terça-feira, 14 de junho de 2016

Michael Polanyi: ciência, totalitarismo, nihilismo e inversão moral



"A verdadeira antítese é, portanto, entre o Estado e as coisas invisíveis que guiam os impulsos criativos dos homens e nas quais as consciências dos homens estão naturalmente enraizadas. Os fundamentos gerais da coerência e da liberdade em sociedade podem ser considerados seguros na medida em que os homens sustentam sua crença na realidade da verdade, da justiça, da caridade e da tolerância e aceitam a dedicação ao serviço dessas realidades. Por outro lado, espera-se que a sociedade desintegre-se e caia na servidão quando os homens negam, minimizam ou simplesmente negligenciam essas realidades e obrigações transcendentes." (tradução minha do original em inglês)

MICHAEL POLANYI, The Logic of Liberty, p.57


Os ensaios reunidos no volume The Logic of Liberty do químico e filósofo da ciência húngaro Michael Polanyi (1891-1976) têm como tema comum, como o o título da coletânea indica, a questão da liberdade. Em todos eles, o autor procura aclarar o conceito de liberdade e suas implicações.

Cientista, Polanyi tem como eixo de suas reflexões filosóficos a natureza do empreendimento científico e suas condições de florescimento e de desenvolvimento. Esse ponto de vista inicial, contudo, dá ensejo a análises filosóficas mais profundas acerca das condições de possibilidade de uma sociedade livre e de seus valores fundantes.

Para o pensador húngaro, a ciência só pode realizar-se e manter-se como tal se ela estiver ancorada em uma busca pelo conhecimento pelo conhecimento. Isto é, o fundo da pesquisa científica é sempre um desejo de conhecer pelo próprio conhecer. É o que se usa chamar de  ciência pura. O impulso pelo saber - ainda que nenhum efeito ou utilidade prática, ao menos inicialmente, possa se divisar no horizonte da pesquisa - é o que sustenta a ciência como empreendimento intelectual livre.

A liberdade da pesquisa expressa-se na liberdade dos pesquisadores, cada um buscando seus próprios projetos e interesses intelectuais, mas que submetem seus resultados à avaliação de seus pares, estando atentos aos trabalhos de outros pesquisadores. Essa dinâmica só é possível porque é governada por valores compartilhados por todos os pesquisadores. 

Esses valores fundam padrões de excelência e de avaliação que são mantidos em uma tradição que é passada a cada novo pesquisador através da educação acadêmica. Daí que Polanyi é capaz de falar de uma certa "ordem emergente" que caracterizaria o mundo da ciência. 

Embora cada um dos cientistas persiga seus próprios interesses intelectuais, todos estão atentos ao desenvolvimento realizado pelos outros pesquisadores e comparam seus trabalhos com aqueles de seus colegas. E todos eles realizam suas pesquisas tendo como pano de fundo uma tradição de busca da verdade pela verdade que define parâmetros e critérios avaliativos.

Assim, a pesquisa científica pode ser livre, pois o único controle necessário é realizado não por meios externos à ciência, mas pela fidelidade aos valores fundantes da tradição da atividade intelectual. Graças a esses valores de conhecimento pelo conhecimento, a ciência pura está livre dos controles aos quais a ciência prática não pode escapar.

Qualquer outro objetivo que não o da livre persecução da verdade pela verdade conduzirá a ciência ao serviço dos interesses práticos de governos e regimes e à escravidão do planejamento estatal. Polanyi cita como ilustração de sua tese a destruição da liberdade acadêmico-científica na URSS, em especial no escandaloso caso Lysenko, quando as autoridades do Partido promoveram um charlatão científico por causa de uma suposta incompatibilidade entre o mendelismo e o materialismo histórico marxista.

Polanyi, porém, considera que a ciência é o microcosmo da sociedade e que é possível alcançar um conceito adequado de uma sociedade livre utilizando-se dos mesmos conceitos. Diferentemente dos defensores da open society como John Stuart Mill e Karl Popper, Polanyi não considera que a sociedade liberal seria aquela que toda e qualquer opinião ou tese fosse bem-vinda e igualmente digna de atenção.

A sociedade assim concebida estaria condenada à destruição por uma contradição interna. Como defender valores inalienáveis em uma estrutura assim?Ao contrário, uma sociedade livre seria justamente aquela em que certos valores são inegociáveis e na qual teses que atentem contra esses valores fundamentais não são levadas em consideração.

A "sociedade livre", como Polanyi a denomina contrapondo-se à "sociedade aberta", é aquela nas quais os indivíduos estão livres para guiar suas vidas por valores que apelam às suas consciências. Isto é, os homens dessa sociedade são livres porque podem guiar-se por obrigações transcendentes, por valores inegociáveis como justiça, verdade, caridade, tolerância. 

A ciência não pode ser livre a não ser se os indivíduos possam livremente guiar suas pesquisas pela busca do conhecimento pelo conhecimento, valor central da tradição da liberdade intelectual. Analogamente, uma sociedade não é livre se nega a seus cidadãos o direito de cultivar suas vidas ancorados em uma tradição de valores transcendentes e inalienáveis de verdade, caridade, tolerância e justiça.

Por essa razão, todas as tentativas de planejamento da sociedade e da ciência que, por definição, precisam da negação dessas realidades para realizar seus intentos serão inevitavelmente totalitárias. As raízes dos totalitarismos nazista e comunista encontram-se, segundo Polanyi, em uma tradição de ceticismo corrosivo e materialista que insurgiu-se contra as antigas estruturas de poder e que erigiu a Razão como sua deusa e salvadora sem dar-se conta de que o questionamento de tudo conduz ao nihilismo.

Os movimentos liberais que derrubaram os antigos regimes no século XVIII apresentaram aspectos diferentes no mundo anglo-saxão e no continente europeu. Enquanto no primeiro a força incongruente e dissolvente do questionamento de todos os valores foi barrada por uma sólida tradição que primou não pelo anti-clericalismo, mas pela defesa da liberdade religiosa e individual, no segundo viu-se a luta pela completa destruição dos valores tradicionais e, principalmente, religiosos.

O problema é que a Razão - erigida como valor soberano - não se justifica a si mesma e o movimento ulterior de crítica e de questionamento conduziu logicamente o continente ao ceticismo com relação às suas próprias bases racionais. Sucedâneos políticos são propostos nos quais os valores não têm realidade em si mesmos e tão somente representam os efeitos inevitáveis de uma estrutura material que a tudo determina, como o marxismo.

Todos os valores postos em dúvida como consequência do poder dissolvente do questionamento sem limites, todos os valores transformados em efeitos mecânicos de causas materiais, nada de legitimamente humano resta ao homem europeu continental. Nasce, então, a figura do nihilista. É o nihilista, segundo Polanyi, que fará a transição entre as consequências lógicas da perda dos valores e as ações revolucionárias e destrutivas que fundaram os grandes massacres e tiranias do século XX.

Inicialmente um solitário sem um credo político definido, como Bazarov de Pais e Filhos de Ivan Turgeniev e Rodion Raskolnikov de Crime e Castigo de Fiodor Dostoievski, o nihilista rapidamente passa às ações terroristas e revolucionárias, como o "grupo dos cinco" de Os Possessos de Dostoievski. A conversão dos nihilistas de solitários individualistas em revolucionários políticos ferozes é o que explica a fim da liberdade ocorrido na Europa.

Polanyi afirma que teorias políticas como o marxismo foram adotadas pelos nihilistas por diversos motivos. Em primeiro lugar, elas reverberavam os antigos ditames da corrosão cética do Iluminismo radical. Em segundo, o marxismo predizia o futuro de uma sociedade livre dos valores e das estruturas antigas como um processo mecânico e inescapável, com a frieza de uma observação científica.

"O seu nihilismo impediu-os de exigir justiça em nome da justiça ou humanidade em nome da humanidade. Tais palavras foram banidas de seu vocabulário e suas mentes foram fechadas a esses conceitos. Porém, silenciadas e reprimidas, suas aspirações morais encontraram um canal na predição científica de uma sociedade perfeita. Aqui foi estabelecida uma Utopia científica que dependia somente da violência para a sua realização." (POLANYI, p. 130)

Esse processo de conversão configura aquilo que Michael Polanyi chama de "inversão moral", isto é, a negação do valor intrínseco e transcendente dos princípios éticos por meio de seu esvaziamento em termos meramente materialistas. O fim da liberdade acontece justamente quando valores como "razão" e "moralidade" são despidos de sua importância e autoridades intrínsecas por meio de interpretações materialistas.

O totalitarismo e a opressão que daí se seguem é maior e mais terrível do que qualquer opressão que possa ter advindo da antiga autoridade eclesial que - por mais controladora que pudesse ser - sempre reconheceu a importância intrínseca dos valores e deveres morais e racionais e sempre deixou espaço para o cuidado da consciência individual.

O Partido torna-se então o senhor de todos os atos humanos justamente porque não reconhece nenhuma esfera de consciência individual, de vida interior que deva escapar-lhe. Tudo é submetido à meticulosidade do controle justificado pela predição "científica" e materialista do futuro. Não há bases de valor objetivo e intrínseco com as quais qualquer indivíduo possa justamente opor-se aos tiranos de seu tempo. O homem não é mais homem e, portanto, não é mais livre.

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