tipos de mudança, Aristóteles afirma que há algo em comum em todos eles. Resta agora definir o que é a mudança. A mudança só pode ser compreendida a partir de um par de conceitos que se referem a dois modos de toda a realidade: ενέργεια, "energia" (traduzido em Latim como actus, ato) e δύναμις, "dínamis" (traduzido em Latim como potentia, potência). A "energia" (en ergon, "em trabalho", "em exercício") é a realidade primordial, enquanto a "dínamis" só existe na "energia".

No mundo, ensina Aristóteles, existe aquilo que está efetivado (o que já está pronto, realizado), aquilo que está em potência (o que pode ou não se efetivar) e aquilo que existe como potencial e também como efetivo. É fácil compreender que existem coisas que já estão, por assim dizer, prontas. Por exemplo, um vaso que foi moldado pelo oleiro, quando finalizado, é um ente efetivo, e, por isso mesmo, já pode ser usado (pode operar) como um vaso. Do mesmo modo, um órgão no corpo de um animal (por exemplo, o coração), quando chega ao fim de sua formação, já pode operar e cumprir sua função dentro da estrutura do organismo. 

Por outro lado, é igualmente compreensível que há no mundo aquilo que é meramente potencial. O vaso, antes do oleiro moldar a massa, não é mais do que uma potencialidade daquela matéria. O órgão que ainda não se formou é apenas uma potencialidade dentro do organismo. Nada garante que necessariamente o vaso e o órgão efetivar-se-ão na realidade, mas eles só podem se efetivar justamente porque são potencialidades reais.

A mudança, entretanto, parece ser uma natureza intermediária, não estando totalmente nem do lado do realizado e nem do lado do potencial. Por definição, qualquer mudança tem o caráter de algo que está incompleto. Se alguém está indo de um ponto A ao ponto B, necessariamente ainda não está no ponto B. Porém, é igualmente verdade que, ao sair de A na direção de B, alguma extensão já foi percorrida. A mudança tem o caráter intermediário de algo que já alcançou alguma realidade, mas que ainda não se encerrou. 

Nesse sentido, o modo de existência das coisas deste mundo é sempre o de continuidade, ou seja, um interregno entre um início e um fim. Esse meio-termo entre o que é potencial e o que é efetivo mostra que, simultaneamente, há nas coisas algo que se realizou e algo que está por ser realizado. A mudança não é somente uma potencialidade e nem somente uma efetividade, é uma mescla entre esses dois pólos. A criança que se tornará um adulto passará por um processo de amadurecimento dentro do qual haverá um intervalo onde ela não será mais uma criança e nem será ainda um adulto. **

Portanto, a definição de mudança terá que expressar corretamente esse caráter de continuidade e de incompletude. Ninguém diz que algo que permanece o mesmo está em mudança, assim como ninguém diz que algo que chegou ao seu termo está em mudança. Alguém que permanece no ponto A não está em movimento. Alguém que chegou ao ponto B partindo de A não está em movimento. Só está em movimento quem já ultrapassou A e não chegou ainda em B. 

Aristóteles define a mudança como "a realização daquilo que existe potencialmente enquanto existe potencialmente". O aristotelismo medieval definirá a mudança como a "redução da potência ao ato enquanto potência". Descartes, no século XVII, sinceramente ou não, protestava contra a alegada obscuridade e incompreensibilidade dessa definição de mudança. No entanto, a obscuridade é aparente e se desfaz tão logo pensemos sobre a nossa experiência da mudança.

Segundo dito acima, a mudança não é inteiramente nem potência e nem ato, para utilizar a terminologia escolástica. O potencial não é ainda realidade, não é ser. O que é ato, aquilo que é efetivo e realizado, já é ser, uma realidade. A mudança está a meio caminho do não-ser e do ser. Parece algo fantasmagórico ou mesmo contraditório. Como algo pode a um só tempo existir e não existir? A resposta reside na identificação daquilo que na mudança existe e daquilo que nela não existe ainda. 

Obviamente, a mesma coisa não pode existir e não existir ao mesmo tempo e em um mesmo sentido. Ninguém pode estar e não estar no ponto A simultaneamente. Se algo sai do ponto A na direção do ponto B, não está mais em A, mas isso não significa que não esteja em lugar nenhum. Está em algum ponto entre A e B. Qualquer que seja esse ponto, ele é real, embora não seja B. Se o objetivo é chegar em B, então qualquer ponto diferente de A na direção de B será uma distância já percorrida. 

Como o objetivo é B, qualquer distância percorrida antes de B deixa uma outra distância ainda a ser percorrida. Então, existe uma extensão percorrida e uma extensão a percorrer. O que foi percorrido já é uma realidade, o que ainda será percorrido é uma potencialidade. Quando B tiver sido alcançado, não haverá mais mudança. Assim, a mudança é sempre uma potencialidade não completamente realizada, efetivada. 

Voltando à definição de Aristóteles, a mudança é "a realização daquilo que existe potencialmente enquanto existe potencialmente". Isto é, a mudança é uma potencialidade cuja realização não exauriu  a potencialidade. É uma potencialidade inesgotada, mas em vias de esgotar-se. Disso se segue que o término de uma mudança é o exaurimento de uma potencialidade. No ponto B, a mudança de A para B está encerrada. No ponto A, a mudança de A para B é apenas uma potencialidade. Em qualquer ponto entre A e B, a mudança é uma potencialidade ainda não completamente realizada.

Tomás de Aquino, comentando o texto aristotélico, refere-se à mudança como um "ato imperfeito" na medida em que ainda possui uma ordenação a um ato ulterior. Daí, "a mudança não é a potência daquilo que está em potência, nem o ato daquilo que existe em ato. Antes, a mudança é o ato daquilo que está em potência, tal que a sua ordenação à sua potência anterior é designada pelo que é chamado 'ato', e sua ordenação a um ato ulterior é designado pelo que é chamado de 'existindo em potência'". 

Note-se que a mudança, em certo sentido, já é uma realização, uma efetivação, um ato, daquilo que somente estava em potência. O termo "realização" traduz aqui ἐντελέχεια, "enteléquia", o termo utilizado por Aristóteles no texto original grego no sentido geral de algo que alcançou seu termo. Contudo, a mudança só é chamada "realização" (por Aristóteles) ou "ato" (por Tomás) para indicar que a mudança tem realidade somente com referência a um fim que ainda não foi alcançado. É por isso que Tomás pode falar de um "ato imperfeito".

A mudança é ato na medida em que algum estágio ou ponto já foi alcançado, e é imperfeita na medida em que o fim último ainda não foi realizado. A referência da mudança não é simplesmente o afastamento com relação a um ponto inicial. É preciso que esse afastamento seja considerado sob a ótica do fim ainda inalcançado. Certamente, esse fim não precisa necessariamente ser consciente e nem voluntário como é nos seres humanos e, em certa medida, nos outros animais. 

Processos naturais não são conscientes, mas exibem uma constância que manifesta uma tendência intrínseca ou inclinação a certos efeitos. O processo de crescimento de um filhote não é consciente, e mesmo assim exibe uma direção, um sentido, que é inegável. O crescimento das plantas é outro exemplo. Mesmo seres inanimados exibem tendências ou comportamentos constantes. O fogo sobe, queima, esquenta outros seres, etc. A teleologia é um aspecto essencial da ordem, e, em particular, da ordem natural. 

A mudança só é identificada na sua essência quando a realização de uma potencialidade não está completa. Será bom esclarecer que, em muitos casos, a potencialidade não é exaurida ou extinta. Se alguém pode sair do ponto A ao ponto B, nada impede que, chegando a B, retorne e refaça o mesmo caminho muitas vezes. Inúmeros outros processos, deliberados ou não, exibem esse padrão. 

Um ponto importante é que a mudança possui uma tendência a ir além do ponto já alcançado. Essa tendência é expressada na definição de Aristóteles justamente na ideia da realização da potencialidade enquanto ainda é potencialidade. Não se trata somente de uma potencialidade que ainda tem potencialidade a ser efetivada no sentido em que uma pessoa que sai do ponto A e estaciona no ponto B pode muito bem prosseguir posteriormente para o ponto C. Nesse caso, porém, são dois movimentos diferentes, duas potencialidades distintas que foram realizadas.

Testemunhar uma mudança na experiência concreta é perceber que o distanciamento de um marco inicial continua com o ganho de mais e mais posições ou estágios em sequência sem que se tenha alcançado algo que se possa identificar como um ponto chegada ou de repouso, seja ele predeterminado ou não. Em processos naturais regulares e em atos deliberados, o término ou o fim do movimento está decidido de início. Em outros casos, o término da mudança é dado por fatores externos e circunstanciais (p.ex. uma pedra cujo rolamento é parado pelos acidentes de um terreno). 

Aristóteles, em seguida, propõe que a mudança é a realização daquilo que é potencial naquilo que já é totalmente real, e não opera como ele mesmo, mas como móvel. De novo, a definição pode parecer obscura, mas o exemplo dado pelo filósofo esclarece seu sentido. O bronze tem como uma de suas potencialidades se tornar uma estátua. Contudo, a mudança não é a realização do bronze enquanto bronze. Isto é, o bronze é o material no qual pode se dar a mudança que tornará real uma estátua.

Assim, como diz a definição, a mudança será a realização (atualização, efetivação) daquilo que é potencial (a estátua) naquilo que já é real (o bronze), e que não opera como ele mesmo (como bronze), mas como móvel (como um ente capaz de mudança). Não é o bronze tomado como bronze, mas, sim, o bronze tomado como móvel, como algo moldável, que será o material no qual vai acontecer a atualização da potencialidade de se tornar uma estátua.

A distinção aristotélica é sutil e aponta para a diferença que há entre ser algo e ser uma potencialidade. O bronze é o que ele é, tem uma natureza que lhe é própria. A realização do bronze, o ser do bronze é ser plenamente o que ele é. Nisso não há mudança. Aquilo que é X, pelo fato de ser X, exibe as características essenciais de X, quaisquer que elas sejam. Não há diferença entre ser X e possuir a natureza daquilo que é X. 

Não obstante, existe diferença entre ser bronze e ser uma determinada potencialidade. Se o bronze possui um conjunto definido de características que o tornam bronze, isso não significa que essas características sejam idênticas a ser bronze. Por exemplo, faz parte da natureza do bronze ser maleável o suficiente para ser moldado. Mas ser moldável não é a mesma coisa que ser bronze, ainda que para ser bronze a coisa deva ser moldável. É fácil perceber a diferença quando lembramos que vários outros materiais são moldáveis sem serem bronze (madeira, por exemplo).

Então, a mudança não é a atualização do ser bronze, mas a atualização do moldável no bronze. Não faz sentido que o bronze mude para se tornar bronze, pois ele já é bronze. Não faz sentido atualizar aquilo que já está atualizado. Só é possível atualizar aquilo que é uma potencialidade. A mudança, portanto, não é a atualização do bronze, dado que ele já é bronze. É a atualização do moldável enquanto uma potencialidade presente no bronze.

O mesmo vale para "cor" e "visível". A cor possui visibilidade, mas visibilidade não é a mesma coisa que cor. Aristóteles afirma, então, que a mudança é a realização da potencialidade enquanto potencialidade. A atualização daquilo que é moldável não é a estátua já moldada. A atualização do moldável é o moldável enquanto está sendo moldado. A estátua moldada não é mais moldável. A estátua sendo moldada é a realização do moldável enquanto potencialidade. 

Aristóteles admite a dificuldade de se conceituar a mudança. Ela não é uma simples atualidade e nem uma simples potencialidade. Seria impossível negar a sua realidade, contudo. A questão é saber que realidade possui a mudança. Não é a realidade de algo já constituído, pronto, realizado, substancial. Tampouco é a realidade tênue da potência como mera capacidade para fazer ou para ser algo. A mudança está entre o potencial e o atual como uma atualização imperfeita. É a atualização progressiva de uma potencialidade.

Ora, a mudança só se dá pela ação do motor, isto é, daquilo ou daquele que possui a potencialidade de mover. Assim, quando o motor age e faz o móvel se mover, ao mesmo tempo, a potencialidade do motor e a potencialidade do móvel são igualmente atualizadas. O agente da mudança, ao agir, atualiza tanto a sua própria potencialidade de ação quanto a potencialidade de receber a ação da coisa sobre a qual ele age.

Por exemplo, o oleiro que molda a massa para fazer um vaso está atualizando a sua capacidade de oleiro agindo sobre a massa, e, ao mesmo tempo, atualizando a potencialidade da massa de ser moldada. Não são dois eventos o oleiro agindo e o vaso sendo feito. É um só e mesmo evento visto de dois ângulos diferentes, porém complementares. O agente só pode agir naquilo que tem a potencialidade de sofrer a sua ação. Aquilo que pode sofrer ação só pode atualizar essa sua potencialidade pela ação de um ente que tenha a capacidade de agir. 

A mudança, então, é uma atualização dupla. O agente atualiza a sua capacidade de agir enquanto atualiza a potencialidade passiva daquilo que sofre a sua ação. Nada há de absurdo nisso. O professor ensina, e a atualização de sua capacidade de ensinar se dá justamente em outro, a saber, o aluno que recebe a lição ministrada. O aluno, por seu turno, tem a potencialidade de aprender, e só aprende quando o professor ensina, ou seja, quando o professor atualiza a sua capacidade de ensinar. 

Enquanto está ensinando, o professor atualiza concomitantemente a sua potencialidade e a de seu aluno. A mudança se dá tanto no professor quanto no aluno, embora sob ângulos diferentes. Percebe-se que o mundo da Física é o mundo do encontro de capacidades e de potencialidades. Nada pode agir a não ser que tenha a capacidade prévia de agir. Nada pode sofrer ação se não possuir previamente a potencialidade de receber a ação. A todo agente que age corresponde um paciente que sofre a sua ação. 

Dito de outro modo, nem sempre existe em outro ente a passividade sobre a qual o agente possa agir, mas toda vez que o agente age, ele o faz sobre um ente capaz de receber a ação. O fogo só pode queimar aquilo que é queimável. O professor não pode ensinar nada aos muros da escola, somente aos alunos. O pássaro que pousa sobre um galho o faz se inclinar para baixo com seu peso porque o galho tem essa potencialidade. 

Ensinar não é o mesmo que aprender, porém há uma só e mesma mudança na qual as duas potencialidades se realizam. Todavia, a "atualização de X em Y" não é a mesma coisa que a "atualização de Y por meio da ação de X". Elas diferem em definição, pois em um caso há ação e no outro há passividade. A mudança reúne esses dois aspectos necessários e complementares em um único processo.

...

*A tese de Duhem é que esses aspectos qualitativos do mundo físico, após as tentativas mecanicistas e dinamistas, são finalmente reconhecidos e estudados pela física moderna na termodinâmica. 

** É desnecessário apontar os limites exatos onde termina a infância e onde começa a vida adulta. Aristóteles dizia, com razão, que não é preciso buscar exatidão naquilo que não é exato. 

...

Leia também: 

Νεκρομαντεῖον: Aristóteles (oleniski.blogspot.com)

quinta-feira, 11 de janeiro de 2024

Mário Ferreira dos Santos e a "A Sabedoria da Unidade" (capítulo I)

"É verdade que não é possível dar-se um ontos qualquer, sem que ele tenha unidade. Percebemos que a lei da unidade rege as coisas, de modo que todas dependem dela, porque só se dão quando são também unidades, de maneira que esta é pertencente, portanto, àqueles logoi arkhai, de que falavam os pitagóricos; ou seja, uma lei, que constitui o princípio da coisa."

MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS, A Sabedoria da Unidade, p.5 (itálicos no original)

O filósofo brasileiro Mário Ferreira dos Santos, em seu livro A Sabedoria da Unidade, parte integrante da Matese (cujo primeiro volume, A Sabedoria dos Princípios, apresentamos anteriormente: Νεκρομαντεῖον: Sabedoria dos Princípios (oleniski.blogspot.com)), dedica suas reflexões ao tema fundamental da unidade. Tudo aquilo que é uno depende do logos da unidade, isto é, há uma estrutura eidética, formal e principial, que funda a realidade da unidade.

O logos da unidade pode ser acidental ou substancial. No primeiro caso, corresponde aos artefatos, os entes que são produzidos ou construídos pela organização de partes preexistentes segundo um padrão imposto extrinsecamente pelo produtor. Por exemplo, uma mesa de madeira é o produto da imposição do padrão "mesa" a um ente que já existia, a madeira. Esta não se tornaria uma mesa por si mesma, de modo espontâneo. Ao contrário disso, o ente substancial se caracteriza pelo caráter intrínseco de sua unidade, que não lhe é imposta de fora, mas, por assim dizer, o constitui "de dentro".

Não há um ontos, não há um ser que não seja constituído pelo logos da unidade. Por essa razão, a lei da unidade é absoluta, independente de toda e qualquer coisa. É um dos logoi arkhai, princípios originários de toda e qualquer realidade possível. Mário Ferreira distingue ainda entre a unidade como lei da unidade eidética da coisa, o que a distingue de tudo o que não é ela, e a lei da unidade matética, o logos matético da unidade.

A fim de dirimir possíveis confusões, é preciso dizer de início que não se trata aqui de unidade no sentido matemático do termo (pelo menos não principalmente). A unidade em discussão é o caráter daquilo que é indiviso, unificado, completo e substancial. A unidade de uma cadeira é muito mais do que a simples junção de suas partes materiais. A cadeira é una primordialmente porque "cadeira" é um padrão, um arranjo específico das partes segundo um determinado objetivo. 

O que torna a cadeira uma cadeira não é ser feita ou não de madeira (poderia ser feita de plástico ou de outro material adequado), mas sim o fato de que há na cadeira um padrão repetível que caracteriza toda e qualquer cadeira a despeito de suas particularidades como cor, tamanho, modelo, etc. Isto é, há um conjunto mínimo de características que têm de ser cumpridas para que a cadeira seja uma cadeira viável. 

É esse conjunto que torna algo uma cadeira e não uma mesa. Mas essas características não são de modo algum arbitrárias. O conjunto tem que ser ordenado, deve haver sentido nas características das partes da coisa e entre a disposição da partes para que haja de fato uma coisa, um ente, e não simplesmente um amontoado. Utilizando a expressão de Mário Ferreira, tem de haver uma lei de proporcionalidade intrínseca, uma regra, um logos. O que concede unidade a algo é um padrão que torna a coisa aquilo que ela é. 

Nesse sentido, a unidade é ontológica, e não simplesmente matemática. A unidade matemática é quantitativa apenas. Esta maçã é uma porque ela se distingue numericamente de outras maçãs, mas ela é una por ser "maçã", e, enquanto "maçã" ela não se distingue de todas as outras maçãs porque, assim como as outras, ela apresenta o mesmo padrão. Só aqui temos já dois aspectos fundamentais da unidade: a unidade como aspecto qualitativo, o que torna a coisa o que ela é, e o aspecto quantitativo, o que distingue numericamente os entes de um mesmo tipo.

Há ainda a lei da unidade que fundamenta e reúne em si os dois aspectos acima apresentados. Não se trata mais desta maçã enquanto unidade numérica, e nem mesmo de "maçã" como aquela unidade de características essenciais que definem o que é uma maçã. A lei da unidade não corresponde a este ou àquele padrão (cadeira, maçã, etc.), mas se refere ao, se podemos expressar desse modo, "padrão máximo" segundo o qual tudo aquilo que pode existir, seja o que for, será sempre unidade (por isso a lei da unidade é absoluta).

Mário Ferreira mostra ainda que, se é verdade que a unidade está presente em todos os entes, é também certo que os entes diferem quanto à sua constituição. Quando falamos de unidade absolutamente simples (sem partes), tratamos do henos (o que vem do "um", ἓν, no grego). Quando se trata de entes complexos (com partes), temos o holos ("todo", όλος, no grego) e o plethos (πλῆθος, no grego). O holos é um Todo cujas partes estão reunidas e ordenadas segundo uma regra geral intrínseca. 

Uma célula é holos (da onde vem o termo holística) porque constitui-se em um todo regido por uma lei de proporcionalidade intrínseca que não foi imposta de fora por um agente externo, mas que corresponde à sua natureza, ao que ela é. Além disso, Mário Ferreira identifica na célula uma tensão, um tónos (τόνος), esforço tensional para manter as partes subordinadas ao interesse do Todo. As partes da célula são formadas por diferenciação interna para que cada uma delas tenha uma função específica para a realização e para a manutenção do Todo.

A cadeira é um plethos, pois suas partes são unidas extrinsecamente segundo uma lei de proporcionalidade cuja tensão é produzida pela disposição mecânico-geométrica das partes. Um relógio, por exemplo, é feito de partes independentes que são reunidas por um agente produtor em um determinado padrão a fim de realizar e de manter um Todo funcional. O que mantém essa unidade não é um impulso orgânico e sim uma tensão que se deve à disposição das partes segundo suas características geométricas (comprimento, altura, profundidade, forma) e mecânicas (contato, massa, peso, etc).

Ora, o ser humano é capaz de captar intelectivamente essas leis de proporcionalidade intrínseca presentes em cada ente da realidade. Tal capacidade é o que define o homem distinguindo-o de todos os outros entes, sejam animais, vegetais ou inanimados. Aptamente, Mário Ferreira distingue o esquema eidético-noético, presente no intelecto humano, da estrutura eidética, presente nas coisas. A inteligência capta o logos eidético (a lei de proporcionalidade intrínseca) de cada coisa. 

Por isso, é possível falar de "maçã" como um conjunto limitado de características essenciais que, a um só tempo, está presente em cada maçã sem jamais se restringir ou ser esgotado por nenhuma delas em particular, e nem mesmo pelo conjunto de todas as maçãs do presente. O logos eidético da "maçã" é tomado in abstracto, ou seja, como um conteúdo abstraído das maçãs existentes. Essa estrutura eidética da maçã, embora válida para todas as maçãs, é sempre captada no intelecto de um ser humano individual. 

Assim, o que temos no nosso intelecto é o esquema eidético-noético da maçã. Ele é eidético porque se refere ao Eidos (εἶδος, em grego), a Ideia, a essência da maçã. Esse conteúdo é objetivo, corresponde àquilo que realmente a coisa é. Ele é noético (νόησις, em grego) porque esse esquema eidético da maçã é captado em um intelecto, é um conteúdo informativo presente em uma mente. O noético se refere à compreensão, ao conhecimento, e, portanto, pertence a um sujeito cognoscente. Nesse sentido, está em um sujeito (subjectum, no latim), é subjetivo.*

O esquema eidético-noético é o logos eidético quando recebido e contemplado no intelecto de um ser humano. Todavia, o esquema eidético da maçã não pertence à mente humana. Em certo sentido, pertence somente às maçãs. Por outro lado, esta ou aquela maçã, e nem o conjunto de todas as maçãs, esgota ou limita o esquema eidético da maçã. É certo que ele está em todas as maçãs existentes, assim como esteve nas maçãs do passado e estará nas maçãs do futuro. 

Em outros termos, as maçãs no mundo exemplificam concretamente o logos eidético (a lei, a unidade, o padrão) da maçã. A questão é saber se o logos eidético possui alguma existência fora das maçãs concretas. Obviamente, não pode ser uma existência material e singular, como a existência desta ou daquela maçã concreta. Nem poderia ser uma existência universal, como se fosse um ente concreto e ao mesmo tempo uma universalidade.

Na excelente formulação de Mário Ferreira, 

"se as coisas repetem este logos in re, e como há entre elas algo comum, que é a presença do mesmo logos, deve haver uma forma ante rem, que é fórmula do logos concreto, já que este é algo que repete o logos concreto de outro ser da mesma espécie que ele."

O ponto em questão é que o logos (a lei, a fórmula, o padrão, a unidade) é uma comunidade de características que define o tipo de ser que diversos seres são. Todas as maçãs são maçãs porque possuem em comum uma série de atributos essenciais que definem o que é ser uma maçã. O logos, o conjunto comum de características, é repetido, in re, em cada maçã. Mas, ao mesmo tempo, o logos não depende das maçãs, pois nenhuma quantidade delas pode encerrar a possibilidade de novas maçãs.

Então, o logos possui alguma existência ante rem, anterior às coisas, no sentido ontológico (não temporal) de anterioridade, isto é, na qualidade de fundamento, de princípio. O logos não é uma coisa como uma maçã é uma coisa, este ente aqui e agora. Também não pode ser um nada, pois o nada não fundamenta e nem é princípio de coisa nenhuma. Tampouco se trata de uma ficção da mente humana, dado que, se assim fosse, não haveria nenhuma semelhança real entre duas maçãs.** 

Recorramos, novamente, à formulação de Mário Ferreira:

"A identidade estaria na proporção intrínseca, que é a mesma em todos, distinta por distinção numérica neste ou naquele, por que se dá em vários, e distinta concretamente in re, por que se dá naquele."

Pitágoras, Platão e os platônicos formularam a questão sore o modo de existência do logos, que denominaram como Ideia, Forma ou mesmo fórmula. Não podendo ser um ente concreto, singular, como esta maçã, qual o tipo de ser do logos da maçã? Semelhante a todos os logoi, sua existência só pode ser aptudinal, responde o filósofo brasileiro. Os logoi são aptidões do Ser, ou seja, possibilidades de existência que antecedem e fundam ontologicamente a existência concreta das coisas. 

Devemos distinguir entre a possibilidade ontológica de algo e as condições para a sua existência. A possibilidade, enquanto uma aptidão real para a existência de determinado tipo de seres, não varia e nem está submetida a quaisquer condições materiais. Os logoi são possibilidades intrínsecas da Realidade, fora do plano temporal e material. Para que o ser humano pudesse existir concretamente, o logos humano sempre foi intrinsecamente possível. 

Não se segue absolutamente daí que o ser humano existiria necessariamente. A fim de que os humanos existam concretamente, certas condições tem que ser satisfeitas no mundo material. Por exemplo, dado que o homem é um animal, era necessário que a Terra fosse capaz de abrigar e sustentar a vida para que o homem pudesse surgir. Porém, nada impede logicamente que o ser humano jamais pudesse existir de facto em algum lugar do universo. Se todas as condições materiais não estivessem presentes na Terra, o homem não existiria concretamente.

Nada do que foi dito acima significa que a Terra fosse "obrigada" de algum modo a se tornar habitável por causa da possibilidade do ser humano. Não é uma relação segundo a qual a mera possibilidade de algo existir implicasse logicamente que as condições materiais para a sua existência efetiva necessariamente fossem dadas no mundo. Sem embargo, há uma relação de necessidade hipotética entre a possibilidade de algo e as condições para a sua existência efetiva. 

Se a possibilidade X for se realizar concretamente, então as condições Y necessariamente tem que estar presentes no mundo (a relação é somente condicional). Um construtor tem uma ideia de uma casa em sua mente. Nada exige que necessariamente as condições para a realização da casa (materiais, terreno, ferramentas, etc.) estarão presentes e disponíveis. Mas, isso não muda o fato de que se (condicional) o construtor quiser realmente construir a casa, necessariamente tais condições deverão ser atendidas, sob pena de impossibilidade material de construção da casa. 

Independentemente do construtor querer ou não construí-la, aquelas condições são exigidas pela própria lógica da casa. Dito de outro modo, o logos da casa possível exige uma série de condições materiais (que podem ou não existir no mundo) para a sua realização concreta. Não são, tampouco, as condições materiais que tornam a coisa possível. A ausência das condições torna materialmente ou empiricamente impossível (seja momentaneamente ou não) a existência efetiva de algo que é, em si, essencialmente possível.

Em suma, do ponto de vista da Matese***, os logoi são realidades aptitudinais no seio do poder absoluto do Ser. Em termos teológicos, de acordo com Agostinho, são os pensamentos de Deus, os modelos a partir dos quais todas as coisas são criadas. Indo um pouco além do que ensina o filósofo brasileiro, comparativamente, os logoi constituiriam o cosmos noético de Plotino que, por sinal, era denominado Nοῦς e Ser. Acima dele, estaria o Hen, o Uno que dá origem a toda e qualquer unidade. O Logos de todos os logoi, por assim dizer.

...

* O conhecimento está em um sujeito cognoscente no sentido de que se trata de um conteúdo que se apresenta "dentro" do intelecto daquele que conhece. Nada disso implica algum tipo de subjetivismo, a doutrina filosófica que, grosso modo, defende que o conhecimento jamais é realmente universal e objetivo, mas que sempre é subjetivo, totalmente relativo ao sujeito. A verdade do conhecimento é objetiva porque corresponde àquilo que é a coisa conhecida. A diferença é que essa verdade é contemplada, compreendida, inteligida de "dentro" de um intelecto humano vivo.

** Nenhuma delas seria, portanto, maçã em nenhum sentido compreensível da palavra maçã. Nem poderia haver maçãs, pois não haveria nenhuma comunidade de sentido que pudesse reunir quaisquer duas coisas sob um mesmo conceito.

*** A Matese, segundo Mário Ferreira a define no livro A Sabedoria dos Princípios, estuda não somente a ontologia, a doutrina do Ser, mas também a meontologia, a doutrina do Não-Ser. 

...

Leia também: 

Νεκρομαντεῖον: Mário Ferreira dos Santos (oleniski.blogspot.com)

segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

Artigo: "O bispo contra o mago: as críticas de George Berkeley à física de Isaac Newton"



Artigo integral publicado na Revista Opinião FilosóficaVista do O bispo contra o mago (opiniaofilosofica.org)

O artigo tem como objetivo apresentar as críticas formuladas pelo filósofo George Berkeley à filosofia natural moderna, em especial à física de Isaac Newton. Tais críticas aparecem primeiramente em seu tratado epistemológico-metafísico sobre os princípios do conhecimento humano, e depois em uma obra totalmente dedicada à questão da natureza do movimento e de sua comunicação. 

A partir da leitura dos argumentos de Berkeley contra Newton, é possível demonstrar que o filósofo adota uma posição antirrealista com relação à física que é diretamente derivada de suas teses metafísicas imaterialistas. Dado que ele afirma que na realidade só há espíritos e suas ideias, a causa última das regularidades naturais é a vontade do espírito divino, e não uma suposta natureza intrínseca dos corpos. 

A filosofia natural, portanto, estará limitada ao uso de hipóteses matemáticas para identificar as regularidades naturais, contudo sem pretensões de determinar as causas reais dos fenômenos. Assim, as leis mecânicas têm seus limites epistêmicos determinados por um saber superior, a metafísica.

...

Leia também: 

Νεκρομαντεῖον: George Berkeley (oleniski.blogspot.com)

Νεκρομαντεῖον: Isaac Newton (oleniski.blogspot.com)