sexta-feira, 22 de setembro de 2023

Surendranath Dasgupta e a natureza da filosofia indiana

"Os sistemas de filosofia da Índia não foram movidos meramente pelas demandas especulativas da mente humana que possui uma inclinação natural de se entregar ao pensamento abstrato, mas por um desejo profundo desejo pela realização do propósito religioso da vida. É surpreendente notar que os postulados, objetivos e condições para tal realização encontrados foram idênticos em todos os sistemas conflitantes. Quaisquer que fossem as suas diferenças de opinião em outros temas, no que se referia aos postulados para a realização do estado transcendente, o summum bonum da vida, todos os sistemas estavam praticamente em total concordância."

SURENDRANATH DASGUPTA, A History of Indian Philosophy, volume 1, p. 71

O grande scholar indiano Surendranath Dasgupta, no capítulo IV do primeiro volume de sua obra clássica A History of Indian Philosophy, realiza uma série de observações acerca dos sistemas de pensamento da filosofia indiana. A primeira observação que faz refere-se à dificuldade de se escrever mesmo uma história da filosofia indiana. No mundo ocidental, os filósofos se seguiram uns aos outros propondo suas especulações independentes, e os historiadores organizaram essas informações em ordem cronológica comentando as influências de uma escola de pensamento sobre as outras.

Tal não se dá na filosofia indiana pela escassez de fontes referentes às épocas nas quais os sistemas filosóficos nasceram. Essas escolas surgem quase imediatamente após a composição e organização do mais antigo dos Upaniṣads. Contudo, os tratados sistemáticos foram escritos em curtas sentenças (Sūtras) as quais não elaboram o seu tema em detalhe, mas servem como resumo para a memória das discussões sofisticadas que foram realizadas.

É difícil tanto saber a extensão do significados desses sutras tanto quanto se as discussões que eles suscitaram em épocas posteriores refletiam realmente as intenções de seus autores. Os sutras do Vedānta, por exemplo, os Brahma Sūtras, deram azo a mais de seis interpretações divergentes, cada uma, como era de se esperar, considerando a sua interpretação como a correta. O pertencimento a uma escola determinava uma atitude de conciliação de todo e qualquer pensamento novo com as doutrinas já estabelecidas.

"Ao invés de produzir uma sucessão de livres pensadores tendo seus próprios sistemas a propor e a estabelecer, a Índia produziu escolas de pupilos que sustentavam as visões tradicionais de sistemas particulares de geração a geração, que as explicavam e as expunham, e as defendiam dos ataques das escolas rivais as quais eles constantemente atacavam com o objetivo de estabelecer a superioridade do sistema ao qual aderiram."

Há uma tradição de comentários, não de inovações teóricas ou especulativas. A cada ataque de uma escola rival, um comentário aos sutras é feito, e estes são respondidos por outros comentários, e assim por diante. Até mesmo Śaṅkarācārya, a quem Dasgupta descreve como o "provavelmente o maior homem da Índia após o Buddha", limitou-se a compor comentários aos Brahma Sūtras, os Upaniṣads e ao Bhagavad Gītā. Os comentários, com o passar dos séculos, buscavam responder a questões e objeções que não haviam sido explicitamente pensadas nos escritos originais. E nesse processo, há o desenvolvimento das escolas nessa discussão contínua com as suas rivais.

Dasgupta afirma que uma história das sucessivas filosofias da Índia não é possível. Cada escola deve ser estudada e compreendida em seu desenvolvimento ao longo dos séculos. Os sutras são como um bebê recém-nascido, e seu desenvolvimento até à maturidade corresponde à história dos conflitos da escola com suas rivais por meio da tradição impessoal dos comentários dos pupilos. Nenhum estudo dos sistemas indianos é adequado enquanto não tiver como objeto o desenvolvimento inteiro realizado por seus abnegados aderentes e defensores que se dedicaram a compor os seus comentários.

O centro do espírito de investigação era que a essência final ou verdade última era o Ātman, sendo, portanto, a busca por ele nosso mais alto dever. Enquanto não nos imergirmos nele, permaneceremos insatisfeitos com qualquer outra coisa. O Ātman não é isso, não é aquilo (neti, neti). Dasgupta sugere que os sistemas filosóficos surgiram na época e em torno dos Upaniṣads, a partir de discussões elaboradas que eram resumidas nos sutras e passadas adiante pelos discípulos que, embora pudessem acrescentar ou mesmo suprimir certas porções recebidas, não faziam alterações que corrompessem a essência da doutrina da escola.

Os comentadores não expunham suas opiniões próprias ou suas inovações a não ser naqueles casos onde os mestres antigos não tivessem deixado nenhum ensinamento. Por isso, diz Dasgupta, é impossível entender as escolas indianas pelas contribuições individuais dos comentadores. É só no conjunto de seu desenvolvimento que se pode compreendê-las adequadamente. A literatura filosófica indiana é precipuamente uma literatura de disputas, de objeções e de respostas à objeções. Cada escola cresceu justamente no embate discursivo com as suas rivais, de tal modo que para compreender uma escola é preciso estudar todos os sistemas em suas oposições mútuas.

Os sistemas de filosofia indianos são divididos em duas categorias: Nāstika e Āstika. Os primeiros são sistemas que não aceitam a validade, a autoridade e a infalibilidade dos Vedas. Exemplos de sistemas Nāstika são o Budismo, o Jainismo e o CārvākaĀstika são as escolas ortodoxas, que aceitam os Vedas, e são seis em número: Sāṃkhya, Yoga, Vedānta, Mīmāṁsā, Nyāya, Vaiśeṣika. O Sāṃkhya é atribuído a Kapila, e o Yoga é atribuído a Patañjali, tendo como texto fundamental os Yoga Sūtras. O Purva Mīmāṁsā é um código de princípios sistematizado para a interpretação dos textos védicos para propósitos sacrificiais. O sistema Nyāya e o sistema Vaiśeṣika são geralmente encarados como uma unidade, embora os Nyāya Sutras sejam focados na lógica, e os Vaiśeṣika Sūtras tenham seu centro na física e na metafísica.

Last but not least, há o sistema Vedānta, cujos Brahma Sūtras foram compostos por Bādarāyaṇa. O termo Vedānta significa "fim dos Vedas", no sentido de realização, termo, encerramento. O Vedānta corresponde aos Upaniṣads, e os Brahma Sūtras correspondem a um sumário das visões gerais contidas nos Upaniṣads. O mais antigo comentário que chegou a nós é o do grande santo Śaṅkarācārya, cuja interpretação não-dualista, Advaita, foi contraposta por comentários de mestres dualistas como Rāmāṉuja, Madhvā, Baladeva, entre outros.*

Entretanto, é preciso recordar que não há um termo em sânscrito correspondente a "filósofo" no sentido técnico ocidental. Os termos siddha, Jñānin, ṛṣis não significam filósofos no sentido moderno e se referem antes aos "perfeitos", "sábios", e "videntes". Dasgupta não desenvolve mais detidamente esse tema, mas seria aqui necessário ponderar que, à luz da exposição acima e dos estudos clássicos em filosofia indiana conduzidos por outros scholars, não há na Índia exatamente a figura ocidental do filósofo. 

Seria um grande erro, por exemplo, confundir os ṛṣis (rishis) que compuseram os Upaniṣads com filósofos que contrapunham suas teses às teses de outros pensadores operando no âmbito do discurso teorético como no caso dos pré-socráticos e de seus sucessores. Se não é possível descartar algum componente especulativo nos Upaniṣads, é, contudo, impossível reduzir seus ensinamentos a meras hipóteses sobre a constituição fundamental da Phýsis. Antes de tudo, os rishis são sábios, os que experimentaram a Realidade.

O grande santo e mestre advaita Adi Śaṅkarācārya, de indisputável ortodoxia, comentando o segundo verso da primeira parte dos Brahma Sūtras, expôe a razão da autoridade dos Upaniṣads"É a experiência que tem peso, e as escrituras possuem autoridade porque são os registros da experiência das mentes mestres que estiveram face a face com a Realidade (Āptavākya). Essa é a razão pela qual as escrituras são infalíveis". A Realidade citada é Brahman, o "Um sem segundo", aquele sobre o qual nunca se fala afirmativamente, mas sempre negativamente: "neti, neti".

Apesar da diversidade das escolas, Dasgupta ressalta que há um conjunto de ensinamentos que são compartilhados unanimemente por todas elas, excetuando-se somente o materialismo Cārvāka. A primeira dessas doutrinas é o Karma e o renascimento. Todas as ações individuais deixam para trás uma certa potência que trará alegria ou sofrimento de acordo com a bondade ou maldade dessas ações. Se os frutos são tais que não possam ser colhidos nesta ou em uma outra vida humana, o indivíduo terá de renascer como homem ou como outro ser a fim de sofrer suas consequências.

Já no período védico havia a noção de que os atos sacrificiais tinham o poder invisível (Adṛṣṭa) ou inobservado (Apūrva) que realizaria a possessão do objeto desejado. Analogamente, as escolas ortodoxas acreditam que os frutos das ações levam tempo para se realizarem na forma de satisfação ou de sofrimento, e que seu acúmulo prepara tanto a dor quanto alegria da próxima vida do agente. Somente ações particularmente boas ou más têm seus frutos colhidos nesta vida. 

Não há começo para as encarnações que são sucessivamente determinadas pelas ações nas vidas anteriores. Se as ações realizadas nesta vida humana exigem como seu fruto necessário o retorno como um animal, por exemplo, um homem pode retornar como um bode. Infinitas vidas em diversas modalidades deixam suas marcas a cada renascimento e possuem suas próprias consequências. Os frutos ainda não maduros para a realização podem ser interrompidos pelo conhecimento último, mas aqueles já maduros não são evitáveis nem para o homem liberto.

Entretanto, a doutrina do Mukti ou Mokṣa, a libertação final, ensina que o ciclo pode ter fim na medida em que o homem abandona as emoções, desejos e ideias que o conduzem à ação interessada, e encontra em si mesmo aquele Ātman desinteressado que não sofre ou frui, que nem age ou renasce. Em sua natureza real, o Ātman não é tocado ou manchado pelas impurezas da vida ordinária, e é somente pela ignorância (Avidyā) e pelas paixões herdadas no ciclo dos renascimentos que nos identificamos com elas. A realização desse estado transcendente é o objetivo a último ser alcançado. 

Apesar de ser negada pelos budistas (é preciso entender em qual sentido ela é negada), a doutrina de uma entidade permanente, pura e não contaminada por nenhuma ação ou paixão, chamada diversamente de Ātman, Puruṣa ou Jīva, é ensinada por todas as outras escolas indianas. O summum bonum é alcançado quando todas as impurezas são removidas e a natureza verdadeira de Ātman é completa e permanentemente apreendida, de modo que todas as conexões estranhas são absolutamente desfeitas.

Dasgupta admite que há uma certa atitude pessimista que permeia os sistemas indianos, principalmente no  Sāṃkhya, no Budismo e no Yoga. O ciclo das experiências boas ou ruins sempre termina no sofrimento. Mesmo os prazeres desembocam no sofrimento, uma vez que sofremos quando os perdemos, sofremos quando ansiamos por eles e sofremos quando tentamos em vão prolongá-los. A dor é a a verdade última desse processo do mundo.

Não se deve pensar, contudo, que essa atitude derive uma negação do mundo e dos deveres da vida, nem mesmo uma defesa do suicídio ou do quietismo. A dor do ciclo mundano deve ser transcendida pela correta compreensão do Ātman, nossa verdadeira natureza que está desde sempre acima e dissociada das ações e dos sofrimentos que a identificação com essa existência trazem consigo. A elevação moral é a condição de possibilidade para que o homem possa aspirar à realização do Ātman, em comparação com a qual os prazeres deste mundo e mesmo as alegrias do Paraíso encolhem até à insignificância.

O pessimismo se esvai na consideração da verdadeira natureza de nosso Ātman. Os sistemas indianos concordam sobre os princípios gerais de conduta ética que devem ser seguidos para se alcançar a realização final. Todas as paixões devem ser controladas, não se deve ferir qualquer qualquer forma de vida, todos os desejos por prazeres devem ser verificados. É somente quando o homem alcança uma grau muito alto de grandeza moral que ele deve preparar e fortificar sua mente para purificações ulteriores a fim de chegar ao ideal supremo.

O objetivo da vida, a atitude frente ao mundo e os meios para alcançar a realização final compõem a Sādhanā, unidade que permeia todos os sistemas indianos. Surendranath Dasgupta arremata a exposição afirmando que "de fato, parece a mim que um sincero anseio por alguma autorrealização ideal bem-aventurada e calma é realmente o fato fundamental do qual não somente sua filosofia, mas muitos dos fenômenos complexos da civilização da Índia, podem ser logicamente deduzidos." (p.77)

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*Para uma exposição mais detalhada das doutrinas de cada uma das darsanas, recomendo a leitura do compêndio de Madhava intitulado Sarvadarsanasamgraha. Mais acessíveis são as introduções ou histórias da filosofia indiana escritas por Surendranath Dasgupta, Sarvepalli Radhakrishnan, T.M.P. Mahadevan, P.T. Raju, M. Hiriyanna e Arvind Sharma. Os links abaixo conduzem a textos introdutórios sobre temas variados do Hinduísmo e da filosofia indiana.

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Leia também:

Νεκρομαντεῖον: Hinduísmo (oleniski.blogspot.com)

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domingo, 17 de setembro de 2023

Leibniz, Deus e o conceito de Natureza

"Sem uma substância eterna, não há verdades eternas. É possível derivar disso também uma prova acerca de Deus: Ele é a raiz da possibilidade, sendo Seu espírito a própria região das ideias ou verdades."

G.W. LEIBNIZ, Échantillon de découvertes sur les secrets de la natureprise en général, 1688

O filósofo, matemático e físico alemão Gottfried Wilhelm Leibniz escreveu em novembro de 1697 um opúsculo em latim intitulado De Rerum Originatione Radicali. O tema da obra, nunca publicada, como o título anuncia, a origem das coisas a partir de sua raiz última. Este mundo, inicia o filósofo, possui uma Unidade dominante que não é somente como a da alma com relação a mim mesmo, e nem como eu mesmo com relação a meu corpo, mas que é mais elevada.

Essa unidade dominante não somente rege o mundo, ela o construiu e o fez, sendo portanto superior a ele e, por assim dizer, exterior a ele, e, por conseguinte, é a razão última de todas as coisas. A razão suficiente da existência dos seres em separado ou em conjunto não se encontra neles mesmos. Suponhamos que sempre tenha havido o livro dos Elementos de Euclides. Poderíamos explicar a existência do exemplar presente pela cópia do exemplar anterior, e assim sucessivamente. Entretanto, por mais que recuemos na cadeia dos livros copiados, não importa sua extensão, a cópia não seria suficiente para explicar a existência dos livros, isto é, por qual razão há livros e por que livros assim redigidos.

O mesmo, analogamente, acontece com os diversos estados do mundo. Embora cada um possa ser derivado do anterior, a cadeia antecessora de causas não explicaria de modo suficiente a existência das coisas. A razão suficiente não reside nas coisas isoladamente e nem no conjunto delas, tão grande quanto se queira que seja esse conjunto. Os seres deste mundo são contingentes, poderiam ou não existir, e como um existente só pode vir de um existente, há que se admitir que a razão última das coisas se encontra fora do mundo, em um ser absolutamente necessário.

A fim de se compreenda melhor o que foi dito, Leibniz lança mão do primeiro princípio inegável de que algo há em vez do nada. Isto é, há algo de existente no mundo e não o nada completo. E se há algo existente, esse algo era possível. Tudo aquilo que é possível possui pretensão à existência, ou seja, o possível exige uma essência que não proíbe a sua existência, mas, ao contrário, a capacita para a existência, dá a ela o direito à existência igual a todos os outros possíveis. 

Leibniz considera que a essência de um possível exibe sua quantidade de realidade ou de perfeição. Daí que aquilo que se torna real é sempre aquilo que possui mais perfeição, o máximo possível dadas as circunstâncias concretas. Há uma espécie de matemática divina ou uma mecânica metafísica, segundo a qual, como na geometria e na física, reina a lei do máximo desempenho. Porém, as leis físicas derivam da necessidade metafísica, e não o inverso. 

O mundo não é metafisicamente necessário, dado que podemos pensá-lo como não existente sem implicar nenhuma contradição lógica. Por outro lado, o mundo é fisicamente necessário no sentido de que a sua inexistência seria uma imperfeição ou um absurdo moral. Leibniz distingue aqui dois tipos de necessidade, uma cuja negação implica contradição lógica (princípio de não-contradição, por exemplo) e outra que possui caráter hipotético, que não implica contradição se negada. Por exemplo, se X não existia e passou a existir, X precisou necessariamente de uma causa (Y, digamos). Mas nada exige que necessariamente Y tinha que causar X.

As essências e as verdades eternas não são ficções, adverte Leibniz. Elas existem, por assim dizer, no mundo das ideias, em Deus mesmo, fonte das essências e das existências das coisas. Como dito acima, a cadeia dos existentes não encontra em si mesma a razão suficiente de sua existência, ela precisa buscá-la nas necessidades metafísicas, e como só um existente pode dar origem a um existente, há que haver um ser metafisicamente necessário, ou seja, um ser no qual essência e existência coincidem, no qual tomam origem todos os possíveis e todas as verdades eternas.

Com efeito, tudo no mundo se faz de acordo com verdades eternas, matemáticas, geométricas e metafísicas. Quando observada no detalhe, encontram-se na natureza razões formais, leis metafísicas de causa, potência e ação operando mesmo sobre leis geométricas da matéria. O mundo existente tanto quanto os possíveis têm sua origem e fundamento em Deus, e como só se tornam reais aqueles possíveis que possuem essências com maior quantidade de realidade ou perfeição, segue-se que este mundo não é somente o mais perfeito fisicamente, mas também moralmente.

Leibniz afirma que este mundo é não só a máquina mais perfeita como é igualmente, na medida em que é composta de espíritos, a melhor das repúblicas. Dirão certamente que não é isso que a realidade observável manifesta com todas as suas desgraças e sofrimentos. Leibniz responde que não se julga a obra inteira pela consideração de uma de suas partes. Não conhecemos a realidade em sua inteireza e, portanto, não sabemos como as coisas se encaixam, como a desordem em uma parte pode se conciliar com a harmonia do todo.

Obviamente, a harmonia do todo não deve ser assegurada ao custo da miséria humana. A justiça está presente, e significa que cada um receba felicidade proporcional à sua virtude e seu zelo pelo bem comum, o qual chamamos de caridade ou amor de Deus. Essa é a força e a potência da religião cristã. E não podemos nos espantar que os espíritos humanos sejam objetos de tanta solicitude da parte de Deus, pois eles refletem mais perfeitamente a imagem do Criador. 

A relação entre os espíritos e Deus vai além da relação que há entre a máquina e seu construtor. A sua relação é a do cidadão com o seu príncipe. Junte-se a isso o fato de que os espíritos durarão tanto quanto o próprio universo, e que eles exprimem e concentram neles mesmos de alguma forma o todo como partes totais. Por último, o sofrimento dos bons concorre para o seu bem, para o seu aperfeiçoamento moral.

Em 1698, Leibniz publica o opúsculo De Ipsa Natura (Sobre a Natureza ela mesma), onde discute a força inerente às coisas criadas e as suas ações. Embora não seja uma intencionalmente uma sequência do De Rerum, que nunca foi publicado, a obra discute a relação entre Deus e a máquina do mundo, bem como aprofunda a concepção do filósofo sobre a essência daquilo que chamamos de Natureza. A ocasião para compor o opúsculo foi dada pela polêmica em torno das teses do livro De Idolo Naturae, do astrônomo e matemático alemão Johann Christophore Sturm.

Segundo Leibniz, os dois problemas principais propostos por Sturm eram, primeiro, a questão sobre a constituição da Natureza que costumamos atribuir às coisas, cujos atributos, aos olhos de Sturm, têm algo de paganismo, e, segundo, se reside nas coisas alguma força (ενέργεια), tese que Sturm nega. Leibniz concorda com a inexistência de uma alma do mundo (Anima Mundi), embora considere que a natureza é uma obra de Deus, uma máquina natural composta de uma infinidade de órgãos que exigem, para sua criação e seu funcionamento, uma sabedoria e um poder igualmente infinitos.

Essa posição conduz à outra questão em voga no tempo de Leibniz. O filósofo natural britânico Robert Boyle defendia que pela natureza de um corpo dever-se-ia entender o seu mecanismo. Em outros termos, dentro do mecanicismo do século XVII, todos os fenômenos da natureza deveriam ter explicações que recorressem apenas ao movimento e ao contato entre porções de matéria. Grosso modo, diz Leibniz, essa explicação pode ser aceita.

Não obstante, a origem mesma do mecanismo não pode ser derivada nem da matéria e nem das leis matemáticas. O que Leibniz quer apontar aqui é que a matéria inerte, seja ela pura extensão ou seja ela formada por corpúsculos, não se organiza espontaneamente em padrões imutáveis, e as leis matemáticas, tomadas em si mesmas, apenas descrevem tais padrões naquilo que neles há de quantitativo. Desse modo, será metafisicamente impossível dispensar a ação e o governo de alguma inteligência imaterial.

Nem tampouco seria possível pensar que o fundamento das leis naturais seja a arbitrariedade. Ao contrário, Leibniz assevera, as leis que há no mundo foram impostas por Deus a partir de razões de sabedoria e de ordem. Portanto, as causas finais não são úteis somente no campo da ética e da teologia natural. Elas servem mesmo na física para descobrir verdades ocultas da natureza. Nesse ponto, como em outros escritos, Leibniz resgata o papel da teleologia no estudo da filosofia natural, algo abertamente rejeitado por René Descartes:

"Nós não nos deteremos também para examinar os fins que Deus se propôs ao criar o mundo, e nós rejeitaremos inteiramente na nossa filosofia a busca das causas finais (...) mas O considerando como o autor de todas as coisas, vamos nos encarregar somente de encontrar, pelo emprego da faculdade de raciocinar que foi posta em nós por Ele, como aquelas das quais nos apercebemos por meio de nossos sentidos poderiam ter sido produzidas." (Descartes, Principia Philosophiae, artigo 28)

Leibniz não critica o argumento de Descartes nesse texto sobre Sturm, mas não é difícil perceber, cremos, que ele é claramente falacioso, pois as causas finais não se referem necessariamente aos objetivos divinos ao criar o mundo. Na realidade, a teleologia pode ser externa ou interna. O fim externo de algo se refere àquilo para o quê a coisa foi feita. Por exemplo, o caso mais evidente é o do artefato, no qual o artífice impõe à matéria uma forma que não pertencia originalmente à ela. Trata-se de uma causalidade transitiva, isto é, há uma transição da forma ou da ideia na mente do artífice para a matéria que será trabalhada. 

Curiosamente, a máquina e o mecanismo, ao contrário de abandonar a teleologia, na realidade a instala no próprio centro da realidade. Na medida em que se deseja explicar o mundo como um mecanismo, como uma espécie de máquina natural, é inescapável a pergunta acerca do construtor do mecanismo. As leis mecânicas sozinhas ou em mero conjunto descoordenado não explicam por qual motivo elas estão reunidas exatamente naquele padrão específico que produz aquele tipo de máquina. 

Idêntica crítica já era feita por Sócrates, Platão e Aristóteles ao atomismo de Demócrito e Leucipo, e permanece uma questão para todo o materialista desde então. O padrão no qual a matéria se organiza, por definição, não é material. Uma porção de argila pode se tornar um vaso ou um prato. Nada há na argila que determine uma ou outra dessas formas. O próprio Descartes, que nada tinha de materialista, quando tenta explicar o mundo material como uma máquina, necessita de Deus como construtor e mantenedor do mecanismo.

Até para entender um mecanismo, é necessário compreender como as leis mecânicas estão reunidas e coordenadas em um padrão fixo que não se deriva dessas mesmas leis, transcendendo-as como seu princípio organizador e mantenedor. Isso é mais verdadeiro ainda no caso da teleologia interna, onde se dá uma causalidade imanente, como no caso dos organismos. A matéria do organismo, de um feto, por exemplo, não recebe de fora o seu padrão. Ao contrário, de dentro de si mesma, a matéria se diversifica em órgãos cuja forma e função são determinados pela realização do todo que é pré-estabelecido.

Retornando ao texto de Leibniz, Sturm defende que os movimentos que se apresentam hoje acontecem em virtude de uma lei eterna, um ato de vontade e um comando, promulgada de uma vez por todas por Deus. A questão é saber se esse comando divino é somente uma determinação extrínseca ou se é uma determinação intrínseca, isto é, uma lei inerente da qual decorrem suas atividades e suas passividades. Leibniz observa que não basta que Deus tenha decretado uma lei no início se essa lei não perpetuar seus efeitos durante o tempo.

Logo, o comando de Deus não vale só para o momento imediato da criação, configurando-se em um traço gravado nas coisas. A natureza é uma certa eficácia, força inerente ou forma da qual decorrem a série dos fenômenos de acordo com a lei divina. Essa força inerente, contudo, não é passível de ser compreendida pela imaginação (que está presa sempre aos dados dos sentidos), mas somente pela inteligência (intellectus). Aparentemente, Sturm exige que se explique pela imaginação como opera essa força inerente, e na ausência de explicação, infere que a única resposta é que nada se move sem a vontade de Deus.

Leibniz responde que Sturm está pedindo algo parecido com pentear os sons ou entender as cores. Hobbes também estaria correto em dizer que tudo é material persuadido que está de que só o que é corporal é explicado e representado pela imaginação. Sturm deriva do fato de que, segundo ele, a força inerente aos seres não pode ser explicada via imaginação, que essa força é uma essência desconhecida, e que, ato contínuo, seria melhor admitir logo que é Deus a fonte de cada movimento das coisas no mundo. Seria um ocasionalismo divino, isto é, a tese segundo a qual não há outra ação causal no mundo que não seja Deus.

O ponto levantado por Leibniz é muito interessante na medida em que lança luz sobre um defeito epistemológico comum a muitos pensadores modernos, notadamente aos empiristas e aos materialistas. Como tais filósofos afirmam que o conhecimento inicia e termina nos dados dos sentidos, a única forma na qual esses dados se reúnem na mente é por meio da memória e da imaginação. Ocorre que a imaginação somente tem o poder de compor e recompor, combinar e recombinar, o que os sentidos fornecem à ela. 

A imaginação pode formar novas imagens cortando, adicionando, combinando partes de muitas imagens, inventando imagens de seres que não existem na realidade extra mentis. Em todas essas atividades, por mais importantes que sejam para o conhecimento, nunca é ultrapassado o nível das imagens presas a conteúdos sensíveis e singulares, este isso e este aquilo. Sendo assim, a imaginação não pode alcançar verdades universais como as da matemática, da geometria, da lógica ou da metafísica, dado que estas são universais, válidas para todos e não para este ou aquele.

Aquilo que Leibniz chama de força inerente ou natureza é justamente o padrão comum (pleonasmo, admito) a todos os membros de uma determinada classe ou espécie, aquilo que determina o que é o mínimo necessário para que X seja X e não Y. Isso não está sob o alcance dos sentidos ou da imaginação. É o intelecto (intellectus, verbo intellegere, "ler dentro")* que "penetra" nos dados recolhidos pelos sentidos e encontra neles um padrão que os próprios sentidos não percebem. Não testemunhamos no mundo somente "coleções de percepções sensíveis unidas regularmente", como querem os empiristas modernos. 

Testemunhamos no mundo entes, substâncias, seres reais que repetem aqui e agora, na sua singularidade irrepetível, um determinado padrão que os ultrapassa em um número indefinido de outros seres do mesmo tipo. É por isso que Leibniz, em seguida, questiona como seria possível que as coisas pudessem durar qualquer tempo se os seus atributos, que chamamos de natureza, não pudessem eles próprios durar de um momento que fosse? A razão exige que o fiat divino tenha instalado nas coisas uma tendência de produzir seus atos, tendência da qual fluem suas operações se nada se colocar como obstáculo.

Metafisicamente, ensina Leibniz, a própria substância da coisa consiste na sua força de agir e de sofrer (receber a ação de outros). O filósofo que dizer que todas as características da coisa, o que quer que ela seja, expressam exatamente o que ela é. Seu ser é essa força de agir como age e sofrer como sofre. Tudo o que a coisa mostra exibe essa força que constitui o seu ser. Em certo sentido, embora Leibniz não use essa definição explicitamente, poderíamos afirmar que ser é ser capaz de manifestar, capaz de operar e de sofrer. 

Deus não poderia somente criar em um momento determinado e, em seguida, nenhuma das características das coisas criadas permanecer no momento seguinte. Analogamente, se as coisas corporais nada tivessem imaterial, seu padrão, elas não seriam mais do que um fluxo perpétuo e insubstancial, como Platão já havia reconhecido. Leibniz aponta para o fato de que nada neste mundo existe sem instanciar um padrão ou uma natureza. Por definição, essa natureza não é material, pois está presente em muitos sem ser dividida ou diminuída.

Exemplificando, o padrão matemático que descreve um determinado tipo de movimento dos corpos se repete inteiramente, sem diferença, divisão ou diminuição, em todas as situações nas quais os corpos se engajam naquele tipo de movimento. Não se trata de algo material. É uma estrutura formal que se manifesta em cada um de seus exemplares concretos e irrepetíveis. Sem esses padrões, as coisas sequer poderiam ser algo. Leibniz compara com um fluxo insubstancial, mas até essa comparação é imprópria, pois o fluxo é fluxo de algo, como o fluxo de água.

Em resposta à segunda pergunta proposta no início do texto, se as coisas agem realmente, não há dúvida da resposta positiva se se compreendeu corretamente que a natureza das coisas não se distingue de sua força de agir e de sofrer. Toda substância individual age ininterruptamente. O contrário disso seria admitir que Deus é que age em cada uma das ações das coisas, tese que defendem os ocasionalistas como Malebranche. Além dos problemas expostos acima, isso seria negar a liberdade humana e o testemunho íntimo da origem das ações imanentes na vontade.

É comumente afirmado que o corpo é naturalmente inerte. Leibniz considera que isso é verdade, se bem compreendido. Um corpo em repouso não se colocará a si mesmo em movimento e nem será posto em movimento por outro sem opor alguma resistência. Tampouco mudará espontaneamente sua direção ou sua velocidade. Nenhuma dessas verdades pode ser deduzida somente das característica geométricas da matéria (res extensa de Descartes). A matéria, portanto, não é indiferente ao movimento e ao repouso como dizem comumente, mas é dotada de uma inércia natural. 

Essa força passiva, a impenetrabilidade e alguma coisa de mais que Laibniz considera a noção de matéria primeira ou massa, que é a mesma nos corpos e proporcional à sua grandeza. Como há na matéria uma inércia natural ao movimento, assim também os corpos e todas as substâncias possuem uma resistência natural à mudança. Por outro lado, o mesmo corpo, posto em movimento por outro, tende a manter o élan recebido, e a velocidade constante, resistindo à mudança. 

Como essas atividades não podem ser deduzidas da massa, que é passiva, nem da extensão (característica geométrica), resta admitir que há nos corpos uma entelequia primeira** que age sempre. Nos seres vivos, esse princípio se chama alma, e nos outros seres é a forma substancial. A verdadeira substância, unidade constituída de forma e de matéria, é que Leibniz denomina como mônada. Sem essa unidade verdadeira os corpos não seriam mais do que agregados.***

Tudo isso mostra, encerra Leibniz, que o ocasionalismo de Sturm e de outros, conduz não ao engrandecimento da glória de Deus pela supressão de um suposto ídolo da Natureza, ideia de origem pagã. Ao contrário, dilui as coisas criadas, torna-as meras meras modificações de uma única substância divina, e, tal qual Spinoza, Sturm parece fazer de Deus a verdadeira natureza das coisas. Aquilo que é desprovido de toda potência ativa, de toda marca distintiva, de toda razão de subsistir, não pode ser considerado uma substância. 

É interessante como o mesmo ocasionalismo será reafirmado por George Berkeley doze anos depois em seu Treatise. Entre os argumentos do bispo anglicano de Cloyne está exatamente a noção de que o conceito de Natureza é de origem pagã e de que verdadeiros cristãos deveriam admitir que todas as coisas provém de Deus, como afirma explicitamente a Bíblia. O problema é que negar a natureza significa dissolver as criaturas, pois se Deus é a única agência causal não há nada de substancial nas coisas, nada que caracterize X como X. 

No fundo, não há X, existe somente Deus agindo do modo X costumeiramente e enquanto Ele assim o desejar. Nada, rigorosamente nada, garante ou implica a permanência de qualquer traço, marca, propriedade ou característica de nenhum ser no momento seguinte. Inexiste forma, essência, natureza ou padrão. Tudo o que identificamos (o que consideramos idem) como classes, padrões ou constâncias não existem na realidade. De certo modo, poderíamos até afirmar que não existe realidade, se por esse termo entendemos um todo ordenado.

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Leia também:

Νεκρομαντεῖον: Leibniz (oleniski.blogspot.com)

Νεκρομαντεῖον: George Berkeley (oleniski.blogspot.com)

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*Em inglês, understanding, "estar por baixo", algo como estar no fundamento da coisa, no que a sustenta.

** Entelequia, ἐντελέχεια, no grego. Em Aristóteles, significa o princípio interno de organização e de ação do ente. A tradução seria algo como "ter o fim dentro". Possuir em si mesmo como algo intrínseco o fim, o termo, a natureza que determina o que a coisa é, e que, por conseguinte, determina o desenvolvimento imanente da coisa, bem como seus poderes, suas operações, o que ela pode fazer ou sofrer.

*** Agregado tem aqui o sentido daquilo que está junto sem nenhum princípio unificante real. Como várias folhas de árvore pode ser arrastadas pelo vento e juntas formarem um monte sem que haja nenhuma unidade real por trás dessa união que é meramente fortuita.

domingo, 10 de setembro de 2023

Mestre Eckhart, o vazio e a liberdade de Deus

"Com efeito, Deus não busca Seu próprio bem. Em todas as Suas operações, Ele é vazio e livre, e opera por verdadeiro amor."

MEISTER ECKHART, Sermão 1

No seu Sermão 1, o místico medieval renano Meister Eckhart, interpreta simbolicamente a passagem evangélica (Mateus 21, 12) na qual Cristo expulsa os vendilhões do Templo. A interpretação óbvia, à primeira vista, é a de que o Senhor simplesmente desaprova o comércio dentro das dependências do espaço consagrado ao culto espiritual de Deus. Eckhart, sem negar o sentido literal do texto, transporta a dinâmica dos acontecimentos para a interioridade da alma humana.

A razão pela qual aqueles que vendiam e compravam dentro do Templo é que este simboliza a alma humana cujo centro deve ser ocupado por Cristo, o próprio Deus. A alma do homem é o que o diferencia de todos os outros entes da realidade criada por sua semelhança com o próprio Princípio de todas as coisas, como explicitado pelo texto bíblico do Gênesis (1,26): "Façamos o homem à nossa imagem e semelhança". Essa similaridade entre a alma e Deus é o que fundamentará metafisicamente a possibilidade do total esvaziamento do cristão no Vazio divino.

Sendo a alma o Templo, os vendilhões só podem ser simbolicamente conteúdos ou atos da própria alma. No caso, só podem ser obstáculos à entrada de Cristo. Os comerciantes não são exatamente más pessoas, diz Eckhart, mas representam aqueles cristãos que na vida se abstém de todos os pecados grosseiros, e que realizam boas obras como jejuns, vigílias e orações. O seu erro, o que constitui o seu comércio, sua venda e compra, é o fato de que todas essas boas ações serem ditadas pelo desejo de receber de Deus algum outro dom que não Ele mesmo.

Eckhart ultrapassa uma interpretação moralista óbvia a fim de enunciar verdades metafísicas fundamentais. Sim, de fato, o cristão peca quando só faz o bem motivado pelo interesse por bens que não o próprio Senhor. Deus se torna um meio e não um fim em si mesmo. A questão, porém, tem dimensões mais profundas. O homem que faz esse comércio com Deus se esquece que qualquer bem que ele deseje é infinitamente menor que o próprio provedor desse bem. Não basta fazer o bem, embora seja um passo necessário. É preciso fazer o bem com a correta disposição de espírito, por assim dizer.

Novamente, não se trata aqui de mero discurso moral. Eckhart está ensinando como o homem pode ser verdadeiramente bom, no seu grau mais alto de perfeição que sua semelhança ontológica com Deus lhe concede. Em certo sentido, o que o místico renano quer expressar é que só se age bem quando se manifesta através de nós o Bem, e não as nossas preferências. 

Embora o próprio Eckhart não a cite, creio que a passagem evangélica seguinte fornece a chave desse mistério: "Replicou-lhe Jesus: 'Por que me chamas bom? Ninguém é bom, a não ser um, que é Deus!'" Isto é, rigorosamente, o Bem reside somente em Deus, ou melhor, o Bem é Deus, e mais nenhum ente que não seja Ele pode reivindicar esse título. Comerciar com Deus em troca de qualquer bem é não compreender quem é Ele, in the first place. 

Tudo o que esses comerciantes são, eles recebem de Deus, e tudo o que possuem, também o recebem de Deus. Nada pertence a eles. Portanto, o Senhor nada deve a eles por seus supostos atos de bondade. Se Ele concede bens aos homens, não é por recompensa ou por troca de favores. "Sem mim, nada podeis fazer" (Jo 15,5). O mestre renano chama a atenção aqui para um tema comum da metafísica neoplatônica medieval, a indigência ontológica. 

O fato mais patente de nossa realidade humana é que a nossa existência foi precedida por nossa inexistência e será sucedida novamente por nossa inexistência. Só existimos porque fomos trazidos à existência por entes que já existiam, pai e mãe, nossas causas próximas, e, subindo a cadeia, todas as nossas causas remotas, como nossos ancestrais. Sequer o fato de existir é algo que nos pertença como uma propriedade intrínseca. Nós recebemos a existência, não a possuímos absolutamente, dado que ela cessará, em algum momento do futuro, na morte, queiramos ou não.

Metafisicamente, sequer nossa realidade pertence a nós. Toda posse se torna ilusória diante do fato de que os bens também são transitórios em si mesmos ou, pelo menos, só podem ser fruídos transitoriamente, dado que nosso tempo de existência é limitado. Todo o bem que nos atrai no mundo só é um bem participado, e não o Bem imparticipável. A condição das coisas deste mundo é tão fugidia e precária que alguns neoplatônicos medievais, como Ulrich de Strasburg, afirmavam sem peias que as criaturas são falsos entes. 

Agostinho de Hipona, outro neoplatônico (da antiguidade tardia), no início do Livro XI de sua obra magna Confissões, já afirmava a relativa inexistência das coisas cambiantes deste mundo:

"Portanto, Senhor, Tu as criastes, Tu que és belo, pois elas são belas; Tu que és bom, pois elas são boas; Tu que existes, já que elas existem. No entanto, nem são tão belas, nem tão boas, nem existem tal como existes, Tu que és o Criador delas. Comparadas contigo, nem são belas, nem boas, nem mesmo existem". 

O bispo africano expressa perfeitamente o circuito da realidade. Conhecemos o belo limitado nas coisas, subimos na direção de sua Fonte última, e ali, já fora de todas as limitações e particularidades, compreendemos que, comparadas com a Fonte última, nenhuma das coisas belas é realmente bela. Do mesmo modo, a existência contingente das coisas deste mundo eleva o intelecto na direção de uma existência necessária, ou seja, sem limites, de tal modo que, quando atingimos esse ápice, compreendemos que nenhum dos entes daqui merece o título de existente.

Entendidos corretamente, os argumentos cosmológicos tradicionais de demonstração da existência de Deus buscam responder justamente à seguinte pergunta: de onde vem o poder de existir que as coisas evidentemente exibem, mas que, ao mesmo tempo, evidentemente não reside em nenhuma delas como uma propriedade que lhes seja intrínseca? A instabilidade ontológica dos entes, sua impermanência radical, nivela todos na mesma relativa inexistência. É óbvio que as coisas existem, mas somente de forma derivativa e fugidia.

Mestre Eckhart prossegue o sermão afirmando que aqueles que tentam comprar e vender em suas relações com Deus não entendem a verdade. Quando Cristo entra no Templo, como a luz que expulsa as trevas, a ignorância é expulsa da alma e a Verdade se revela inteiramente. Deus não age por nenhum bem externo a Ele mesmo. Deus é vazio e livre, age por verdadeiro amor. Assim também age o homem unido perfeitamente ao Senhor, não a partir de si mesmo, vazio e livre, sem jamais buscar seus próprios interesses, tudo realizando pela glória de Deus.

O que Eckhart afirma nessa curta, porém metafisicamente densa, passagem sobre a entrada de Cristo se segue do que foi dito sobre a indigência ontológica dos entes. O que significa a entrada de Deus na alma senão a completa desaparição de todo e qualquer ente? Deus não aparece na alma como algo em meio a outros algos. Enquanto Ele aparecer na alma como algo, Ele não estará plenamente na alma. Será um ídolo, uma imagem, um pensamento, um conceito, ou um bem que compete com tantos outros bens o coração do homem.

Note-se que Eckhart não está sugerindo que Deus deva ocupar a alma como um objeto de obsessão pode ocupar a mente do obcecado. Um homem pode ser obcecado por dinheiro a tal ponto que nada mais tem lugar em sua mente. Todavia, esse é o caso extremo oposto do que Eckhart está tratando. A obsessão significa conceder a um ente determinado o estatuto de única realidade, expulsando simultaneamente toda a multiplicidade de bens que há no mundo. É o caso de um objeto inflado à condição de fundamento.

A despeito de fato de que todo e qualquer outro bem seja expulso da alma do obcecado, ainda se trata de um ente, de algo determinado. Deus não aparece na alma como algo, repito. Se é possível expressar dessa maneira imperfeita, o modo de aparição de Deus é o desaparecimento dos entes. Enquanto houver entes, não há Deus na Sua plenitude. Óbvio, admito, Ele se manifesta (pradurbhava) nos entes, e os entes não se constituem necessariamente em obstáculo para o homem santo contemplá-Lo.

A questão aqui não é rejeitar os entes, desprezá-los, negá-los ou julgar a sua existência um mal. Isso seria absurdo. O ponto é que Eckhart se refere a um grau de perfeição espiritual supremo no qual a alma não tem mais olhos para nada que não seja o próprio Deus, posto que compreende a verdade de que todas as coisas que há no mundo devem sua existência a Ele, sendo, portanto, sempre e necessariamente, bens de segunda ordem. Amar os bens acima do Criador dos bens seria como amar os frutos e desprezar a árvore que os gera. Quem possui a árvore, possui os frutos, mas o contrário não é verdadeiro.

Deus aparece na alma, como Cristo entra no Templo, esvaziando suas dependências de qualquer outra coisa que não seja Ele mesmo. Se a luz penetra completamente, sem limitações, não há como haver sombras. O Ser, para usar um termo caro à filosofia ocidental, só se revela na sua plenitude quando os entes desaparecem, e resta somente o vazio. Deus é vazio, afirma Eckhart. Deus é Nada, mas não é o Nada no sentido da ausência completa, absoluta e total de qualquer realidade efetivamente existente ou meramente possível. 

Deus é vazio justamente porque Ele não é nenhuma das coisas limitadas. Não sendo nenhuma das coisas, não aparece como uma coisa entre outras coisas, um ente entre outros entes. A entrada de Cristo no Templo tem que necessariamente ser acompanhada da expulsão dos vendilhões que ainda confundem Deus com algum ente, e que, por isso, têm o coração dividido. Aquele que é o fundamento último e a fonte de todos os entes não pode sofrer das limitações dos entes que Ele fundamenta.

Deus é vazio porque não cabe em nenhuma das categorias do pensamento humano e não está sob o jugo de nenhuma limitação. Por isso, é vazio e livre. Se ser livre é não estar sob algum tipo de limitação ou constrangimento interno ou externo, então não há liberdade real a não ser em Deus. Nele estão ausentes todos os tipos de obrigação ou de constrangimento. O que poderia ser a Realidade, no seu grau último e fundamental, senão absoluta liberdade e vazio?*Nesse sentido, buscar a Realidade é buscar o Vazio.

Perguntas sobre se Deus segue a lógica ou sobre se o certo moralmente é certo somente porque Deus assim o quis e não por ser certo em si mesmo, são questões próprias de quem não compreendeu o que Deus é, e O confunde com algum ente, por mais poderoso que esse ente seja. Não há sentido em se perguntar à Realidade por qual razão ela é do jeito que ela é. Se houvesse alguma razão anterior à Realidade, essa razão seria a Realidade. E a pergunta poderia ser refeita sempre com o mesmo resultado ad infinitum.

A absoluta liberdade divina não pode ser compreendida em termos de arbítrio humano. Não há diferença entre as leis racionais e a liberdade na unicidade infinita de Deus. Ele não obedece a leis das quais Ele mesmo é o fundamento. Nem tem outro bem ao qual se inclinar. Não age por interesse próprio, pois só possui interesse aquilo que sente a falta de algo. Age por puro amor, por pura doação. Entretanto, a ação divina não deve ser entendida como a ação humana, que é limitada e temporal.

Só pode receber Deus na alma, como Cristo entra no Templo, quem não possui nada ali além do próprio Deus. O cristão unido plenamente ao Senhor, afirma Eckhart, deve ser como o Senhor, vazio e livre. Quem é vazio não possui interesses próprios e nem age movido pelo desejo de algum bem útil para si mesmo. O seu vazio não é o vazio de quem está morto para a vida, daquele que não enxerga valor em nada. Não se trata de nihilismo, nem de uma impotência ou de uma incapacidade.

Ao contrário, é o vazio de quem se encontra no âmago da coincidentia oppositorum**, lá mesmo onde todas as coisas têm a sua origem "antes" de serem originadas. Poderíamos afirmar que só se conhece Deus não conhecendo mais nada. O Senhor entra no Templo, necessariamente todo o resto é desaparece. Os entes desaparecem não porque são ofuscados por um outro ente muito maior que eles, mas sim porque são reabsorvidos na sua Fonte última. 

Solve et coagula. O que antes se solidificou agora se dissolve. O que foi expirado é inspirado. O interesse por qualquer ente desaparece quando se está no centro emanador de toda e qualquer possibilidade. Nesse sentido, é correto afirmar que aquele não possui nada, possui tudo. O que é mais valioso, o produto de uma capacidade ou a capacidade que o produz? A onipotência não é mais do que a liberdade e o vazio de Deus, ou seja, a capacidade inesgotável da Realidade de tornar real o que quer que ela determine que se torne real. 

A perfeição espiritual do cristão consiste em ser completamente vazio como Deus é vazio. A alma não busca mais seu interesse quando age. Situada no mais íntimo do Princípio, a alma não deseja mais nada, não age por interesse próprio, e nem em troca de algum bem. "Já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim", diz o apóstolo (Gálatas 2:20). A alma deve permanecer tão vazia como se ela ainda não existisse. A alma também desaparece quando Deus aparece.

Dito de outra forma, enquanto ainda há algo, ou, principalmente, enquanto ainda há alguém, a presença do Senhor não é perfeita. O Absoluto não nega o relativo, mas o engloba precisamente porque o transcende. Tudo desaparece diante de Deus porque todas as coisas são reunidas sem antinomia em seu Princípio. É somente quando o cristão se esvazia de si mesmo que ele pode agir exclusivamente por Deus e como Deus.

Retornando ao texto evangélico, Eckhart nota que Jesus, mansamente, exorta aqueles que ofereciam pombos no Templo que libertassem os pequenos animais. Simbolicamente, os pombos são as boas obras dos bons cristãos que tudo realizam por amor a Deus, e não por interesse próprio, mas que permanecem ligados à propriedade, ao tempo e ao número, ao antes e ao depois. Falta-lhes ultrapassar até mesmo essas boas ações realizadas por amor a Deus no âmbito do tempo e da propriedade.

Esses bons cristãos deveriam ser como Jesus, o Verbo, que tudo recebe eternamente no seio do Pai, sem nenhum obstáculo de propriedade, de antes ou depois, vazio e livre. Não é necessário entrar aqui em todas as sutilezas da teologia trinitária católica, embora alguns comentários sejam oportunos. O Catolicismo afirma que Deus é uma trindade consubstancial, isto é, há uma só e mesma natureza divina (monoteísmo), que preserva sua unicidade a despeito da presença de três Pessoas divinas, Pai, Filho e Espírito Santo.

"Deus de Deus, luz da luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro", assim o Credo Niceno-Constantinopolitano se refere a Cristo. O Filho é gerado, não criado, pelo Pai desde toda a eternidade, em um evento atemporal, onde não há antes ou depois, mas que, por assim dizer, ocorre sempre e desde sempre. O Filho tudo recebe do Pai e O reflete perfeitamente. É por isso que o mestre renano afirma que Cristo é vazio e livre. Ele não guarda nada para si mesmo, não possui outra vontade que a do Pai desde toda a eternidade.

Gelassenheit, termo que Eckhart utiliza para descrever esse nível de perfeição a que o cristão pode alcançar, admite várias traduções como desapego, serenidade, calma, repouso, equanimidade, declinação, entre outros. Em um de seus tratados, o mestre define Gelassenheit como um estado de absoluta imperturbabilidade e imobilidade com relação a qualquer acontecimento, bom ou ruim, alegre ou triste. Mais profundamente, esse é o modo de ser de Deus, pois nada O move em qualquer direção. No caso do ser humano, Eckhart explica que "estar vazio de todas as coisas criadas é estar cheio de Deus, e estar cheio das coisas criadas é estar vazio de Deus."

A alma desapegada, tendo abandonado a si mesma, mergulha na Luz eterna, incriada e sem mescla de Deus. Ali ela encontra o seu nada, e nesse nada ela está tão completamente afastada de qualquer coisa criada que, por seu poder próprio, não pode retornar à nada daquilo que é criado. A alma ousou se aniquilar, não possui mais nada de si mesma para retornar ela mesma a si mesma. Nesse estado de perfeição, quando só Deus aparece, todo o resto necessariamente desaparece. Todos os entes são reduzidos a nada, dado que sempre foram nada.

As coisas não são literalmente destruídas ou aniquiladas por Deus. Ocorre que a alma, quando perfeitamente unida a seu Senhor, percebe com insofismável clareza a sua absoluta indigência ontológica (assim como a de todas as outras coisas). Nada há nela que lhe pertença realmente, nada que se deva exclusivamente à ela. Não possuímos em nós mesmos o poder de existir. No fundo, somos nadas provisoriamente interrompidos. A nossa inexistência foi interrompida durante um curtíssimo espaço de tempo.

A entrada de Cristo no Templo acompanhada da expulsão dos vendilhões corresponde à compreensão do que realmente somos na escala da realidade. Nada é nosso, nada possui substancialidade. Do pecador mais grosseiro ao homem bom que ainda não se desapegou inclusive de suas boas obras, todos, em graus diversos, trocam Deus pelos entes. As almas se apegam ao nada dos entes em vez de receber tudo no Nada divino.

Em Cristo, a alma cresce incessantemente em todas as virtudes e potências, e se identifica com o Senhor de tal modo que nenhuma das coisas criadas no tempo e no espaço podem ter sobre ela qualquer efeito. Além disso, unida à Cristo, a alma se une à própria sabedoria divina, o que faz desaparecer de si toda a dúvida, todo o erro e toda a obscuridade. "Eu e o Pai somos um". Só se conhece Deus em Deus, a luz na luz. 

A alma retorna ao seu Primeiro Princípio, lá mesmo onde Cristo recebe e partilha com o Pai a mesma essencialidade simples, isto é, a natureza divina comum à Trindade. Ekhart usa a expressão einweiltigen weselicheit, que o medievalista Alain de Libera traduz como l'essentialité ou étantité simple, referindo-se à unidade da essência de Deus. Eckhart não está afirmando que exista uma causa essencial da Trindade, como se o Pai, o Filho e o Espírito Santo fossem criaturas ou efeitos de uma causa externa à eles. 

O que existe é uma única e indivisa natureza divina presente nas três Pessoas. Essa essencialidade simples é tanto a uniformitas, a consubstancialidade divina da Trindade, quanto o princípio primeiro criador de todas as criaturas. Poderíamos dizer, creio, que é a divinitas de Deus, aquilo que propriamente torna Deus o que Ele é: Deus. Obviamente, na Trindade, essa divinitas é a essencialidade simples que há em comum nas três Pessoas desde toda a eternidade. 

No caso das criaturas (nós e todas as outras coisas), a mesma essencialidade divina é seu princípio criador, ou seja, os entes são criados por Deus, trazidos à existência. Acontece que, quando está unida à Cristo perfeitamente, a alma se encontra no fundo dessa essencialidade, tendo retornado à fonte infinita de onde saiu. Eckhart assevera que a alma está nela mesma, fora dela mesma, acima dela mesma e acima de todas as coisas.

A perfeição espiritual é o retorno ainda em vida ao vazio divino, lá onde todas as coisas estão presentes antinomicamente como possibilidades eternas no seio da essencialidade simples de Deus. Que não esqueçamos que quando falamos da natureza ou da essência divina não nos utilizamos desses termos de modo unívoco. Sem dúvida Deus não possui uma essência no sentido de um conjunto limitado de características necessárias e suficientes para que um ente pertença a uma certa classe ou espécie. 

Deus não é um ente, e nesse sentido Ele não possui uma essência que O distingue de outros entes. A essencialidade simples é um termo imperfeito (como são todos os termos) para expressar a diferença absoluta de Deus. Na realidade, a divinitas, a essencialidade simples, é completamente indizível, inexprimível, incognoscível, incompreensível e inefável. Não é por capricho que Meister Eckhart fala de Vazio ou de Nada a fim de referir-se ao Senhor.

A alma, unida a Cristo no fundo insondável da essencialidade divina, realiza o grau máximo do desapego, Gelassenheit, ainda nesta vida. Sem negar as criaturas, mas transcendendo-as em seu Princípio, o cristão se instala imóvel e equânime no centro da Realidade. Nada o abala, e nada o move ou o interessa a não ser o próprio Deus. Cristo entrou no Templo, os vendilhões se foram e as pombas alçaram voo. Não há sequer eu e Tu. Só o Tu.

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*Sunya, Sunyata, (vazio, vacuidade) na linguagem budista Mahayana

** O termo não é originalmente utilizado por Eckhart no texto.

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