domingo, 17 de setembro de 2023

Leibniz, Deus e o conceito de Natureza

"Sem uma substância eterna, não há verdades eternas. É possível derivar disso também uma prova acerca de Deus: Ele é a raiz da possibilidade, sendo Seu espírito a própria região das ideias ou verdades."

G.W. LEIBNIZ, Échantillon de découvertes sur les secrets de la natureprise en général, 1688

O filósofo, matemático e físico alemão Gottfried Wilhelm Leibniz escreveu em novembro de 1697 um opúsculo em latim intitulado De Rerum Originatione Radicali. O tema da obra, nunca publicada, como o título anuncia, a origem das coisas a partir de sua raiz última. Este mundo, inicia o filósofo, possui uma Unidade dominante que não é somente como a da alma com relação a mim mesmo, e nem como eu mesmo com relação a meu corpo, mas que é mais elevada.

Essa unidade dominante não somente rege o mundo, ela o construiu e o fez, sendo portanto superior a ele e, por assim dizer, exterior a ele, e, por conseguinte, é a razão última de todas as coisas. A razão suficiente da existência dos seres em separado ou em conjunto não se encontra neles mesmos. Suponhamos que sempre tenha havido o livro dos Elementos de Euclides. Poderíamos explicar a existência do exemplar presente pela cópia do exemplar anterior, e assim sucessivamente. Entretanto, por mais que recuemos na cadeia dos livros copiados, não importa sua extensão, a cópia não seria suficiente para explicar a existência dos livros, isto é, por qual razão há livros e por que livros assim redigidos.

O mesmo, analogamente, acontece com os diversos estados do mundo. Embora cada um possa ser derivado do anterior, a cadeia antecessora de causas não explicaria de modo suficiente a existência das coisas. A razão suficiente não reside nas coisas isoladamente e nem no conjunto delas, tão grande quanto se queira que seja esse conjunto. Os seres deste mundo são contingentes, poderiam ou não existir, e como um existente só pode vir de um existente, há que se admitir que a razão última das coisas se encontra fora do mundo, em um ser absolutamente necessário.

A fim de se compreenda melhor o que foi dito, Leibniz lança mão do primeiro princípio inegável de que algo há em vez do nada. Isto é, há algo de existente no mundo e não o nada completo. E se há algo existente, esse algo era possível. Tudo aquilo que é possível possui pretensão à existência, ou seja, o possível exige uma essência que não proíbe a sua existência, mas, ao contrário, a capacita para a existência, dá a ela o direito à existência igual a todos os outros possíveis. 

Leibniz considera que a essência de um possível exibe sua quantidade de realidade ou de perfeição. Daí que aquilo que se torna real é sempre aquilo que possui mais perfeição, o máximo possível dadas as circunstâncias concretas. Há uma espécie de matemática divina ou uma mecânica metafísica, segundo a qual, como na geometria e na física, reina a lei do máximo desempenho. Porém, as leis físicas derivam da necessidade metafísica, e não o inverso. 

O mundo não é metafisicamente necessário, dado que podemos pensá-lo como não existente sem implicar nenhuma contradição lógica. Por outro lado, o mundo é fisicamente necessário no sentido de que a sua inexistência seria uma imperfeição ou um absurdo moral. Leibniz distingue aqui dois tipos de necessidade, uma cuja negação implica contradição lógica (princípio de não-contradição, por exemplo) e outra que possui caráter hipotético, que não implica contradição se negada. Por exemplo, se X não existia e passou a existir, X precisou necessariamente de uma causa (Y, digamos). Mas nada exige que necessariamente Y tinha que causar X.

As essências e as verdades eternas não são ficções, adverte Leibniz. Elas existem, por assim dizer, no mundo das ideias, em Deus mesmo, fonte das essências e das existências das coisas. Como dito acima, a cadeia dos existentes não encontra em si mesma a razão suficiente de sua existência, ela precisa buscá-la nas necessidades metafísicas, e como só um existente pode dar origem a um existente, há que haver um ser metafisicamente necessário, ou seja, um ser no qual essência e existência coincidem, no qual tomam origem todos os possíveis e todas as verdades eternas.

Com efeito, tudo no mundo se faz de acordo com verdades eternas, matemáticas, geométricas e metafísicas. Quando observada no detalhe, encontram-se na natureza razões formais, leis metafísicas de causa, potência e ação operando mesmo sobre leis geométricas da matéria. O mundo existente tanto quanto os possíveis têm sua origem e fundamento em Deus, e como só se tornam reais aqueles possíveis que possuem essências com maior quantidade de realidade ou perfeição, segue-se que este mundo não é somente o mais perfeito fisicamente, mas também moralmente.

Leibniz afirma que este mundo é não só a máquina mais perfeita como é igualmente, na medida em que é composta de espíritos, a melhor das repúblicas. Dirão certamente que não é isso que a realidade observável manifesta com todas as suas desgraças e sofrimentos. Leibniz responde que não se julga a obra inteira pela consideração de uma de suas partes. Não conhecemos a realidade em sua inteireza e, portanto, não sabemos como as coisas se encaixam, como a desordem em uma parte pode se conciliar com a harmonia do todo.

Obviamente, a harmonia do todo não deve ser assegurada ao custo da miséria humana. A justiça está presente, e significa que cada um receba felicidade proporcional à sua virtude e seu zelo pelo bem comum, o qual chamamos de caridade ou amor de Deus. Essa é a força e a potência da religião cristã. E não podemos nos espantar que os espíritos humanos sejam objetos de tanta solicitude da parte de Deus, pois eles refletem mais perfeitamente a imagem do Criador. 

A relação entre os espíritos e Deus vai além da relação que há entre a máquina e seu construtor. A sua relação é a do cidadão com o seu príncipe. Junte-se a isso o fato de que os espíritos durarão tanto quanto o próprio universo, e que eles exprimem e concentram neles mesmos de alguma forma o todo como partes totais. Por último, o sofrimento dos bons concorre para o seu bem, para o seu aperfeiçoamento moral.

Em 1698, Leibniz publica o opúsculo De Ipsa Natura (Sobre a Natureza ela mesma), onde discute a força inerente às coisas criadas e as suas ações. Embora não seja uma intencionalmente uma sequência do De Rerum, que nunca foi publicado, a obra discute a relação entre Deus e a máquina do mundo, bem como aprofunda a concepção do filósofo sobre a essência daquilo que chamamos de Natureza. A ocasião para compor o opúsculo foi dada pela polêmica em torno das teses do livro De Idolo Naturae, do astrônomo e matemático alemão Johann Christophore Sturm.

Segundo Leibniz, os dois problemas principais propostos por Sturm eram, primeiro, a questão sobre a constituição da Natureza que costumamos atribuir às coisas, cujos atributos, aos olhos de Sturm, têm algo de paganismo, e, segundo, se reside nas coisas alguma força (ενέργεια), tese que Sturm nega. Leibniz concorda com a inexistência de uma alma do mundo (Anima Mundi), embora considere que a natureza é uma obra de Deus, uma máquina natural composta de uma infinidade de órgãos que exigem, para sua criação e seu funcionamento, uma sabedoria e um poder igualmente infinitos.

Essa posição conduz à outra questão em voga no tempo de Leibniz. O filósofo natural britânico Robert Boyle defendia que pela natureza de um corpo dever-se-ia entender o seu mecanismo. Em outros termos, dentro do mecanicismo do século XVII, todos os fenômenos da natureza deveriam ter explicações que recorressem apenas ao movimento e ao contato entre porções de matéria. Grosso modo, diz Leibniz, essa explicação pode ser aceita.

Não obstante, a origem mesma do mecanismo não pode ser derivada nem da matéria e nem das leis matemáticas. O que Leibniz quer apontar aqui é que a matéria inerte, seja ela pura extensão ou seja ela formada por corpúsculos, não se organiza espontaneamente em padrões imutáveis, e as leis matemáticas, tomadas em si mesmas, apenas descrevem tais padrões naquilo que neles há de quantitativo. Desse modo, será metafisicamente impossível dispensar a ação e o governo de alguma inteligência imaterial.

Nem tampouco seria possível pensar que o fundamento das leis naturais seja a arbitrariedade. Ao contrário, Leibniz assevera, as leis que há no mundo foram impostas por Deus a partir de razões de sabedoria e de ordem. Portanto, as causas finais não são úteis somente no campo da ética e da teologia natural. Elas servem mesmo na física para descobrir verdades ocultas da natureza. Nesse ponto, como em outros escritos, Leibniz resgata o papel da teleologia no estudo da filosofia natural, algo abertamente rejeitado por René Descartes:

"Nós não nos deteremos também para examinar os fins que Deus se propôs ao criar o mundo, e nós rejeitaremos inteiramente na nossa filosofia a busca das causas finais (...) mas O considerando como o autor de todas as coisas, vamos nos encarregar somente de encontrar, pelo emprego da faculdade de raciocinar que foi posta em nós por Ele, como aquelas das quais nos apercebemos por meio de nossos sentidos poderiam ter sido produzidas." (Descartes, Principia Philosophiae, artigo 28)

Leibniz não critica o argumento de Descartes nesse texto sobre Sturm, mas não é difícil perceber, cremos, que ele é claramente falacioso, pois as causas finais não se referem necessariamente aos objetivos divinos ao criar o mundo. Na realidade, a teleologia pode ser externa ou interna. O fim externo de algo se refere àquilo para o quê a coisa foi feita. Por exemplo, o caso mais evidente é o do artefato, no qual o artífice impõe à matéria uma forma que não pertencia originalmente à ela. Trata-se de uma causalidade transitiva, isto é, há uma transição da forma ou da ideia na mente do artífice para a matéria que será trabalhada. 

Curiosamente, a máquina e o mecanismo, ao contrário de abandonar a teleologia, na realidade a instala no próprio centro da realidade. Na medida em que se deseja explicar o mundo como um mecanismo, como uma espécie de máquina natural, é inescapável a pergunta acerca do construtor do mecanismo. As leis mecânicas sozinhas ou em mero conjunto descoordenado não explicam por qual motivo elas estão reunidas exatamente naquele padrão específico que produz aquele tipo de máquina. 

Idêntica crítica já era feita por Sócrates, Platão e Aristóteles ao atomismo de Demócrito e Leucipo, e permanece uma questão para todo o materialista desde então. O padrão no qual a matéria se organiza, por definição, não é material. Uma porção de argila pode se tornar um vaso ou um prato. Nada há na argila que determine uma ou outra dessas formas. O próprio Descartes, que nada tinha de materialista, quando tenta explicar o mundo material como uma máquina, necessita de Deus como construtor e mantenedor do mecanismo.

Até para entender um mecanismo, é necessário compreender como as leis mecânicas estão reunidas e coordenadas em um padrão fixo que não se deriva dessas mesmas leis, transcendendo-as como seu princípio organizador e mantenedor. Isso é mais verdadeiro ainda no caso da teleologia interna, onde se dá uma causalidade imanente, como no caso dos organismos. A matéria do organismo, de um feto, por exemplo, não recebe de fora o seu padrão. Ao contrário, de dentro de si mesma, a matéria se diversifica em órgãos cuja forma e função são determinados pela realização do todo que é pré-estabelecido.

Retornando ao texto de Leibniz, Sturm defende que os movimentos que se apresentam hoje acontecem em virtude de uma lei eterna, um ato de vontade e um comando, promulgada de uma vez por todas por Deus. A questão é saber se esse comando divino é somente uma determinação extrínseca ou se é uma determinação intrínseca, isto é, uma lei inerente da qual decorrem suas atividades e suas passividades. Leibniz observa que não basta que Deus tenha decretado uma lei no início se essa lei não perpetuar seus efeitos durante o tempo.

Logo, o comando de Deus não vale só para o momento imediato da criação, configurando-se em um traço gravado nas coisas. A natureza é uma certa eficácia, força inerente ou forma da qual decorrem a série dos fenômenos de acordo com a lei divina. Essa força inerente, contudo, não é passível de ser compreendida pela imaginação (que está presa sempre aos dados dos sentidos), mas somente pela inteligência (intellectus). Aparentemente, Sturm exige que se explique pela imaginação como opera essa força inerente, e na ausência de explicação, infere que a única resposta é que nada se move sem a vontade de Deus.

Leibniz responde que Sturm está pedindo algo parecido com pentear os sons ou entender as cores. Hobbes também estaria correto em dizer que tudo é material persuadido que está de que só o que é corporal é explicado e representado pela imaginação. Sturm deriva do fato de que, segundo ele, a força inerente aos seres não pode ser explicada via imaginação, que essa força é uma essência desconhecida, e que, ato contínuo, seria melhor admitir logo que é Deus a fonte de cada movimento das coisas no mundo. Seria um ocasionalismo divino, isto é, a tese segundo a qual não há outra ação causal no mundo que não seja Deus.

O ponto levantado por Leibniz é muito interessante na medida em que lança luz sobre um defeito epistemológico comum a muitos pensadores modernos, notadamente aos empiristas e aos materialistas. Como tais filósofos afirmam que o conhecimento inicia e termina nos dados dos sentidos, a única forma na qual esses dados se reúnem na mente é por meio da memória e da imaginação. Ocorre que a imaginação somente tem o poder de compor e recompor, combinar e recombinar, o que os sentidos fornecem à ela. 

A imaginação pode formar novas imagens cortando, adicionando, combinando partes de muitas imagens, inventando imagens de seres que não existem na realidade extra mentis. Em todas essas atividades, por mais importantes que sejam para o conhecimento, nunca é ultrapassado o nível das imagens presas a conteúdos sensíveis e singulares, este isso e este aquilo. Sendo assim, a imaginação não pode alcançar verdades universais como as da matemática, da geometria, da lógica ou da metafísica, dado que estas são universais, válidas para todos e não para este ou aquele.

Aquilo que Leibniz chama de força inerente ou natureza é justamente o padrão comum (pleonasmo, admito) a todos os membros de uma determinada classe ou espécie, aquilo que determina o que é o mínimo necessário para que X seja X e não Y. Isso não está sob o alcance dos sentidos ou da imaginação. É o intelecto (intellectus, verbo intellegere, "ler dentro")* que "penetra" nos dados recolhidos pelos sentidos e encontra neles um padrão que os próprios sentidos não percebem. Não testemunhamos no mundo somente "coleções de percepções sensíveis unidas regularmente", como querem os empiristas modernos. 

Testemunhamos no mundo entes, substâncias, seres reais que repetem aqui e agora, na sua singularidade irrepetível, um determinado padrão que os ultrapassa em um número indefinido de outros seres do mesmo tipo. É por isso que Leibniz, em seguida, questiona como seria possível que as coisas pudessem durar qualquer tempo se os seus atributos, que chamamos de natureza, não pudessem eles próprios durar de um momento que fosse? A razão exige que o fiat divino tenha instalado nas coisas uma tendência de produzir seus atos, tendência da qual fluem suas operações se nada se colocar como obstáculo.

Metafisicamente, ensina Leibniz, a própria substância da coisa consiste na sua força de agir e de sofrer (receber a ação de outros). O filósofo que dizer que todas as características da coisa, o que quer que ela seja, expressam exatamente o que ela é. Seu ser é essa força de agir como age e sofrer como sofre. Tudo o que a coisa mostra exibe essa força que constitui o seu ser. Em certo sentido, embora Leibniz não use essa definição explicitamente, poderíamos afirmar que ser é ser capaz de manifestar, capaz de operar e de sofrer. 

Deus não poderia somente criar em um momento determinado e, em seguida, nenhuma das características das coisas criadas permanecer no momento seguinte. Analogamente, se as coisas corporais nada tivessem imaterial, seu padrão, elas não seriam mais do que um fluxo perpétuo e insubstancial, como Platão já havia reconhecido. Leibniz aponta para o fato de que nada neste mundo existe sem instanciar um padrão ou uma natureza. Por definição, essa natureza não é material, pois está presente em muitos sem ser dividida ou diminuída.

Exemplificando, o padrão matemático que descreve um determinado tipo de movimento dos corpos se repete inteiramente, sem diferença, divisão ou diminuição, em todas as situações nas quais os corpos se engajam naquele tipo de movimento. Não se trata de algo material. É uma estrutura formal que se manifesta em cada um de seus exemplares concretos e irrepetíveis. Sem esses padrões, as coisas sequer poderiam ser algo. Leibniz compara com um fluxo insubstancial, mas até essa comparação é imprópria, pois o fluxo é fluxo de algo, como o fluxo de água.

Em resposta à segunda pergunta proposta no início do texto, se as coisas agem realmente, não há dúvida da resposta positiva se se compreendeu corretamente que a natureza das coisas não se distingue de sua força de agir e de sofrer. Toda substância individual age ininterruptamente. O contrário disso seria admitir que Deus é que age em cada uma das ações das coisas, tese que defendem os ocasionalistas como Malebranche. Além dos problemas expostos acima, isso seria negar a liberdade humana e o testemunho íntimo da origem das ações imanentes na vontade.

É comumente afirmado que o corpo é naturalmente inerte. Leibniz considera que isso é verdade, se bem compreendido. Um corpo em repouso não se colocará a si mesmo em movimento e nem será posto em movimento por outro sem opor alguma resistência. Tampouco mudará espontaneamente sua direção ou sua velocidade. Nenhuma dessas verdades pode ser deduzida somente das característica geométricas da matéria (res extensa de Descartes). A matéria, portanto, não é indiferente ao movimento e ao repouso como dizem comumente, mas é dotada de uma inércia natural. 

Essa força passiva, a impenetrabilidade e alguma coisa de mais que Laibniz considera a noção de matéria primeira ou massa, que é a mesma nos corpos e proporcional à sua grandeza. Como há na matéria uma inércia natural ao movimento, assim também os corpos e todas as substâncias possuem uma resistência natural à mudança. Por outro lado, o mesmo corpo, posto em movimento por outro, tende a manter o élan recebido, e a velocidade constante, resistindo à mudança. 

Como essas atividades não podem ser deduzidas da massa, que é passiva, nem da extensão (característica geométrica), resta admitir que há nos corpos uma entelequia primeira** que age sempre. Nos seres vivos, esse princípio se chama alma, e nos outros seres é a forma substancial. A verdadeira substância, unidade constituída de forma e de matéria, é que Leibniz denomina como mônada. Sem essa unidade verdadeira os corpos não seriam mais do que agregados.***

Tudo isso mostra, encerra Leibniz, que o ocasionalismo de Sturm e de outros, conduz não ao engrandecimento da glória de Deus pela supressão de um suposto ídolo da Natureza, ideia de origem pagã. Ao contrário, dilui as coisas criadas, torna-as meras meras modificações de uma única substância divina, e, tal qual Spinoza, Sturm parece fazer de Deus a verdadeira natureza das coisas. Aquilo que é desprovido de toda potência ativa, de toda marca distintiva, de toda razão de subsistir, não pode ser considerado uma substância. 

É interessante como o mesmo ocasionalismo será reafirmado por George Berkeley doze anos depois em seu Treatise. Entre os argumentos do bispo anglicano de Cloyne está exatamente a noção de que o conceito de Natureza é de origem pagã e de que verdadeiros cristãos deveriam admitir que todas as coisas provém de Deus, como afirma explicitamente a Bíblia. O problema é que negar a natureza significa dissolver as criaturas, pois se Deus é a única agência causal não há nada de substancial nas coisas, nada que caracterize X como X. 

No fundo, não há X, existe somente Deus agindo do modo X costumeiramente e enquanto Ele assim o desejar. Nada, rigorosamente nada, garante ou implica a permanência de qualquer traço, marca, propriedade ou característica de nenhum ser no momento seguinte. Inexiste forma, essência, natureza ou padrão. Tudo o que identificamos (o que consideramos idem) como classes, padrões ou constâncias não existem na realidade. De certo modo, poderíamos até afirmar que não existe realidade, se por esse termo entendemos um todo ordenado.

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Leia também:

Νεκρομαντεῖον: Leibniz (oleniski.blogspot.com)

Νεκρομαντεῖον: George Berkeley (oleniski.blogspot.com)

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*Em inglês, understanding, "estar por baixo", algo como estar no fundamento da coisa, no que a sustenta.

** Entelequia, ἐντελέχεια, no grego. Em Aristóteles, significa o princípio interno de organização e de ação do ente. A tradução seria algo como "ter o fim dentro". Possuir em si mesmo como algo intrínseco o fim, o termo, a natureza que determina o que a coisa é, e que, por conseguinte, determina o desenvolvimento imanente da coisa, bem como seus poderes, suas operações, o que ela pode fazer ou sofrer.

*** Agregado tem aqui o sentido daquilo que está junto sem nenhum princípio unificante real. Como várias folhas de árvore pode ser arrastadas pelo vento e juntas formarem um monte sem que haja nenhuma unidade real por trás dessa união que é meramente fortuita.

Um comentário:

Mauricio Santos disse...

Como sempre muito bom o texto e de alguma maneira estranha ...esse modo de enxergar as leis que guiam o comportamento da ma teria me faz lembrar a ideia do karma algo tão comum a filosofia oriental mas tão difícil p nos ocidentais compreender