domingo, 30 de setembro de 2012

Maimônides e os atributos divinos






"Certa pessoa, lendo as orações na presença do rabbi Haninah, dizia: ‘D’us, O grande, o valoroso, O tremendo, O poderoso, O forte, O potente.’ O rabbi disse a ele: ‘Você acabou todos os louvores a seu Mestre? Os três epítetos, ‘D’us, O grande, O tremendo’, não teríamos aplicado a D’us se Moisés não os tivesse mencionado na Lei e não tivessem os homens da Sinagoga vindo depois e estabelecido seu uso nas orações. E você diz tudo isso! Deixe-me ilustrar com uma parábola: ‘Havia uma vez um rei terreno que possuía milhões em moedas de ouro. Ele foi louvado por possuir milhões em moedas de prata. Isso, de fato, não o insultou?"


MOISÉS BEN MAIMÔNIDES, Guia dos Perplexos, cap. LIX

A história do rabbi Haninah é usada por Maimônides para ilustrar o problema dos atributos divinos. Em outros termos, o que podemos realmente atribuir a D’us sem ofendê-Lo? Na verdade, diz o sábio judeu, nada. Tudo o que dissermos sobre a realidade divina estará levando aquilo que é limitado ao núcleo do Ser supremo e, com isso, compurscando qualquer entendimento dessa realidade. Mas então nada pode ser dito d’Ele?

Maimônides afirma que qualquer que seja o atributo, ele não pertence exclusivamente ao objeto ao qual está aplicado. Embora esteja qualificando uma coisa, ele pode ser empregado para qualificar outras coisas. Se, por exemplo, alguém vê um objeto à distância e pergunta o que ele é e outra pessoa responde que se trata de um ser vivo, sem dúvida algo do objeto é conhecido. Mas como o atributo não se atribui exclusivamente ao objeto visto, permanece a questão acerca de qual tipo de ser vivo se trata. 

Os atributos positivos e os atributos negativos têm em comum o fato de que ambos necessariamente circunscrevem até certo ponto o objeto. Todavia, há uma diferença crucial entre eles. Os atributos positivos, embora não sejam peculiares ao objeto, descrevem a essência ou uma porção daquilo que queremos conhecer e os atributos negativos, por outro lado, não determinam a essência ou porção do objeto a não ser indiretamente, por exclusão daquilo que, de outra forma, não seria excluído.

E se o “objeto” a ser conhecido é D’us, o Ser perfeito, no qual nenhuma composição pode ser encontrada, então nada pode ser dito d’Ele a não ser negativamente. Qualquer coisa que se diga será, necessariamente, incluí-Lo em uma categoria que só serve para descrever seres limitados. “A Torah fala a língua dos homens”, lembra Maimônides. Ou seja, as Escrituras tomam os meios humanos para falar do Eterno, mas isso não significa que o que é dito d’Ele naquelas páginas, no que concerne à Sua essência, tenha exata correspondência com o que Ele é. 

O discurso sobre D’us deve ser, por conseguinte, negativo:

"Da mesma forma como por cada atributo adicional um objeto é mais especificado, e dessa forma trazido para mais próximo de uma apreensão verdadeira por parte do observador, assim também por cada atributo negativo adicional se avança na direção do conhecimento de Deus."

Toda definição se dá pela determinação do gênero e da diferença específica da coisa e todo atributo indica algo que a coisa tem, mas, ao mesmo tempo, limita-a. Estando a Realidade Suprema acima de qualquer limitação, todo atributo aplicado a ela significará diminuir sua perfeição e, por fim, definir D’us, dizer Sua essência, é colocá-Lo sob um gênero e sob uma especificação. Portanto, será como, na parábola do rabbi Haninah, louvar quem possui milhões em ouro dizendo que tem milhões em prata.

"Qual, então, pode ser o resultado de nossos esforços, quando tentamos obter conhecimento de um Ser que é livre de toda substância, que é o mais simples, cuja existência é absoluta, não se devendo à nenhuma causa,a cuja essência perfeita nada pode ser adicionado e cuja perfeição consiste, como mostramos, na ausência de todos os defeitos? Tudo o que entendemos é que, de fato, Ele existe, que Ele é o Ser a quem nenhuma de Suas criaturas é semelhante, que não tem nada em comum com elas, que não inclui pluralidade, que nunca é débil para produzir outros seres e cuja relação com o universo é aquela de um timoneiro com um barco. E mesmo esta não é uma relação, um símile real, mas serve somente para transmitir a nós a idéia que D'us governa o universo. Isto é, que D'us dá a ele duração e preserva sua organização necessária." (LVIII)


sábado, 22 de setembro de 2012

Descartes, Clavius, Beeckman e a Matemática Universal

                                         
                                                         Descartes e Isaac Beeckman

"As disciplinas matemáticas demonstram e justificam pelas mais sólidas razõestudo aquilo a que se dedicam a examinar,de tal forma que elas verdadeiramente geram ciência e expulsam completamente todas as dúvidas  na mente do estudante.  Dificilmente o mesmo pode ser dito de outras ciências, onde, na maior parte do tempo, o intelecto permanece hesitante e inseguro sobre a verdade das conclusões, tal é a multidão das opiniões e o  quão conflituosos são os juízos. Deixando de lado outros filósofos, as muitas seitas dos Peripatéticos são suficientes para provar isso. (...) Suponho que todos sejam capazes de perceber o quão distante isso está das demonstrações matemáticas. Os teoremas de Euclides, tanto quanto aqueles de outros matemáticos, são tão verdadeiros hoje, tão seguros em seus resultados, tão firmes  e sólidos em suas demonstrações,  quanto eles eram já  nas escolas muitos séculos atrás. (...) Assim sendo, uma vez que as disciplinas matemáticas  são dedicatas tão exclusivamente  ao amor e ao cultivo  da verdade, que nada é ali recebido que seja falso, nem mesmo aquilo que é meramente provável,  não há dúvida alguma que o primeiro lugar  entre as ciências deva ser concedido à Matemática."

CLAVIUS, Opera Mathematica


Étienne Gilson, no capítulo V de sua obra The Unity of Philosophical Experience, ao analisar a filosofia de René Descartes, aponta para dois acontecimentos interessantes dos primórdios do desenvolvimento do pensamento cartesiano. 

O primeiro deles é a influência de Cristóvão Clavius, o famoso matemático, geômetra e astrônomo jesuíta cujas obras reinavam absolutas na educação matemática dentro do currículo de ensino da escola de La Flèche, onde o Descartes fez seus estudos.

Gilson aponta para o impacto que a passagem acima, retirada da introdução da edição de 1611 do Opera Mathematica, pode ter tido sobre a inteligência do jovem francês. Nela nada é mais claro do que a afirmação da superioridade da matemática frente às outras ciências.

Ao contrário do amargo conflito de opiniões e de doutrinas e das incertezas que se estendiam por séculos e séculos (algo que já havia conduzido tantos ao ceticismo abraçado por Montaigne, outra grande influência na mente de Descartes), a matemática parecia atravessar os tempos como uma plácida região de certeza e solidez inabalável em meio ao tumulto incessante e febril das teorias e hipóteses das demais ciências.

Na matemática existiam verdadeiras demonstrações, raciocínio límpido, claro e indubitável, cujos resultados permaneceriam para sempre como um cabedal de verdades adquiridas pelo intelecto humano de uma vez por todas.

O que Clavius ali afirma é a superioridade científica da matemática. O que Descartes ouviu, ensina Gilson, foi a exclusividade da matemática como método de conhecimento científico.

Ora, os medievais, seguindo Aristóteles, conheciam e defendiam o caráter de certeza da matemática. O que eles jamais afirmariam seria a aplicação da matemática para a solução de quaisquer problemas científicas. Cada ciência trata de um conjunto de objetos determinados no real e o grau de certeza dessas ciências varia de acordo com a natureza desses mesmos objetos. 

Por conseguinte, seria estulto aquele que quisesse exigir de objetos não matemáticos a certeza  possível para objetos matemáticos. Diz Aristóteles na Metafísica, Livro XI, 3, 1061a [25-35], 1061b [5]:

"(...) o matemático investiga abstrações (pois antes de começar sua investigação, ele retira todas as qualidades sensíveis, como por exemplo: peso e leveza, dureza e seu contrário, e também calor e frio e outras contrariedades sensíveis, e deixa somente o quantitativo e o contínuo, às vezes em uma, duas ou três dimensões e os atributos quantitativos e contínuos destas. Ele não os considera  em nenhum outro aspecto e examina  as posições relativas de uns e seus atributos, as comensurabilidades e incomensurabilidades de outros e as proporções de outros. Contudo, atribuímos a uma só e mesma ciência todas essas coisas: geometria)."

A matemática tem sua certeza ancorada no fato de  que investiga abstrações, relações quantitativo-formais tomadas como subsistentes em si mesmas. Todavia, embora encaradas dessa maneira, essas mesmas relações não são, no mundo real, jamais encontradas a não ser como acidentes de coisas singulares e materiais. Como dizia Koyré, o mundo que os sentidos nos apresentam é um mundo do "mais ou menos", do "quase", do aproximativo, jamais o mundo da precisão.

A matemática era uma das três ciências teoréticas, junto com a Física e a Metafísica.  Nesse bem ordenado esquema das ciências cada uma delas ocupava um lugar determinado pela natureza de seu objeto de estudo. Assim sendo, somente uma mudança na concepção da natureza desses mesmos objetos poderia fazer com que a matemática se tornasse um método universal. 

Pois bem, Descartes leu em Clavius o que Clavius não afirmou, mas Gilson afirma que o segundo  acontecimento determinante no desenvolvimento da filosofia cartesiana se deu no encontro do jovem francês com um jovem holandês chamado Isaac Beeckman em 1618.

Beeckman, em seu diário, relata entusiamado como era bom ter encontrado alguém que se dedicasse, como ele, a "resolver problemas físicos por meio de demonstrações puramente matemáticas." Os dois tornaram-se de pronto amigos e trocaram correspondências nas quais tentavam resolver problemas de geometria e informavam um ao outro acerca de seus progressos nessa área.

O jovem e talentoso matemático holandês considerava-se, como Descartes, um físico-matemático. Mas se o ponto aqui é a aplicação da matemática ao mundo sensível, os escolásticos, seguindo novamente Aristóteles, haviam reservado um lugar para essa aplicação no que se convencionou chamar as "ciências médias".

Postadas entre a Física e a Matemática, as ciências médias ou intermediárias se caracterizavam pelo estudo das relações matemáticas nas coisas concretas. Ao invés de considerar os aspectos quantitativos  das coisas  como relações abstratas, separadas e subsistentes, como fazia a Matemática, essas ciências (p.ex. astronomia, harmonia, ótica) consideravam esses aspectos quantitativos como ainda pertencendo às coisas.

Todavia, a Física ainda era a ciência do mundo sensível, pois tratava das naturezas das coisas, ou seja, daquilo que elas são em si mesmas.   

Mais uma vez,  as idéias cartesianas parecem interpretar de forma sui generis doutrinas já conhecidas pelos escolásticos. ''É possível tratar matematicamente inúmeros fenômenos, como quer o senhor Descartes, mas certamente não todos e não exclusivamente por tal método", disseram os escolásticos.

A descoberta cartesiana da geometria analítica (definição e representação de formas geométricas de modo numérico) tornou seu autor ainda mais confiante nas potencialidades da matemática. Se era possível reduzir a geometria à álgebra, porque não seria também possível estender o método matemático a todos os âmbitos? Eis o projeto da Matemática Universal.

A matemática é exata justamente pelo fato de ser uma abstração de toda e qualquer matéria da coisa considerada. Jamais testemunhamos números ou formas geométricas no mundo, mas sempre seres com cor, sabor, cheiro, etc. Como dizia Aristóteles, é possível se enganar com a forma de algo à distância, mas não com a cor. A evidência primeira dos sentidos está longe de ter a simplicidade abstrata dos objetos matemáticos.

E se, como lembra Gilson, o mais importante numa abstração não é que se deixa, mas o que se toma em consideração, então deveria ser claro que aquilo que se afirma de um aspecto particular de um objeto real é verdadeiro daquele aspecto e não daquilo que é deixado de fora dessa consideração.

Dada a ambição cartesiana, nenhuma outra solução há senão a de reduzir tudo a noções tão simples quanto as dos números e, concomitantemente, solapar todas as diferenças que os objetos apresentassem no caminho desse projeto.

Se o método universal é matemático, então ele deve ser tão exato e tão convincente quanto as demonstrações matemáticas. Uma vez que se tenham compreendido as premissas e se tenha raciocinado corretamente, as demonstrações se apresentam sempre como indubitáveis e certas.

Ora, então há que se encontrar conteúdos cuja verdade seja indubitável e que servirão de premissas para as deduções rigorosas dessa matemática universal. Mas onde conseguí-los? Não nos sentidos, é claro. Eles fornecem sempre esse conjunto múltiplo de seres em contínua mutação.

A matemática trabalha com idéias abstratas, por conseguinte é só nas idéias que se podem encontrar as premissas indubitáveis que servirão como fundamento de toda a ciência. Elas serão somente idéias claras e distintas, ou seja, idéias cujo conteúdo verdadeiro, uma vez compreendido pela meditação persistente, não pode estar sujeito a qualquer dúvida.

"Tudo o que puder ser conhecido clara e distintamente da idéia de uma coisa pode ser dito dessa mesma coisa.", eis o princípio diretor dessa Matemática Universal. Tudo o que preciso saber sobre um triângulo está contido em sua definição. Defina-se "triângulo" e se saberá o que é um triângulo. 

Da mesma forma, ao se alcançar as idéias claras e distintas de "pensamento", "Deus" e "matéria", conhece-se a natureza do pensamento, de Deus e da matéria. Tudo mais será rigorosamente deduzido de tais fundamentos.

Não mais o homem partirá das coisas para as idéias, mas das idéias para as coisas. E relações entre idéias.

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Sobre a ciência e seus fundamentos



"Quando os objetos de uma investigação, em qualquer departamento, têm princípios, condições ou elementos, é através do entendimento destes que o conhecimento - isto é, conhecimento científico - é alcançado. Pois não achamos que conhecemos uma coisa até que tenhamos apreendido suas condições primárias ou primeiros princípios e conduzido a análise até seus mais simples elementos."

ARISTÓTELES, Física, I, 184a [10]


Quando os primeiros filósofos jônios enunciaram suas teorias sobre a natureza do mundo, eles o fizaram segundo a idéia de que sob as aparências sensíveis havia uma substãncia única cuja  natureza explicaria todas as modificações e transformações que os sentidos nos apresentam.

No livro I da Física, Aristóteles afirma que cada um desses pensadores escolheu algum elemento - ou conjunto de elementos - como o substratum de todas as coisas e tomou-o como eterno, "tudo mais sendo somente suas afecções, estados e disposições."

Nessa pequena descrição que Aristóteles faz dos primeiros físicos, duas coisas chamam a atenção. Em primeiro lugar, a afirmação de que a realidade a ser conhecida está sob as aparências sensíveis. Ou seja, a verdade do sensível não é o próprio objeto sensível dado hic et nunc, na imediatidade da experiência dos sentidos.

A verdade está no substratum, naquilo que está subjacente ao que se apresenta aos sentidos, mas que, no entanto, os objetos sensíveis manifestam como modificações, afecções ou estados. Se o mundo deve ser conhecido, se a origem e fundamento últimos do que é observado pelos sentidos deve ser objeto de ciência, isso só pode se dar pela identificação de uma estrutura subjacente aos próprios objetos sensíveis.

Como Aristóteles aponta, o estôfo do mundo, para tais pensadores,  era um substrato material que tinha em si "o princípio do movimento ou da mudança." Seja o que fosse esse substrato, era algo determinado: água, ar, fogo, terra, ou uma combinação desses elementos

Em segundo lugar, para todos esses pensadores o substrato do mundo deve ser imutável. E o motivo parece claro: se todas as coisas são modificações desse princípio único que rege o múltiplo, ele deve ser sempre idêntico a si mesmo. O fundamento não muda para que todas as coisas possam mudar. 

Na identificação do substrato último de todas as coisas com um elemento (ou conjunto de elementos) já se mostra a apreensão de uma ordem, pois se o elemento último é algo, tem uma ordem e a ordem que impõe ao mundo funda-se na sua própria imutabilidade.

Já se pode divisar aqui um germe daquilo que caracterizará todo conhecimento: a apreensão do uno no múltiplo. Isto é, a redução da multiplicidade cambiante a uma realidade estável subjacente que serve como regra ordenadora dessa mesma mutabilidade manifestada aos sentidos.

Quando Parmênides afirma que não há multiplicidade e que os sentidos são enganosos porque nos apresentam dados que estão em franca contradição com a afirmação lógico-racional de que o ser é imutável, ele está, entre outras coisas, enfatizando um dos lados da questão do conhecimento. Somente se conhece realmente aquilo que é imutável.

E, no entanto, os sentidos nos fornecem sempre seres mutáveis, cambiantes, o "tudo muda" de Heráclito. Como seria então possível conhecer? E se conhecer é apreender aquilo que há de mais real, como pode ser real um mundo em que as coisas vêm a ser e deixam de ser incessantemente?

O problema é herdado por Platão e Aristóteles e estes dão respostas contrárias a ele. Para Platão, conhecimento é rememoração do conhecimento haurido na contemplação das Idéias (ou Formas) eternas e imutáveis e os seres do mundo sensível não são mais do que uma imitações imperfeitas daquelas Idéias. 

Como ensina Victor Goldschmidt: "Os objetos sensíveis provocam, como causas ocasionais, a reminiscência, mas as Formas não são 'extraídas' das coisas sensíveis." 

Por conseguinte, o mundo sensível não é objeto de ciência, de saber verdadeiro e certo, somente de opinião, ou, como diz Platão no Timeu, de "mito verossímil".

É exatamente porque o intelecto humano - a parte divina da alma e que, portanto, mais se assemelha a Deus - tem a capacidade de "extrair" das coisas sensíveis a Forma que se encontra materializada concretamente em seres individuais e singulares que o conhecimento do mundo sensível é possível, segundo Aristóteles.

Mais uma vez, a ciência só é possível porque o homem é capaz de apreender uma estrutura intrínseca e imutável que define a coisa, rege suas mudanças, determina suas operações e potencialidades e que é repetível indefinidamente, jamais podendo se reduzir a qualquer um dos seus exemplares concretos dados na experiência.

Mostra-se assim o caráter "abstrato" de  toda ciência. O que a ciência busca não é este ou aquele fato bruto e irrepetível na sua singularidade, mas aquilo do qual ele é uma mera instância passageira e que só é alcançado por abstração das singularidades dos exemplares concretos.

O mesmo vale quando o cientista contemporâneo se concentra em somente um dos aspectos dos entes reais, como por exemplo, as relações quantitativas entre objetos físicos. Qualquer descrição matemática de como os corpos se comportam em determinadas condições é uma afirmação de que as relações quantitativas "extraídas" da observação representam aspectos reais de sua constituição e que, por sua vez, tais aspectos - embora não sendo tudo o que os objetos são - estão radicados na estrutura última desses mesmos objetos.

Em suma, uma ciência, para que seja ciência, exige, como pressuposto, que haja uma estrutura fundante e subjacente às coisas e que essa estrura seja passível de abstração na mente humana. O que vale para o cientista não é, então, esta gota d'água tomada em si, mas o que nela se manifesta de universal e que ultrapassa toda a individualização.

Assim, para a ciência, ser ordenado é ser um exemplar ou instância de uma estrutura formal que jamais se reduz aos exemplares concretos que a manifestam e que, por isso, é indefinidamente repetível.

Mas não é preciso pensar que essa estrutura seja temporalmente anterior aos exemplares como uma Idéia platônica, mas sim que ela seja anterior lógica e ontológicamente a eles, como seu fundamento e regra imutável. Só se tem conhecimento dessas estruturas pelas instâncias que a atualizam na experiência sensível e concreta, porém só há conhecimento científico se essas instâncias - entes singulares e múltiplos - forem "ultrapassadas" na unidade de uma estrutura subjacente e imutável.

É pela apreensão dessas estruturas que se compreendem as "disposições" que os fenômenos da experiência apresentam. Em outros termos, quando um cientista diz que a substância X é inflamável, ele está usando uma linguagem disposicional. Ele afirma que a substância X é inflamável porque apresenta, em circunstâncias determinadas, a tendência, inclinação ou disposição de inflamar-se. Na linguagem da teleologia, ela tem a "inclinação natural para certos efeitos."

O cientista não diz somente o que se deu, o que efetivamente observou, ele prediz o que se observará no futuro a partir daquilo que observou no passado, bem como o que se daria como efeito caso a causa se apresentasse. Se P se desse, B se seguiria como efeito.

Isto é, aquilo que a ciência afirma é que a coisa considerada tem em si a disposição de produzir certos efeitos e que essa disposição se mantém como uma potencialidade ou capacidade real da coisa mesmo que as circunstâncias adequadas à sua manifestação e atualização não se apresentem.

A substância X não é inflamável somente quando ela efetivamente pega fogo, mas principalmente quando ela não se inflama.  Ela é inflamável porque pode pegar fogo, porque essa é uma de suas capacidades reais, algo daquilo que a constitui.

Por conseguinte, qualquer ciência digna desse nome jamais pode ser um mero relatório de observações realizadas ou da conexão constante de eventos no tempo e no espaço. Ela deve ser, precipuamente, a identificação ou apreensão cognitiva de estruturas que se manifestam somente em entes singulares ou situações concretas no real observável, mas que sustentam essas mesmas instâncias na qualidade de fundamento imutável.