segunda-feira, 22 de agosto de 2022

Observações sobre a percepção, as relações e o argumento do sonho

"Manifestamente, segue-se que o sonho é uma atividade da faculdade da percepção sensível, mas pertence a essa faculdade enquanto presentação."

ARISTÓTELES, Sobre os Sonhos, cap. I, 459a, 20

Todo ente externo aparece dentro das relações que ele estabelece com outros entes. Não é possível separar o ente dos seus modos de aparição. Isso significa que a percepção sensível é sempre a captação do objeto sob uma de suas formas de aparição determinada pelas relações que ele estabelece com outro objetos dentro do alcance da observação.

Se vejo um elefante à uma distância considerável, ele me aparece como algo pequeno que cabe em minha mão. Quando o vejo de perto, percebo que ele é maior do que eu. O que mudou não foi o elefante que diminuiu de tamanho e depois aumentou. O que mudou foi a relação, nesse caso a distância, entre o elefante e eu.

Não faz sentido, portanto, perguntar qual dos dois elefantes é o elefante "verdadeiro". Só há um e o mesmo ente animal apresentando-se à percepção de acordo com o conjunto de relações que ele estabelece com os outros entes. Por exemplo, o elefante próximo a mim aparece sob uma certa tonalidade que é determinada pela sua relação com a luz do Sol. Em um cômodo completamente escuro, ele desaparecerá, justamente por conta do ambiente no qual se encontra.

Todas essas formas de aparição (ou de desaparição, no caso do cômodo escuro) são inteiramente reais e manifestam o que é o ente. Daí que podemos dizer que o conhecimento sensível é sempre relacional. O objeto nunca aparece fora da trama de relações na qual está inserido. E separar o ente das suas formas de aparição é torná-lo incognoscível e ininteligível.

Isso pela simples razão de que, como asseveravam os antigos e os medievais, o ente opera segundo a sua natureza. Tudo o que ele faz ou pode fazer, tudo o que ele sofre e pode sofrer está contido em anteriormente em sua natureza, isto é, naquilo que ele é. O homem não pode voar, mas pode rir, por exemplo. Conhecemos o objeto, embora nunca completamente, pelo conjunto de formas de aparição que ele apresenta à nossa observação.

Se vejo um ente que tem as características externas de um cachorro, não terei nenhuma dúvida de que se trata de um cachorro. Jamais o confundirei com uma galinha ou um rinoceronte. Se alguém afirmar que aquele animal, apesar de operar e se manifestar exteriormente com as formas de aparição típicas de um cachorro, não é realmente um cachorro e sim uma outra coisa, terá criado um ser cujas manifestações e operações não correspondem ao que ele é realmente.

A separação do ente de suas formas de apresentação representa a destruição da sua unidade substancial. Abstrativamente criamos um ente misterioso que não corresponde aos modos nos quais ele se apresenta. Mas se o ser não corresponde aos modos de apresentação, ele se torna completamente incognoscível e ininteligível. Ficamos com a ficção de um ente existente fora e independentemente de todas as formas nas quais ele efetivamente se manifesta. 

Não é de se surpreender que assim se tenha cortado pela raiz toda possibilidade de conhecimento verdadeiro dos objetos da realidade externa. No entanto, é mister lembrar que essa separação do ente de suas formas de aparição é somente uma atividade abstrativa, uma operação mental que distingue e separa características que no objeto real estão unidas indissociavelmente. Posso abstrair a cabeça de um homem e pensar em um cavaleiro sem cabeça, mas isso não significa que possa haver na realidade um homem desprovido de cabeça.

Admitir que há um objeto cuja natureza não corresponde aos modos nos quais ele se manifesta é cair inescapavelmente no ceticismo. Uma vez que se tenha separado de forma completa o objeto de seus modos de aparição não há como uni-los de novo, pois foi criada a ficção de um objeto realmente existente cuja natureza é para sempre incognoscível, pois estão cortados todos os laços de comunicação entre o ente e a percepção sensível.

Essa ficção tem origem nos argumentos céticos sobre a variação das percepções de um mesmo objeto. O exemplo mais conhecido é o do bastão parcialmente mergulhado na água que parece estar curvado ou quebrado. O que o ceticismo defende é que o bastão é reto na realidade e aparece como quebrado quando mergulhado na água. Obviamente se trata de uma ilusão dos sentidos, exclama o cético. Sendo assim, nossos sentidos nos enganam. E se nos enganam nesse caso particular, por qual razão não cogitar a possibilidade de que eles nos enganam sempre?

Not so fast, my friend. Em primeiro lugar, a percepção não é em si mesma verdadeira ou falsa. É somente quando há um juízo sobre a aparição sensível, isto é, uma afirmação ou uma negação realizada por uma consciência humana, que se pode falar propriamente de verdade ou de falsidade. A percepção sensível só capta a aparição da coisa dentro da trama de relações nas quais está inserida. Se faço um juízo apressado, sem considerar as relações nas quais o objeto está inserido, e concluo que o bastão está quebrado, isso não é um problema da percepção e sim do meu juízo sobre a realidade.

Em segundo lugar, a percepção me mostra a coisa no modo em que ela aparece dadas as relações que ela estabelece com outros entes. Se a percepção me mostrasse uma vara reta mesmo quando ela está mergulhada parcialmente na água (em um meio mais denso do que o ar), então aí sim haveria erro na percepção, pois uma relação real estaria sendo omitida da minha visão. A parte do bastão mergulhada na água aparece curvada ou quebrada justamente por causa da mediação estabelecida pela água entre o bastão e a minha visão.

Ademais, se não confundimos a silhueta de uma pessoa vista através de uma cortina com a própria pessoa, e nem consideramos que estamos diante de uma ilusão dos sentidos, não há razão para considerarmos uma falha dos sentidos um bastão reto aparecer curvado quando parcialmente mergulhado na água. A forma de aparição do objeto é determinada pela situação em que ele está. Os sentidos simplesmente captam como o objeto se apresenta dentro de determinado cenário.

Assim, todas as aparições da coisa são, em certo sentido, "verdadeiras". Não há um modo privilegiado de manifestação do ente, mas todas as suas manifestações expressam o que é esse ente. Separar o objeto das suas formas de aparição é criar a ficção de um ente fora de todas as suas relações efetivas e reais.

Note-se, contudo, que o ente não é um "feixe" de relações, como se ele não existisse em si mesmo, e somente como produto dessas mesmas relações. A relação é uma categoria da realidade que se estabelece sempre entre entes reais. Como assevera Mário Ferreira dos Santos na tese 34 de sua obra Filosofia Concreta, o ser necessariamente antecede a relação:

"A relação implica o dual, e no mínimo duas positividades, pois uma relação entre termos não positivos deixaria automaticamente de ser positiva. A relação implica anteriormente substância e oposição, duas categorias que a antecedem. Os que consideram que ser é expresso na cópula ser, reduzem-no a uma relação. Mas uma relação é relação de qualquer coisa que é. E, afinal, qualquer coisa deve ser para que haja relações. Portanto, há prioridade ontológica do ser à relação."

É preciso que haja entes para haver relações. As relações surgem graças aos entes e só perduram enquanto os entes as mantém. Um time de futebol é o resultado de um conjunto determinado de relações que os jogadores concretos e reais estabelecem uns com os outros. Não faria sentido alguém afirmar "fui ao estádio e só vi jogadores no campo, mas não vi o time do Flamengo". Isso seria um clássico erro categorial. Seria considerar o Flamengo como um ente substancialmente separado e independente dos jogadores que são os entes reais e substanciais que o compõem. Sem os jogadores não há time do Flamengo, mas sem Flamengo ainda existem os jogadores.

Não significa, todavia, que as relações não existam. Elas existem, mas de um modo muito mais tênue e dependente do que os entes que as estabelecem. E os entes só aparecem e se manifestam estabelecendo esse intrincado tecido de relações. Percebemos os objetos dentro dessas relações, e os objetos manifestam o que são nos seus modos de aparição determinados pelas situações nas quais se encontram.

Ademais, como Aristóteles ensina no livro Categorias, a percepção e o conhecimento são relações. Ter percepção, é ter a percepção de algo. Do mesmo modo, conhecer é possuir o conhecimento de algo. A percepção e o conhecimento são relações estabelecidas entre entes reais. Afirma o Estagirita que

"Quando o objeto de conhecimento cessa de existir, cessa também o conhecimento que era seu correlativo, embora o contrário não seja verdade. É verdade que se o objeto do conhecimento não existe, não pode haver conhecimento, pois não haverá o que conhecer. Entretanto, é igualmente verdade que, se o conhecimento de um objeto não existe, o objeto pode muito bem existir." (Cap. 7, 25-30)

Dito isso, retornemos ao cético que acredita haver ilusões nos dados dos sentidos. Há, segundo ele, percepções ou modos de aparição dos entes que são legítimos e outros que são ilegítimos. Como os sentidos supostamente nos enganam em algumas situações, nada nos impediria supor que eles nos enganem sempre. Aqui se apresenta uma falácia, já que afirmar que "se algo acontece algumas vezes, então pode acontecer sempre" não possui qualquer base a não ser a de uma mera possibilidade lógica, não exatamente a de uma possibilidade factual.

Já vimos como a própria noção de engano nos sentidos é questionável, mas admitamos por hipótese que os sentidos possam nos enganar sempre. Se desconfiamos de que as nossas percepções podem não corresponder à realidade, então somos obrigados a cogitar a possibilidade de que tudo o que nos cerca, inclusive nosso próprio corpo, seja produto de uma ilusão. Aparentemente, conhecemos uma situação em que isso acontece cotidianamente: o sonho. 

O argumento é simples. Se tomamos como verdadeiras todas as imagens e situações ilusórias que se apresentam a nós enquanto estamos sonhando durante o sono, por qual razão a vigília, quando estamos acordados, não pode também ser um conjunto complexo de ilusões? Em outros termos, o que testemunhamos nos sonhos são imagens que não possuem qualquer referente externo que esteja sendo percebido no momento. 

Ao que parece, não há motivos para pensar que o mundo externo não seja exatamente isso, um conjunto complexo e vívido de imagens que não possuem qualquer referente cuja existência seja independente de nossa mente. O argumento do sonho, no limite, é solipsista, isto é, afirma que tudo o que há não passa de projeções de minha mente, e que eu sou o único existente real. A tese que subjaz ao solipsismo e ao argumento do sonho é a de que o espírito pode produzir suas próprias percepções. O que percebemos não é uma forma de aparição de um objeto real e externo dentro de determinada trama de relações, mas somente imagens produzidas pelo poder do espírito.

É possível afirmar que há aí um deslocamento do objeto. Em vez de percebermos um objeto externo por meio dos sentidos, agora o objeto de nossa percepção é a só a imagem que temos na mente e que nós mesmos produzimos. O homem não tem acesso aos objetos externos pela percepção sensível. Ele só tem acesso às suas percepções. 

A operação em curso aqui é exatamente a separação mental do objeto das suas formas de aparição. O que captamos sensivelmente deixa de ser um conjunto de informações transmitidas pelo objeto e se torna meramente um conjunto de imagens produzidas pelo espírito humano. Se há ou não objetos fora de minha mente eu não posso afirmar, porque só tenho acesso ao meu conteúdo mental. Das duas, uma: ou bem os objetos externos não existem ou bem eles existem e são incognoscíveis e ininteligíveis.

Aristóteles, no primeiro capítulo de seu pequeno tratado Sobre a Memória e a Reminiscência, observa que a memória é como uma pintura em uma tela. A pintura pode ser encarada como uma figura ou como uma imitação. No primeiro caso, ela é somente um objeto de contemplação. No segundo, ela é uma imitação, a semelhança de algo. Em outros termos, a imagem da memória pode ser considerada como mero conteúdo mental sem nenhum referente externo ou pode ser entendida como a reprodução de algo externo e realmente existente.

Não há dúvida de que a memória é sempre simultaneamente figura e semelhança. Podemos dissociar a figura que uma memória apresenta a nosso espírito do objeto externo do qual ela é a semelhança. Nenhum problema deriva dessa operação mental enquanto não a confundimos com uma separação real. Se o fazemos, separamos o objeto de suas formas de aparição impressas em nossas memórias e as consideramos como o único objeto real de nossa percepção. 

Nesse processo, ou criamos a ficção de um objeto real para sempre inacessível ao conhecimento ou negamos a existência de qualquer objeto externo à nossa mente. Ambas as consequências derivam da noção de que só temos acesso aos produtos de nosso espírito. Uma vez desfeita a correspondência entre as formas de manifestação de um ente e a sua natureza, o objeto externo se torna incognoscível ou inexistente. Rompida a unidade do ente, o que resta é um mundo mental incapaz de sair de si mesmo na direção de uma realidade independente.

A pergunta é, portanto, se é possível que nosso espírito seja o produtor de todas as nossas percepções. O argumento do sonho afirma que sim, uma vez que os sonhos são criados pelo nosso espírito adormecido e desligado do mundo exterior. Se isso acontece no sonho, seria cabível cogitar que o mesmo se dê em todas as nossas percepções. Ocorre que há uma diferença capital entre produzir algo de forma completamente independente e criar algo por composição ou separação de elementos já existentes.

Como todo empirista sempre defendeu, não se conhece aquilo de que não se teve percepção. Um cego de nascença não possui noção da cor porque jamais percebeu objetos coloridos. E dizem também os empiristas que a imaginação é a faculdade humana de combinar ou separar imagens obtidas pela percepção e recolhidas pela memória. O dragão não é um ser existente, mas sua noção é a mera composição das imagens de uma cobra ou de um lagarto com as imagens de asas de morcego.

O dragão é um ente inexistente produzido pela imaginação a partir da memória advinda de percepções de objetos externos do mundo real. A "novidade" do dragão se deve somente à combinação de imagens obtidas pelos sentidos. Ele não é uma criação radicalmente diferente de qualquer coisa que observamos no mundo. A composição pode ser nova, mas os seus elementos constitutivos não o são.

O mesmo se dá com os sonhos. A imaginação combina, separa e recombina imagens em compostos muitas vezes jamais percebidos, mas sempre com material recolhido na vigília. Não há, portanto, nenhuma criação ex nihilo do espírito independentemente das percepções dos objetos externos. Há composições e configurações não vistas na vigília criadas a partir de elementos fornecidos pelo mundo externo.

Se isso é verdade, parece então não haver razão suficiente para assumir a cogência do argumento do sonho. Não é evidente que nosso espírito possa produzir de si mesmo todas as suas percepções. Não é mesmo possível testar essa hipótese dado que jamais estamos completamente isolados em nós mesmos sem qualquer interferência de material proveniente do mundo que nos cerca. Ao contrário, a evidência que nós temos aponta para a dependência das percepções e das imagens que habitam nosso espírito dos objetos externos aos quais elas se referem.

O argumento do sonho assume como evidente a capacidade de nosso espírito de criar ex nihilo todos os seus conteúdos. Mas, aparentemente, não há evidência positiva desse poder, enquanto há evidência negativa, pois os sonhos são recombinações de materiais provenientes da vigília. Sem o argumento do sonho torna-se difícil considerar seriamente a hipótese de que nosso espírito produz sozinho suas percepções. E se realmente nossas percepções referem-se a objetos externos captados pelos sentidos, fica afastada a separação entre o ente e suas formas de aparição.

quinta-feira, 18 de agosto de 2022

Proclo, neoplatonismo e a eternidade do mundo (parte 1)

"Uma vez que o mundo subsiste por causa da bondade da divindade, é necessário que a divindade seja sempre boa, e que o mundo sempre exista, tal como a luz é consubsistente com o Sol e o fogo, e a sombra com o corpo que a produz."

SALÚSTIO, Sobre os Deuses e o Mundo, cap.7

O filósofo neoplatônico Proclo (410/485 D.C.), nascido em Constantinopla, foi escolarca (chefe) da Academia de Platão, sucedendo Siriano em 437. Autor de diversos tratados filosóficos, foi grande comentador dos livros de Platão e de Euclides, além de compositor de hinos e teólogo. Entre suas obras mais famosas estão o Elementos de Teologia e o Sobre a Eternidade do Mundo. 

No curto tratado sobre a eternidade do mundo, Proclo oferece dezoito argumentos para demonstrar que o universo não possui começo ou fim. O primeiro argumento, embora parcialmente perdido, defende que o artífice do mundo, estando sempre em ato (ἐνέργεια, energeia), torna real o mundo desde sempre, tal qual a luz é coetânea ao fogo. Onde está o fogo, ali está a luz inexoravelmente. 

O segundo argumento defende que se o paradigma do mundo é eterno, então a imagem que o imita deve ser temporalmente sem começo ou fim. Como neoplatônico, Proclo assume que o cosmo tem um paradigma (Forma, Idéia) que existe sempre em ato, e que o antecede e o funda ontologicamente. Dado que um paradigma, por sua essência, exige algo que o imite, então a imagem de um paradigma eterno do mundo deve ser ela também sem início ou fim no tempo.

O terceiro argumento afirma que, como ensinou Aristóteles, o artífice só é artífice em ato quando efetivamente causa a existência do artefato. Se o artífice do mundo (o demiurgo) está eternamente em ato, ele também é causa produtora eternamente. Daí se pode concluir que aquilo que é produzido (o cosmo) por um produtor eternamente em ato (o demiurgo) não possui qualquer início ou fim temporais.

No quarto argumento, Proclo argumenta que sendo a causa imóvel, então será imóvel também o efeito. A causa do cosmo é imóvel, isto é, ela é sempre a mesma, nunca passando por mudanças de nenhum gênero. E como a causa imóvel é sempre efetivante, o cosmo, enquanto efeito, correspondentemente deverá ser perpétuo. 

Se o cosmo e o tempo são inseparáveis, diz o quinto argumento, então não há tempo onde o cosmo não existisse. Aqui cabem alguns comentários ao argumento de Proclo. O tempo, como ensinava Aristóteles é o "numerável da mudança", isto é, a quantidade que resulta da passagem da potência ao ato nos entes móveis. Embora tempo e mudança não sejam a mesma coisa, o tempo está intrinsecamente ligado à mudança. Onde há mudança, há tempo.

Assim, não há como pensar em algum tempo onde o mundo não existisse. Para qualquer instante no passado, é possível pensar em um instante anterior. Para qualquer momento futuro, é possível pensar em um momento posterior. Afirmar que em algum determinado momento o mundo não existia consiste em realizar uma separação entre o tempo e o mundo, e em conceber ambos como entes independentes.

Mas separar o tempo do mundo é supor que possa haver um tempo em que não haja mudança e mudança sem que haja tempo. O mesmo problema é enfrentado por Agostinho no livro XI das Confissões quando o bispo de Hipona se depara com a pergunta sobre o que Deus fazia antes de criar o mundo. Conceber que Deus pudesse não fazer ou fazer algo antes da criação é justamente separar o tempo da mudança, criando desse modo um "tempo antes do tempo".

Como isso é absurdo, a resposta de Agostinho é a de que Deus não fazia nada. Não no sentido de uma inatividade antecedente à criação, mas sim no sentido de que é impossível pensar no mundo sem pensar em tempo. Por essa razão, a pergunta sobre um tempo antes do mundo não pode ser uma questão legítima. O que Proclo argumenta é justamente que se há inseparabilidade entre tempo e mundo, então não pode haver tempo onde o mundo não exista.

O sexto argumento enuncia que se o demiurgo é a causa do mundo, só ele seria capaz de destruí-lo. Entretanto, como Platão ensina no Timeu, pertence ao mau destruir aquilo que é harmonicamente constituído. O demiurgo não é mau e nem pode se tornar mau, então ele jamais destruirá sua própria obra. Se o cosmo é indissolúvel, é também incorruptível. Se incorruptível, é incriado, não teve início e não terá fim.

A alma do mundo é incriada e incorruptível, afirma o sétimo argumento. Toda alma é automovente, ou seja, é o princípio de movimento do ente. Sendo a alma do mundo incriada e incorruptível, o cosmo será ele mesmo sem começo ou fim. 

O oitavo argumento defende que aquilo que é corrompido se corrompe pela ação de algo exterior a ele, e se torna algo diferente de si mesmo. Ora, o cosmo não possui nada estrangeiro a ele, pois é o Todo dos Todos, englobando tudo o que há. Sendo assim, então, é impossível que algo externo ao cosmo aja sobre ele ou que o próprio cosmo transforme-se em algo diferente de si mesmo.

Por outro lado, diz o nono argumento, aquilo que se corrompe é corrompido por seu mal, não por seu bem. Se o cosmo pudesse se corromper, ele o seria por conta de seu mal. Ocorre que, como ensina Platão, o cosmo é um deus, e, sendo um deus, é isento de todo mal. Dado que é isento de todo mal, é isento também de mudança. Desse modo, é incorruptível e sem início ou fim.

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Leia também: Νεκρομαντεῖον: neoplatonismo (oleniski.blogspot.com)