"Toda religião, mesmo a mais elementar, é uma ontologia: ela revela o ser das coisas sagradas e das Figuras divinas, ela mostra aquilo que realmente é. E, ao fazê-lo, funda um Mundo que não é mais evanescente e incompreensível como ele é nos pesadelos, como ele se torna cada vez que a existência é ameaçada de afundar no 'Caos' da relatividade total, quando nenhum 'Centro' emerge para assegurar uma orientação."
MIRCEA ELIADE, Mythes, Rêves et Mystères, p. 16 (tradução própria do original em francês)
"E tomando pão, e havendo dado graças, partiu-o e deu-lho, dizendo: 'Isto é o meu corpo, que é dado por vós; fazei isto em memória de mim'."
LUCAS 22, 19 (tradução João Ferreira de Almeida)
O mito, segundo o historiador da religião romeno Mircea Eliade (1907-1986), é um relato de um evento real, atemporal e exemplar. Real porque o mito é uma ontofania, uma manifestação/revelação do Ser, isto é, ele revela o nascimento e o lugar das coisas no esquema mais geral da realidade. Por essa razão, todo mito é uma instância do mito cosmogônico que conta a origem do próprio mundo.
Quando o poeta grego Hesíodo, na Teogonia, atribui ao titã Prometheus o roubo do fogo dos deuses e o faz entregá-lo aos homens, ele expressa aí a origem da cultura e da civilização humanas. O relato da origem de algo não difere do relato da origem de tudo na medida em que é o que é relatado é a vinda ao Ser de algo que não existia. Em certo sentido, todo mito de origem é uma pequena cosmogonia que imita a grande origem do mundo.
O mito, portanto, é uma ontologia, uma metafísica que revela a estrutura mais íntima da realidade. É a manifestação de uma unidade última do mundo a despeito da multiplicidade de todos os eventos que se dão em seu seio. O relato mítico situa o homem no âmago do Real e, por conseguinte, determina seu lugar e seus deveres na economia das coisas.
Mas a mensagem mítica não é um relato acerca da origem temporal de algo ou do mundo. É um relato atemporal, in illo tempore, do que se dá no início. Os mitos não são História, são o seu oposto. A História é uma sucessão de acontecimentos singulares e irrepetíveis que não apontam para nada além deles mesmos. O acontecimento mítico não está no tempo histórico, não se deu aqui, ali ou acolá em um momento determinado.
Por essa razão, o mito é exemplar. O mito conta a origem de algo, seja do mundo, de um ser vivo qualquer, de um objeto, de uma estrutura social, de um comportamento ou de uma prática. Essa origem, sendo atemporal, não está submetida ao câmbio do tempo. Ela é o eixo fixo da realidade em torno do qual as coisas giram. O homem, para aproximar-se dessa estabilidade, imita temporalmente os eventos atemporais do mito.
Os agentes dos eventos míticos são os deuses, os heróis, os espíritos e outros entes semelhantes. O homem imita os atos divinos porque são atos reais no sentido mais estrito da palavra. Se um ser divino deu aos homens a agricultura no início, eles dedicar-se-ão a imitá-lo fielmente em seus procedimentos, mantendo uma tradição imemorial. O divino é o objeto de imitação par excellence.
Sendo o mito o relato atemporal dos atos dos entes divinos, segue-se que o mito é, ao mesmo tempo, hierofania e teofania, pois nele revelam-se o sagrado e os deuses. O homem imita os atos divinos porque deseja fixar-se no permanente e naquilo que é real. O divino manifesta o realissimum. Consequentemente, o sagrado é o maximamente imitável.
O homem que vive sob o mito entende todas as suas atividades, cotidianas ou rituais. como imitações dos atos divinos atemporais e exemplares. E, justamente por serem imitações da Realidade, essas atividades humanas assumem realidade. Lá onde não há modelo atemporal, há o não-ser, o ilusório, o nada.
O mito faculta ao homem o acesso ao estrato metafísico da realidade, bem como ao universal. A árvore sagrada já não é mais a árvore comum, mas significa a totalidade cósmica enquanto "eixo do mundo". Permanecendo exteriormente a mesma, torna-se outra de imensurável significado. Torna-se o ponto de convergência e o sustentáculo absoluto de todas as coisas.
Assim, para o homem que vive o mito, assevera Eliade,"é a experiência religiosa que funda o Mundo" e são os ritos, os espaços e os tempos sagrados que o orientam na realidade. O mito é assumido pelo ser total do homem, não somente por seu intelecto ou por sua imaginação. Toda a sua vida reveste-se de significado graças ao relato mítico.
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Um comentário:
Maravilhoso!
Parabéns pelo conteúdo
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