"Certa pessoa, lendo as orações na presença do rabbi Haninah, dizia: ‘D’us, O grande, o valoroso, O tremendo, O poderoso, O forte, O potente.’ O rabbi disse a ele: ‘Você acabou todos os louvores a seu Mestre? Os três epítetos, ‘D’us, O grande, O tremendo’, não teríamos aplicado a D’us se Moisés não os tivesse mencionado na Lei e não tivessem os homens da Sinagoga vindo depois e estabelecido seu uso nas orações. E você diz tudo isso! Deixe-me ilustrar com uma parábola: ‘Havia uma vez um rei terreno que possuía milhões em moedas de ouro. Ele foi louvado por possuir milhões em moedas de prata. Isso, de fato, não o insultou?"
MOISÉS BEN MAIMÔNIDES, Guia dos Perplexos, cap. LIX
A história do rabbi Haninah é usada por Maimônides para ilustrar o problema dos atributos divinos. Em outros termos, o que podemos realmente atribuir a D’us sem ofendê-Lo? Na verdade, diz o sábio judeu, nada. Tudo o que dissermos sobre a realidade divina estará levando aquilo que é limitado ao núcleo do Ser supremo e, com isso, compurscando qualquer entendimento dessa realidade. Mas então nada pode ser dito d’Ele?
Maimônides afirma que qualquer que seja o atributo, ele não pertence exclusivamente ao objeto ao qual está aplicado. Embora esteja qualificando uma coisa, ele pode ser empregado para qualificar outras coisas. Se, por exemplo, alguém vê um objeto à distância e pergunta o que ele é e outra pessoa responde que se trata de um ser vivo, sem dúvida algo do objeto é conhecido. Mas como o atributo não se atribui exclusivamente ao objeto visto, permanece a questão acerca de qual tipo de ser vivo se trata.
Os atributos positivos e os atributos negativos têm em comum o fato de que ambos necessariamente circunscrevem até certo ponto o objeto. Todavia, há uma diferença crucial entre eles. Os atributos positivos, embora não sejam peculiares ao objeto, descrevem a essência ou uma porção daquilo que queremos conhecer e os atributos negativos, por outro lado, não determinam a essência ou porção do objeto a não ser indiretamente, por exclusão daquilo que, de outra forma, não seria excluído.
E se o “objeto” a ser conhecido é D’us, o Ser perfeito, no qual nenhuma composição pode ser encontrada, então nada pode ser dito d’Ele a não ser negativamente. Qualquer coisa que se diga será, necessariamente, incluí-Lo em uma categoria que só serve para descrever seres limitados. “A Torah fala a língua dos homens”, lembra Maimônides. Ou seja, as Escrituras tomam os meios humanos para falar do Eterno, mas isso não significa que o que é dito d’Ele naquelas páginas, no que concerne à Sua essência, tenha exata correspondência com o que Ele é.
O discurso sobre D’us deve ser, por conseguinte, negativo:
"Da mesma forma como por cada atributo adicional um objeto é mais especificado, e dessa forma trazido para mais próximo de uma apreensão verdadeira por parte do observador, assim também por cada atributo negativo adicional se avança na direção do conhecimento de Deus."
Toda definição se dá pela determinação do gênero e da diferença específica da coisa e todo atributo indica algo que a coisa tem, mas, ao mesmo tempo, limita-a. Estando a Realidade Suprema acima de qualquer limitação, todo atributo aplicado a ela significará diminuir sua perfeição e, por fim, definir D’us, dizer Sua essência, é colocá-Lo sob um gênero e sob uma especificação. Portanto, será como, na parábola do rabbi Haninah, louvar quem possui milhões em ouro dizendo que tem milhões em prata.
"Qual, então, pode ser o resultado de nossos esforços, quando tentamos obter conhecimento de um Ser que é livre de toda substância, que é o mais simples, cuja existência é absoluta, não se devendo à nenhuma causa,a cuja essência perfeita nada pode ser adicionado e cuja perfeição consiste, como mostramos, na ausência de todos os defeitos? Tudo o que entendemos é que, de fato, Ele existe, que Ele é o Ser a quem nenhuma de Suas criaturas é semelhante, que não tem nada em comum com elas, que não inclui pluralidade, que nunca é débil para produzir outros seres e cuja relação com o universo é aquela de um timoneiro com um barco. E mesmo esta não é uma relação, um símile real, mas serve somente para transmitir a nós a idéia que D'us governa o universo. Isto é, que D'us dá a ele duração e preserva sua organização necessária." (LVIII)
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