sexta-feira, 29 de março de 2019

Radhakrishnan, Yoga, Plotino e o ideal espiritual supremo



"A realidade não é um objeto de conhecimento, mas é conhecimento. Pois quando o conhecimento é objetificado, o conhecedor e o conhecido são mutuamente estranhos. Em tais casos, não podemos conhecer um objeto, mas apenas saber sobre ele. No verdadeiro conhecimento do real, devemos conhecer o real e não meramente idéias sobre ele. Nós devemos conhecer o espírito e pelo espírito."

S. RADHAKRISHNAN, Eastern Religions & Western Thought, p. 124

Sarvepalli Radhakrishnan (1888-1975), antecessor de Robert Charles Zaehner na cadeira de Spalding Professor of Eastern Religion and Ethics na Universidade de Oxford, em sua obra Eastern Religions & Western Thought empreende vasta comparação entre as religiões orientais e ocidentais além de defender a tradição espiritual hindu de críticas comuns de pensadores e religiosos cristãos. Ao discutir o supremo ideal espiritual hindu, Radhakrishnan trata dos estágios de aprofundamento impessoal da consciência na unificação com o divino que está para além da consciência comum.

Segundo o autor, há estágios que devem ser entendidos como diferentes pontos de vista e não como passos sucessivos, a saber, a purificação, a concentração e a identificação. A purificação (correspondente à via purgativa) consiste na preparação ética essencial para a intuição espiritual.  Votos de castidade e de pobreza assim como austeras práticas ascéticas são adotadas com o intuito de purificar o espírito das impurezas e torná-lo um espelho limpo para refletir o divino.

No Yoga Sutra, de Patanjali, a ascese moral corresponde aos dois primeiros, yama e niyama, dos oito modos (ashtanga) da Yoga e tem como objetivo ultrapassar os obstáculos comuns à perfeição, como a avareza, a sensualidade, a glutonaria, a inveja e a preguiça. Os três modos seguintes têm como objetivo afastar a mente do corpo: asana (postura corporal), pranayama (controle da respiração), pratyahara (afastamento dos sentidos dos objetos exteriores). Tais modos constituem a vida contemplativa e favorecem uma mente disciplinada.

Os três últimos modos são dharana (concentração), dhyana (meditação) e, finalmente, samadhi (unificação). Neste estágio, o homem busca sua natureza última, ultrapassando as muitas camadas que se acumulam sobre seu ser verdadeiro. Radhakrishnan compara esse processo à anamnese em Platão, pois aquilo que é o espírito já está lá no íntimo do homem, mas precisa ser reconhecido.

Dharana é a concentração realizada por meio da repetição de um texto ou da fixação da atenção em um objeto externo (tal como uma imagem) com o objetivo de expulsar os pensamentos intrusos. Controlar a própria mente e concentrar a atenção em somente um objeto não é fácil. Logo aparecem pensamentos irrelevantes, desejos e preocupações que afastam a mente de seu foco. Portanto, é mister esforço e treino contínuos para alcançar um estágio menos discursivo onde a concentração aprofunda-se e a mente cessa de vagar. Tal é o estado de dhyana ou meditação. A mente concentra-se em seu objeto exclusivamente e sem distrações.

O último estágio é o samadhi ou identificação. A divisão consciente e a separação do Eu com o ser divino desaparecem. O individual cede lugar ao objeto, que o absorve totalmente.  Ele torna-se aquilo que contempla e a distinção entre sujeito e objeto é obliterada. É o vazio no qual a alma encontra tudo. Há quietude e paz na suprema identificação cujo arrebatamento ultrapassa todo regozijo, um conhecimento que ultrapassa a razão e todo conceito. A fim de exemplificar o samadhi, Radhakrishnan cita um trecho das Enéadas de Plotino, filósofo grego neoplatônico:

"Dado que na visão não havia dois seres, mas conhecedor e conhecido eram um só, se um homem pudesse preservar a memória do que ele era quando estava unido como o divino, teria dentro de si mesmo uma imagem de Deus. Pois, então, ele era um com Deus e não retinha nenhuma diferença, seja em relação a si mesmo ou em relação a outros. Nada movia-se dentro de si, nem raiva e nem concupiscência, nem mesmo razão ou percepção espiritual ou sua própria personalidade, se assim podemos expressar-nos. Capturado em um êxtase, tranquilo e sozinho com Deus, desfrutou de uma calma imperturbável. Encerrado em sua própria essência, não voltou-se a nenhum lado, tampouco a si mesmo. Estava em estado de perfeita estabilidade. Tornou-se a própria estabilidade...Talvez não devamos falar em visão. É, antes, algum outro modo de visão, um êxtase e uma simplificação, um abandono de si mesmo, um desejo de contato imediato, uma estabilidade, uma profunda intenção de unir-se ao que foi contemplado no santuário."  (Enéadas, VI, 9,7)

Radhakrishnan observa que esse estágio supremo é atingido por meio de completa concentração da mente no ser divino. Cada um dos estágios anteriores criam uma condição mental que torna possível que a verdade revele-se a si mesma no e para o espírito humano. Todavia, para que isso seja possível, a avidya (ignorância) tem de ser destruída, as paixões e as imperfeições com as quais identificamos nossa natureza devem ser eliminadas. Tudo deve ser rendido, nenhum senso de propriedade ou de possessividade deve permanecer.

"No samadhi, ou consciência extática, temos um sentido de contato imediato com a realidade última e de unificação dos diferentes aspectos de nossa natureza. É um estado de pura compreensão no qual o ser inteiro é unificado. Tornar essa sujeição completa da personalidade inteira ao divino um hábito assentado, uma condição permanente, e não meramente um episódio fugidio e transitório, é o objetivo  da disciplina religiosa." (Eastern Religions & Western Thought, p.51)

sexta-feira, 8 de março de 2019

Observações introdutórias ao problema filosófico do conhecimento



É quase impossível iniciar qualquer texto que verse sobre a questão filosófica do conhecimento sem citar a afirmação clássica de Aristóteles no início do livro primeiro da Metafísica: “Todos os homens por natureza desejam conhecer.”. O que é ali apontado é a propensão natural, compartilhada por todos os homens, para o conhecimento do mundo multifacetado que nos rodeia. 

Evidentemente, o conhecimento do ambiente circundante representa uma condição indispensável para a própria sobrevivência do homem. Saber onde se escondem os predadores, quais são os animais peçonhentos ou mesmo saber distinguir entre plantas comestíveis e ervas venenosas pode constituir a diferença entre continuar vivendo e morrer. Em muitos casos, tal gênero de conhecimento não se distingue substancialmente daquele aprendizado manifestado frequentemente nos animais irracionais.

Não poder-se-ia negar a esse saber prático a alcunha de conhecimento, pois assim como o mesmo Aristóteles admitia que o ser pudesse ser dito de diversas formas e sentidos, o conhecimento também pode apresentar-se sob diversas vestes. É o que o filósofo parece indicar logo depois, ainda no início do primeiro livro da Metafísica, afirmando que o interesse humano no conhecimento vai além da utilidade imediata e assume a forma de um saber desinteressado. Assim, ainda que nenhuma ação seja visada, o uso dos sentidos nos agrada por ele mesmo. 

Podemos observar o mundo que nos cerca sem exatamente acalentar o desejo de perpetrar uma ação qualquer. Podemos observá-lo pelo simples prazer ocioso de conhecê-lo. A esse gênero de ociosidade também corresponderá respectivamente um sentido diferente de conhecimento. Este não definir-se-á por suas virtudes práticas, mas por uma tendência a compreender o mundo pelo prazer da compreensão em si mesma.

A característica mais imediatamente constatável da filosofia é sua preocupação com o gênero de conhecimento descrito acima. Ao mesmo tempo em que, em sua definição, a filosofia incumbe-se a si mesma da árdua tarefa do “amor à sabedoria”, ela encara esta última a partir de uma interpretação precipuamente não-prática. Embora não negue o valor próprio daquilo que é conhecido por amor à ação, a filosofia toma como o sentido mais próprio do conhecimento aquilo que é conhecido por si mesmo. Segundo a filosofia, o ato de conhecer é, para o conhecimento, seu objetivo mais alto e seu próprio prêmio.

Embora a filosofia tenha se definido em termos de um saber que tem em si mesmo seu fim, permanecia a questão de como alcançar esse saber ou de quando estamos de posse dele. Pode-se certamente aproveitar, ociosa e recreativamente, as imagens e percepções fornecidas pelos sentidos sem aí perguntar-se sobre sua acuidade. Nesses momentos, pouco importa se uma sombra parece um homem sem sê-lo. Mas se a filosofia é uma atividade que tem parentesco com esse olhar ocioso, ela também não se resume a ele. Sua semelhança radica-se e termina no fato de não exigir do ato de conhecer uma utilidade imediata. Poucos, entretanto, poderiam chamar de conhecimento a visão equivocada de um homem numa sombra. 

O saber pode valer por si mesmo, mas somente se corresponde à realidade. A filosofia então não é uma atividade mental meramente recreativa e sem rédeas, mas uma atividade ao mesmo tempo livre dos constrangimentos da necessidade material e atada às necessidades da adequação do pensamento ao real. Dessa forma, a filosofia tomou para si historicamente a tarefa da busca incessante de caminhos que conduzissem infalivelmente o homem ao paraíso do conhecimento verdadeiro. 

Não obstante, se é possível afirmar que há conhecimento prático, é porque nele encontram-se elementos de verdade. Há correspondência de alguma ordem entre o que se pensa ser o real e o real ele mesmo. Por outro lado, é também possível confiar num saber prático qualquer e ainda assim admitir que se ignorem quase totalmente os fundamentos mais básicos das constantes que ligam os fenômenos. Não é preciso saber qual a razão última do movimento solar para se esperar um amanhecer. Nem mesmo é necessário ter uma noção correta dessa razão. O conhecimento prático é compatível com a falsidade das premissas que supostamente o sustentariam.

Contudo, têm-se intuitivamente a impressão de que é insuficiente o conhecimento operacional fornecido pelo saber prático e de que só há conhecimento verdadeiro de algo se não houver qualquer possibilidade de erro.  A impossibilidade do erro só pode ser alcançada quando se encontram as razões últimas das coisas. E tal saber liga-se precipuamente àquele olhar que não procura na coisa observada mais do que ela mesma e suas causas. O olhar livre da necessidade material imediata desloca-se na direção da busca por um saber que revele as estruturas fundamentais que tornam os fenômenos aquilo que eles são. 

O movimento que caracteriza o saber teórico é fundamentalmente aquele da redução da multiplicidade à unidade. Diante da vastidão vertiginosa dos seres que compõem o cenário deste mundo, o filósofo busca encontrar princípios limitados numericamente dos quais possam derivar-se o comportamento constante de todos os eventos que testemunha. O conhecimento teórico, o conhecimento verdadeiro, será a reunião de diversos fenômenos, ainda que separados no tempo e no espaço, sob um conjunto limitado de leis gerais e fundamentais. 

O processo de compreensão teórica do mundo é uma incessante discriminação entre o essencial e o acidental, o universal e o particular, o geral e o caso concreto, o gênero e a espécie, ou seja, entre aquilo que é a razão da coisa e a coisa que exemplifica a razão. Todo o desafio do entendimento racional é unir os sinais separados no tempo e no espaço em um todo coerente sob leis gerais que de fato assimilem a natureza última desses sinais. 

Contudo, um saber prático é supostamente capaz de fornecer bases suficientemente seguras para a ação humana mais imediata. De fato, historicamente, artefatos, utensílios, instrumentos e até mesmo maquinaria pesada foram inventados e utilizados muito antes que surgissem quaisquer teorias para explicar-lhes o funcionamento. Ao que parece, nesses casos, a necessidade criou o instrumento e a prática guiou seu aperfeiçoamento em um processo de tentativa e erro sem que considerações acerca dos fundamentos últimos dos fenômenos envolvidos fossem sequer cogitadas. 

Além disso, a perspectiva prática livraria o homem da incômoda herança de uma sucessão interminável de teorias, hipóteses e escolas de pensamento conflitantes e inconciliáveis entre si que a história do pensamento teórico parece nos legar. Poder-se-ia continuar a criar teorias como criam-se instrumentos e ferramentas, medindo sua eficácia na lida direta com os problemas concretos e aperfeiçoando-os segundo os resultados de seus desempenhos. Não há impedimentos para que se continue a construir escadas novas, adequadas à altura que se quer alcançar. Nem mesmo é necessário abandoná-las após o uso. É preciso somente que se mantenha nítido seu caráter meramente instrumental e não se pretenda medir o mundo pela altura das escadas.

É absolutamente inegável que boa parte das atividades humanas pode ser encarada a partir desse prisma sem risco de qualquer empobrecimento ou estagnação. Em muitas áreas, é justamente a consciência da falibilidade e dos limites de qualquer teoria frente à complexidade apresentada em um determinado campo que exige a modéstia teórica do pragmatismo. Nesses campos, apesar da proliferação de estudos ornados de gráficos e equações matemáticas, a visão adotada está longe daquela de um saber rigoroso e infalível acerca da natureza das coisas. 

O seu caráter está mais próximo do esquema da tentativa e erro controlado sempre pela consideração atenta dos resultados favoráveis ou desfavoráveis. As áreas de pesquisas científicas que se dedicam à criação e aperfeiçoamento de técnicas, aparelhos, procedimentos, maquinaria e instrumentos em geral indubitavelmente têm suas atividades girando em torno de objetivos exclusivamente práticos. Em tais setores o que importa são bons resultados no incremento da adequação dos instrumentos a situações e contextos bem determinados.

Apesar de atraente, essa perspectiva instrumentalista apresenta dificuldades em alguns pontos importantes. Primeiramente, ela subestima o valor prático do aspecto teórico na motivação da pesquisa. A admissão da impossibilidade de determinação da verdade das teorias representaria, para boa parte dos pesquisadores, a perda de seu incentivo para o prosseguimento em seus programas. Deve-se lembrar ainda que os usos práticos são, em geral, produtos não intencionais de teorias que foram propostas como soluções verdadeiras para problemas teóricos reais.

Em segundo lugar, o viés eminentemente tecnológico-prático de parte da ciência contemporânea é um fenômeno recente que somente pôde se dar graças a um cenário anterior dominado pela pesquisa dirigida por ideais tradicionais de valorização do conhecimento em si mesmo. 

E em terceiro lugar, a complexidade da tecnologia produzida na contemporaneidade torna o instrumentalismo cada vez menos satisfatório como resposta ao problema do conhecimento. Isso se dá porque essa tecnologia que produz satélites, ônibus espaciais, celulares, computadores e telescópios intergaláticos exige um substrato teórico tal que não permite que se tratem tão facilmente as entidades postuladas pelas teorias como meras fantasias ou conceitos operacionais.

É quase impossível afirmar que a destruição produzida pela fissão de um átomo aconteça sem que realmente exista uma partícula que denominamos pelo termo átomo. Este não é um conceito operativo somente, uma vez que é absurda a ideia da geração de uma energia suficiente para destruir cidades inteiras através somente da invenção de uma palavra. Desse ponto de vista, é a própria tecnologia, cujos objetivos são inegavelmente práticos, que exige uma postura mais realista acerca das teorias que a sustentam.

Por fim, nenhum saber prático, científico ou não, pode prescindir de pressupostos teóricos. Ninguém caça se não pressupor a realidade da presa que ainda não tem sob o alcance imediato de suas faculdades cognitivas. Ninguém formula objetivos práticos sem afirmar a existência de leis naturais, sem postular o caráter disposicional da observabilidade, constância e invariabilidade pregressa e futura das características e do comportamento dos objetos.

No entanto, tais razões parecem não ser muito convincentes quando um perquiridor honesto depara-se com o complexo espetáculo do conflito de ideias e teses que constitui a história da filosofia. Não será surpresa se a confusão e o temor apossarem-se dele. Confusão pela gama vertiginosa de argumentos aventados em defesa das teorias mais diversas e temor pela possibilidade de resolução de tais conflitos. 

É humanamente impossível travar conhecimento, estudar e responder adequadamente a todos os argumentos e teses que já foram propostos durante a longa e tortuosa história do ocidente. Parece improvável que se consiga resolver mesmo os impasses mais centrais e tradicionais. A dificuldade do empreendimento filosófico torna vívida a impressão de que nenhuma conclusão segura pode ser alcançada por meios racionais e reforça a suspeita de que nada pode ser conhecido. 

A divergência entre as inúmeras escolas filosóficas foi sempre o argumento mais forte daqueles que negaram qualquer possibilidade de conhecimento teórico definitivo e seguro. Talvez toda essa discordância indique que nenhum critério evidente e acima de qualquer dúvida exista para discernir o verdadeiro do falso. O fantasma do ceticismo parece acompanhar qualquer um que se disponha a investigar honestamente a questão do conhecimento.

Ora, negar qualquer conhecimento significa dizer que absolutamente não sabemos por que um celular ou um satélite funciona. É sustentar que nada sabemos de um mundo cuja face transformamos o suficiente para criar cidades, fornecimento de energia elétrica, computadores e naves espaciais. A afirmação de que o homem nada sabe comparado aos mistérios que o universo apresenta é uma forma inócua e trivial de lembrar a dimensão da ignorância na qual ainda vivemos. Algo bem diferente é defender que nenhum conhecimento é possível.

A fim de evitar a flagrante contradição de um dogmatismo negativo, ou seja, a negação da possibilidade de todo e qualquer conhecimento, alguns céticos passaram a afirmar apenas a sua incapacidade de encontrar critérios indubitáveis e evidentes para decidir as disputas filosóficas. Assim, a possibilidade de que tal critério seja encontrado um dia é preservada e, ao mesmo tempo, admite-se uma regra de ação no mundo baseada na simples aparência divorciada da afirmação de verdades últimas sobre os fenômenos. O ceticismo, entretanto, ainda que dissociado do dogmatismo negativo, apresenta dificuldades teóricas que o tornam uma posição historicamente marginal na filosofia. 

(texto escrito em 2011 como parte da introdução da tese O Problema de Gettier e o Ceticismo)
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