segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

As leis e a ordem divina na "Orestíada" de Ésquilo


                                            Orestes, as Erínias, Apolo e Atena (vaso grego)

André-Jean Festugière, em seu ensaio De l'Essence de la Tragédie Grècque afirma que a tragédia grega possui dois elementos essenciais. O primeiro é o fato comumente reconhecível de que a vida humana é repleta de desgraças e de infortúnios. O segundo é o caráter aparentemente ininteligível dos desígnios das potências sobrenaturais que, em tese, governam os destinos humanos. O resultado da combinação desses componentes é a percepção de que o homem não é mais do que um inseto submetido a forças que estão muito além de seu poder (já que é o poder que caracteriza a divindade) e que nenhum dos infortúnios que sobre ele se abatem é passível de elucidação última.

Ainda segundo Festugière, não obstante a opacidade do destino, os poetas trágicos buscam uma fresta no muro que separa o homem do sentido de seus sofrimentos. No caso de Ésquilo (525/524 - 456/455 A.C.), a busca pelo sentido passa pela afirmação da justiça divina. Na trilogia de tragédias da Orestíada, composta de Agamemnon, Coéforas e As Eumênides, os temas do crime, da justiça e da ação dos deuses aparecem no centro da trama.

Em Agamemnon, vemos o grande rei de Argos e chefe de todos os aqueus retornando de sua vitoriosa campanha contra Tróia, trazendo consigo Cassandra, filha do rei Príamo, como prenda de guerra. Ocorre que ele é atraiçoado por sua própria esposa, Clitemnestra, mancomunada com o amante, Egisto, e é assassinado logo ao chegar a seu palácio.

Todavia, não se trata de mero crime de ambição política. Clitemnestra vingava-se de Agamemnon por este haver sacrificado sua própria filha, Ifigênia, em Áulis, a fim de apaziguar a deusa Ártemis e assim poder chegar à Tróia. Egisto, por seu turno, vingava-se indiretamente de Atreu, pai de Agamemnon e de Menelau, por haver servido ao irmão, Tiestes, sem que este o soubesse, seus filhos em um banquete.

A linhagem dos Atridas é proveniente de Tântalo, um lídio que comeu seu próprio filho, Pelops e foi, por essa razão, enviado ao Hades, onde recebeu o castigo de sofrer eterna fome, impedido de ingerir a abundante comida sempre fora de seu alcance. Pelops, ressuscitado pelos deuses, teve dois filhos, Atreu e Tiestes. Este engana o irmão e toma a sua esposa. Atreu resolve vingar-se e, capturando os sobrinhos, mata-os e serve-os a Tiestes em um banquete sem que este o saiba. Tiestes, horrorizado, parte para o exílio com seu filho sobrevivente, Egisto.

Agamemnon, filho de Atreu, herda a maldição de sua família e sacrifica sua filha Ifigênia. Clitemnestra, então, para vingar a filha morta, une-se a Egisto para matar seu marido. O sangue de Agamemnon, por conseguinte, clama por vingança e o dever de matar os assassinos recai sobre Orestes, o filho exilado do rei.

Na segunda tragédia, Coéforas, vemos a entrada de Orestes. Tendo recebido uma ordem do oráculo de Delfos para vingar seu pai, ele retorna incógnito a Argos. Reconhecido por sua irmã, Electra, ele une-se a ela para matar Clitemnestra, mãe de ambos, e seu amante, Egisto. Tão logo o crime é cometido, Orestes passa a ser perseguido pelas Erínias e foge de Argos na direção de Delfos, buscando a proteção de Apolo.

A terceira e última peça, As Eumênides, inicia-se com Orestes em Defos entre os suplicantes que consultam-se o sagrado oráculo. As Erínias são despertadas pelo fantasma de Clitemnestra, que exige que seja cumprido o castigo de Orestes. Aqui insinua-se claramente uma passagem dos conflitos humanos aos conflitos entre os deuses. Há uma tensão na ordem divina das coisas que revela-se por causa do crime de Orestes.

As Erínias, que perseguem Orestes por haver matado sua mãe Clitemnestra, representam uma ordem antiga de potências divinas e também as leis antigas, como aquela que pune o crimes de sangue contra parentes. Filhas de Nix, a noite, as Erínias são divindades subterrâneas, moram no Hades, são terríveis e assustadoras. São as defensoras dos antigos laços de parentesco, mas pertencem a um estrato mais caótico da realidade.

Apolo representa a nova ordem dos deuses olímpicos (os que, liderados por Zeus, venceram os Titãs e estabeleceram-se no monte Olimpo) e uma lei que reconhece e pune os crimes contra o matrimônio, pois Clitemnestra matara o esposo Agamemnon. Isto é, os crimes contra os que não são do mesmo sangue também merecem punição. Mas a antiga ordem resiste e exige seus diretos.

Apolo defende e protege Orestes que, por sua vez, busca proteção e purificação em Delfos, o centro do mundo. Simbolicamente, Orestes encontra-se no Eixo do mundo, no ponto de contato entre o estrato humano e o divino, na ligação entre a Terra e o Céu. Apolo é solar e, armado com arco, ameaça as Erínias em Delfos, mas não pode derrotá-las.

Eis o centro da contenda. Há leis antigas e sagradas que não podem ser abandonadas e nem descuradas, mas há, ao mesmo tempo, a consciência de um novo horizonte moral, a percepção de que certos modos e práticas não podem mais ter o mesmo lugar na nova economia das coisas. Sem ter como resolver a questão, Apolo envia Orestes ao templo de Atena, na cidade de Atenas, onde ele será julgado. O herói solar dá lugar à deusa da razão e da guerra. Só ela pode dirimir o conflito. E o fará por meio de um julgamento.

Em Atenas, no Areópago, Atena escolhe dez juízes para decidir o destino de Orestes. Todas as partes devem expor sua visões. A deusa ouve as razões das Erínias e, por conseguinte, admite os direitos das leis da antiga ordem. Orestes é matricida e não pode ficar impune. Aquele que mata seus parentes comete terrível delito e deve receber castigo proporcional ao horror que cometeu. Sempre foi assim e assim deve permanecer. É o direito ancestral das Erínias cobrar o preço desse gênero de malfeito.

Apolo, defendendo Orestes, apresenta um argumento decisivo:

"Justo,  eu digo, a ti e à tua alta corte, Atena. Vidente como sou, nunca minto. Nem uma só vez,  dos assentos do Profeta, declarei uma palavra que refira-se a homem, mulher ou cidade que Zeus não tenha comandado, o Pai Olímpico. Essa é sua justiça - todo-poderosa, eu advirto-te. Inclina-te à vontade de Zeus. Nenhum juramento pode comparar-se ao poder do Pai." (tradução livre a partir da edição de Robert Fagles da Orestíada)

Ora, dado que Orestes matara Clitemnestra seguindo a ordem de Apolo em seu oráculo sagrado, o centro do mundo, e dado que o oráculo nada diz que não tenha origem no senhor dos deuses, a conclusão é que Orestes simplesmente seguiu a ordem das coisas e deve ser inocentado do sangue de sua mãe. Insinua-se aí o tema da violência sagrada, ou seja, aqueles atos condenáveis do ponto de vista da tradição religiosa e comunitária, mas que, realizados sob a instrução ou ordem direta da divindade, tornam-se atos do divino e não dos indivíduos que concretamente os realizaram.

A violência de Orestes, detestável dentro da ordem tradicional estabelecida (Erínias), é um ato realizado por determinação divina (Apolo) e serve para revelar a fonte última (Zeus) de onde flui uma ordem mais profunda da realidade (Atena). E aquela que não foi gerada pelo desejo e pela conjunção carnal entre os deuses, que não foi gestada, que saiu armada da cabeça de Zeus, como que emanada da fonte patriarcal, julgará o lugar das potências antigas na economia da realidade.

Atena declara-se a favor da justiça (Dikê) de Zeus e seu voto é por Orestes. Em seguida, convoca os juízes a votar. Há um forte combate verbal entre Apolo, o deus da luz, e as Erínias, as filhas da Noite. Ambos os lados advertem os jurados de seus respectivos direitos e das consequências funestas de uma decisão contrária a eles.

O resultado é proclamado por Atena. Há empate. Orestes está livre. Afirma-se a ordem de Zeus. O princípio foi estabelecido. Resta saber se a ordem antiga será completamente obliterada ou se haverá algum lugar para ela a partir daquele momento. Como era de se esperar, as Erínias protestam veementemente, ameaçam lançar desgraças sobre a cidade, exigem seus direitos ancestrais, denunciam a ofensa de que foram vítimas.

Atena, fazendo uso da Persuasão (Peitho), tenta convencê-las de que podem assumir nova função em Atenas e que a elas grandes honras e reverências serão dadas pelos cidadãos atenienses. Basta que se tornem potências benfazejas, protetoras da cidade e de tudo o que é bom. Elas relutam, resistem, mas são ao fim convencidas de seu novo papel. O princípio superior absorve o inferior sem negá-lo, reordenando as funções antigas deste de acordo com a ordem daquele.

Agora, a lei e o julgamento imparcial dos juízes encerra os conflitos. Antigos costumes e modos de fazer justiça são domados por uma ordenação mais profunda das coisas. Atena é o aspecto solar que doma as potências noturnas, antigas e subterrâneas e pacifica os conflitos. É a elevação da consciência a um novo patamar na ordem dos valores. A descoberta de um novo horizonte da alma. Por essa razão, as Erínias tornam-se Eumênides, as bondosas.

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