"Deuses que sob vosso imperium estão as almas, sombras mudas,
o Caos e o Flegetonte, amplas regiões de noturno silêncio,
permitais dizer o que ouvi, e revele vosso numen
as coisas ocultas da terra imersa no breu."
VIRGÍLIO, Eneida, Livro VI (tradução minha)
Os ritos funerários prescritos foram cumpridos, e, de posse do ramo dourado, Eneias será guiado pela sibila no lúgubre reino das sombras. O guiamento pela mulher é outro tema recorrente na simbologia heroica. Teseu é guiado no labirinto do minotauro pelo fio de Ariadne, Jasão é conduzido por Medéia à árvore do velocino de ouro guardado pelo dragão. A mulher é símbolo das possibilidades, daquilo que está sendo gerado no útero da realidade. Do casamento sagrado, o hierogamos, entre o Céu e a Terra, Uranos (Οὐρανός) e Gaia (Γαῖα), nascem os poderosos Titãs, e da caixa de Pandora escapam os males que afligem os homens.
A catábase, como todo símbolo, possui sentidos positivos e negativos. O descenso ao Orco, ao Érebo (escuridão,Ἔρεβος), significa a perda da identidade no breu da indistinção primordial que transforma os desafortunados em tristes sombras desmemoriadas. Se o herói, trazendo consigo o facho solar, consegue atravessar as paragens infernais, a dissolução dará lugar à regeneração operada pelas potências acumuladas no fundo da realidade. A sua ascensão (anábase) de volta ao mundo dos viventes será a do iniciado que recebeu novo status ontológico e acesso a conhecimentos antes ignorados.
O postulante à iniciação nos mistérios gregos de Eleusis era acompanhado ao telesterion (o lugar da iniciação) por seu mistagogos (μυσταγωγός), que, sendo ele mesmo um iniciado (μύστης), já havia passado pela epopteia (ἐποπτεία), a contemplação final do mistério (μυστήριον). A sibila, sacerdotisa de Apolo e da Hecate, reúne o solar e o noturno, transita entre a forma e o amorfo, entre a luz e as trevas, e serve de mistagogos a Eneias no seu desafio iniciático.
A catábase inicia-se com um sacrifício no Averno. Numa grande caverna, protegida por um pântano e por uma densa floresta, cujos vapores impediam a sobrevivência dos pássaros, a sibila derrama sobre a testa de quatro novilhos negros o vinho sagrado, corta um chumaço do pelo dos animais, e, invocando a Hecate, imola-os e lança as oferendas às chamas. Eneias sacrifica uma ovelha negra às Eumênides e à Terra, uma vaca estéril à Proserpina e bois, em altares noturnos, ao rei estígio.
Os símbolos remetem à morte. A caverna tem um sentido tradicionalmente cósmico, porém, representa aqui um mundo sem vida, cercado pela inospitalidade do pântano e pelo caos selvagem e desordenado da floresta fechada que a tudo encobre com sua sombra. Os vapores que do Averno se desprendem matam as aves, símbolos das realidades superiores. Nenhuma ascensão aos estados celestiais é possível. Seu sentido é descensional, impera ali a gravitas de Saturno/Kronos, cujo reino titânico, monstruoso e terrível antecede à ordem estabelecida por Zeus/Jupiter.
Adequadas aos Di Inferi, os deuses "de baixo", as vítimas sacrificiais têm o pelo negro, representando a natureza indistinta, amorfa, sombria e oposta à luz solar de Apolo que dá a vida e torna manifestas as coisas. A Hecate, diva da magia e dos encantamentos, é invocada pela sibila, tal como fez Medéia a fim de conduzir o argonauta Jasão ao velocino de ouro. Associada aos céus por seu aspecto lunar e ao submundo por seu aspecto ctônico, a Hecate é deusa dos limites, das encruzilhadas (Trivia), da mediação entre o mundo dos vivos e o dos mortos, e dos amuletos apotropaicos.
As Eumênides (Erínias ou Fúrias), terríveis divindades titânicas ancestrais, vingadoras dos crimes de sangue contra a parentela, e que atormentaram o matricida Orestes, são também apaziguadas pelo sacrifício de Eneias. São filhas de Nix (Noite), outro símbolo do indistinto e do amorfo. A Terra (Gaia), irmã da Noite e filha do Caos, confirma o caráter descensional do Averno, dado que os corpos descem na direção do solo e encontram ali seu repouso. É na Terra que as sementes são enterradas, "morrem" e depois "renascem" como vegetais. O ciclo de morte e renascimento é eminentemente iniciático.
Uma vaca estéril é sacrificada à Proserpina (Perséfone), a rainha do Orco, e consorte de Plutão (Hades ou Plutus), o rei estígio, o Dis Pater, soberano do mundo dos mortos, a quem Eneias imola touros em altares noturnos. A infertilidade da vaca reflete os aspectos negativos do reino subterrâneo: dissolução, morte e o esquecimento. Contudo, em seu aspecto positivo, simbolizado pelos touros, animais fecundadores, o domínio de Plutão é também o lugar do tesouro, da riqueza (πλούτος, plutos). Afinal, é sob a terra que se escondem os metais preciosos e as sementes que um dia serão alimentos.
Os Di Inferi receberam as suas homenagens, o proemio foi realizado, e então a sibila expulsa do recinto os profanos, os companheiros de Eneias que não serão iniciados. A aurora se aproxima, os cães ladram, Eneias saca sua espada e segue a vate que avança pela caverna. Passam pelas moradas vazias do Dite, e logo no início do Orco, encontram o Remorso (Luctus), o Medo (Metus), as Enfermidades (Morbi), a Velhice (Senectus), a Fome (Fame), a Pobreza (Egestas), os irmãos Morte (Letum) e Torpor (Sopor), o Trabalho (Labor), os Gozos proibidos da mente (mala mentis Gaudia) e a Guerra (Bellum).
Mais à frente, estão as Fúrias e a Discórdia, e o olmeiro dos Sonhos vãos pendurados nos seus inúmeros galhos. A primeira leva de habitantes do Orco são os males pelos quais comumente os homens descem ao lúgubre reino subterrâneo. O mal é a privação ou a diminuição de um bem. O Infernum é o reino da dissolução, da falta, da privação, da incompletude, do Não-Ser.
O Remorso é a consciência dolorosa de uma falta cometida, o Medo é fruto da ausência da coragem e diminui ou oblitera o poder de ação, a Enfermidade é a privação da saúde, a Velhice é a decadência corporal, a Fome é a insuficiência na alimentação, a Pobreza é a falta de meios, a Morte e o Torpor são ambos perdas (da vida e da consciência, respectivamente), o Trabalho é uma necessidade, o Gozo proibido é imoderação, e a Guerra é a destruição mútua que resulta da desarmonia entre os homens.
As Fúrias vingam os crimes de sangue contra a parentela, violações das leis mais sagradas. A Discórdia (Discordia) é a desarmonia irreconciliável das mentes que deveriam estar unidas (Concordia). Os Sonhos vãos, pendurados nas folhas do grande e envelhecido olmeiro, simbolizam as potencialidades que não foram efetivadas no mundo, e que, por isso, permanecem para sempre "penduradas" na árvore central, o Axis Mundi, que liga e sustenta as várias dimensões da realidade.
Após os símbolos da privação, Eneias e a sibila se deparam com os monstros Cila, Briareus, Quimera, Hidra de Lerna, as Górgonas, as Harpias e Gerião. O monstro simboliza a resistência da matéria à forma, a rebeldia do caos frente à ordenação, a vitória do excesso sobre a medida, a ordenação incompleta do caos. A desmedida do monstro o impede de ser enquadrado em qualquer espécie ou tipo dentro do Cosmo. Seu corpo abriga partes de outros entes unidas num todo antinatural.
Negativamente, os monstros no Orco representam a confusão e a desordem do reino subterrâneo da dissolução e do informal. Porém, sob um ângulo positivo, representam a concentração de forças opostas no fundo indistinto da realidade, a riqueza inesgotável e o transbordamento irrefreável do poder criador divino que não respeita medidas. Não à toa, o termo teras (τέρᾰς), equivalente grego do termo latino monstrum, significa também sinal divino, maravilha, portento, presságio.
Assustado, Eneias golpeia com sua espada as sombras (umbras) que o cercam sem atingir nada. O Orco é o domínio do insubstancial, morada dos Di Manes (falecidos), aqueles que desceram ao nível informal da realidade. Impera ali a imagem (imago), a figura (forma), o tênue (tenuis). Numa outra chave simbólica, sendo um vivente que caminha no mundo dos defuntos, Eneias realiza a reintegração paradoxal dos contrários (vida/morte).
Chegaram a sibila e o troiano ao lodoso rio Aqueronte, no qual navega a negra barca de Caronte que transporta à outra margem as almas dos mortos. O rio é um símbolo tradicional do limite e da fronteira entre os mundos. Atravessar para o lado oposto do rio significa entrar em outra realidade e adquirir uma nova constituição ontológica. Inúmeros Manes aguardam na margem o barqueiro que a muitos nega a passagem por não terem recebido os ritos funerários prescritos.
Os insepultos são os profanos que não completaram os ritos, aqueles que não sofreram a morte iniciática, e que, portanto, não podem ser admitidos na epopteia. Eneias divisa no meio dessa triste multidão a figura de Palinuro, piloto de sua esquadra que morrera afogado, e com ele entabula conversação. O morto pede que seu corpo seja sepultado pelo herói em seu caminho de volta ou que este permita-lhe subir também na barca para o outro lado do Aqueronte. A sibila, na função de mistagoga, recrimina Palinuro pela insensatez de querer ingressar no telesterion sem ser digno.
O medonho Caronte percebe os dois viajantes e declara que aquela é a região dos mortos, e que nenhum vivente pode subir na sua embarcação. A sibila anuncia que se trata do piedoso Eneias em busca de seu pai Anquises, e mostra ao barqueiro o ramo dourado, o símbolo (σύμβολον), a senha que deve ser apresentada ao guardião do Hades, tal qual as lâminas douradas dos mistérios órficos. Somente aquele que porta o facho solar, o princípio ativo e ordenador das coisas, pode sobreviver no domínio das forças dissolventes da sombra, do sono e da noite.
Espantado, e não tendo nada a objetar, Caronte retira as almas que trazia na barcaça e transporta em segurança o troiano e a vate até à outra margem do lodoso Aqueronte. A partir daqui, o caminho dos ancestrais (Anquises) conduzirá Eneias aos Campos Elísios.
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