MATEUS, 20:1-16
No Evangelho de Mateus (capítulo 20, versículos 1 a 16), Jesus conta uma parábola sobre trabalhadores que foram contratados em horas diferentes do dia e que, no entanto, receberam todos o mesmo pagamento por seus serviços. A parábola é usualmente interpretada no sentido moral/escatológico das recompensas dadas aos homens após a morte, salientando a absoluta liberdade divina que distribui o perdão a quem Ele deseja.
A superabundância da misericórdia divina é incompreensível, e frequentemente parece entrar em conflito com as concepções humanas de justiça. Afinal, não parece nada justo que aqueles que trabalharam desde o nascer do dia tenham o mesmo pagamento daqueles que só trabalharam uma hora. O homem virtuoso, fiel a Deus e aos Seus mandamentos desde sua tenra infância, que nunca desviou-se um milímetro da via divina não pode receber idêntico prêmio que o réprobo que passou a vida na dissipação e que só nos estertores arrependeu-se e retornou contrito ao seio do Pai.
O Evangelho, não obstante, repete essa "injustiça" (ἀδικία) divina na circunstância derradeira da crucifixão, onde Jesus perdoa o bom ladrão e lhe assegura que naquele mesmo dia estará com Ele no Paraíso. A surpreendente garantia de Cristo ao ladrão revela a incompreensibilidade fundamental do sagrado, cuja natureza é o totalmente outro (Ganz Andere), a um só tempo fascinante e aterrador. O Mysterium Tremendum, segundo a expressão do teólogo e filósofo da religião Rudolf Otto, não pode ser completamente traduzido pelas fórmulas racionais, conceituais, doutrinais ou morais nas quais é atenuado.
O aspecto moral e luminoso do divino, resultado do desenvolvimento comum das religiões, não consegue jamais eliminar ou subjugar o numinoso, o caráter de absoluta incompreensibilidade que é ao mesmo tempo fascinans e horror. A perplexidade e a estranheza são reações típicas ante a manifestação do sagrado que não cabe em nenhuma das categorias do pensamento e da experiência humanas.
O evento da crucifixão é a realização no tempo do ato cosmogônico eterno do "cordeiro que foi morto desde a fundação do mundo" (Apocalipse 13,8). Ao contemplá-lo, colocamo-nos simbolicamente no centro da Criação, na dispensação originária dos dons a todos os entes que serão eleitos para a existência. A cruz simboliza as dimensões do Ser, a ascensão vertical da Terra ao Céu e a extensão horizontal das modalidades nas quais os entes aparecem na realidade.
A justiça (Δίκη, δικαιοσύνη), segundo os gregos, é uma proporção qualitativa que, por exemplo, pesa a gravidade da ofensa, a dignidade do ofendido, a posição do ofensor, o tipo e a extensão da pena ou reparação a ser imposta, entre outros fatores. Essa medida, uma das traduções possíveis do termo λόγος (logos) tão caro aos gregos, rege as ações humanas neste mundo da limitação. Porém, não se mede o metro (μέτρον) pelo qual as coisas são medidas.
Jesus inicia a parábola dizendo que "o reino dos céus é semelhante a um homem, pai de família, que saiu de madrugada a assalariar trabalhadores para a sua vinha". O reino dos céus é o Deus Absconditus, a natureza divina ainda oculta e encerrada em si mesma. O homem é o próprio Cristo enquanto poder criador. O prólogo do Evangelho de João afirma que "no Princípio era a Palavra, e a Palavra estava em Deus, e Deus era a Palavra".* A Palavra (ou "medida", "razão"), estava no princípio, o Bereshit do início do Gênesis ("no princípio Deus criou o céu e a terra..").
A Palavra é Deus e Deus é a Palavra. A face incompreensível do divino, sem deixar de ser o que é, gera de Si mesma eternamente a face voltada às criaturas. É o pai de família (οἰκοδεσπότης) do qual fala a parábola, alguém sob cuja autoridade vivem os habitantes de uma casa. A casa não é outra coisa senão o mundo que é criado, ordenado e mantido na existência pelo Cristo. Este é a medida, o princípio de limitação que, quando aplicado, dá as coisas seus contornos e suas formas definidoras.
"Saiu de madrugada", isto é, da escuridão informe do abismo divino anterior a todas as coisas, "sai", sem jamais se apartar, o poder engendrador de Deus que se põe "a assalariar trabalhadores para a sua vinha", a atribuir a existência a cada coisa ainda inexistente. Os trabalhadores (ἐργάτης) são os entes da realidade que serão trazidos ao ato (ἐνέργεια). A vinha é o mundo que será efetivado e manifestado.
"E, ajustando com os trabalhadores a um dinheiro por dia, mandou-os para a sua vinha". Aos primeiros trabalhadores foi prometido "um dinheiro por dia", isto é, o ato de existência dentro do curso próprio às coisas. "E, saindo perto da hora terceira". O empregador que sai de novo em busca de outros trabalhadores simboliza o eterno poder (ἐνέργεια) criador de Deus que neste mundo manifesta-se temporalmente, uns entes efetivando-se antes e outros depois.
"Viu outros que estavam ociosos na praça, e disse-lhes: Ide vós também para a vinha, e dar-vos-ei o que for justo. E eles foram". Os trabalhadores ociosos na praça (ἀγορᾷ) que são contratados pelo empregador representam as possibilidades que residem na coincidentia oppositorum do abismo incompreensível de Deus que são chamadas à existência. Esses trabalhadores receberão "o que for justo" (δίκαιος).
"Saindo outra vez, perto da hora sexta e nona, fez o mesmo. E, saindo perto da hora undécima, encontrou outros que estavam ociosos, e perguntou- lhes: Por que estais ociosos todo o dia? Disseram-lhe eles: Porque ninguém nos assalariou. Diz-lhes ele: Ide vós também para a vinha, e recebereis o que for justo". Os trabalhadores chamados à vinha nas horas subsequentes representam outras possibilidades que se manifestam neste mundo. Todos receberão do empregador "o que for justo" (δίκαιος).
Ao lado desse aspecto temporal de surgimento sucessivo das coisas, a sequência das horas um, três, seis, nove e onze simboliza qualitativamente o gradual afastamento da fonte. Interpretando cada hora em termos de círculos concêntricos sucessivos, o centro é o ponto adimensional que representa Deus. O primeiro círculo estaria tão próximo que quase se identifica com o centro. Corresponde simbolicamente aos fundamentos mais gerais da realidade, o ponto no qual o "salário" de todos os trabalhadores é decidido.
O círculo seguinte, a hora terça, simboliza a estrutura ternária dos entes deste mundo: o substrato (ὑποκείμενον) que abriga os contrários (ser e não-ser, ato e potência, forma e privação). A hora sexta, o dobro da anterior, sugere não uma simples repetição ou multiplicação, mas o aperfeiçoamento. É a estrutura ternária atualizada nos entes concretos, pronta para atuar. A hora nona, o triplo da terça, é a estrutura ternária atualizada e atuando segundo as capacidades contidas na coisa.
A undécima hora seria o raio de maior "distância" a partir do centro. Da primeira à nona hora as coisas passam da mera possibilidade até a atuação no mundo, e na undécima aproximam-se do termo. Seu sentido é crepuscular, corresponde às cinco da tarde, uma hora antes do fim do dia. É símbolo do tempo que se esgota e das coisas que estão prestes a morrer. Daí o espírito de urgência da parábola.
Entretanto, a proximidade do fim de um ciclo apresenta oportunidades específicas. Aquilo que termina seu curso retorna à causa de onde veio. Momento propício para a conversão (μετάνοια), para virar o rosto dos fenômenos na direção daquilo que é fundamental (περιάγωγή). No seu sentido moral, a undécima hora significa a decadência de uma era ou de um indivíduo. Tudo se torna tão obscuro e difícil que qualquer ato mínimo de virtude possui um valor muito maior do que possuiria em tempos mais favoráveis.
"E, aproximando-se a noite, diz o senhor da vinha ao seu mordomo: Chama os trabalhadores, e paga-lhes o jornal, começando pelos derradeiros, até aos primeiros. E, chegando os que tinham ido perto da hora undécima, receberam um dinheiro cada um". O dono da vinha ordena que os empregados retornem para serem pagos, dos últimos aos primeiros. Cada trabalhador ganha exatamente o mesmo salário, não importando a hora na qual foram convocados pelo empregador. Os entes postos no círculo mais afastado da realidade recebem o mesmo que os entes mais próximos ao centro adimensional.
"Vindo, porém, os primeiros, cuidaram que haviam de receber mais; mas do mesmo modo receberam um dinheiro cada um. E, recebendo-o, murmuravam contra o pai de família dizendo: estes derradeiros trabalharam só uma hora, e tu os igualaste conosco, que suportamos a fadiga e a calma do dia". As queixas dos empregados simbolizam as diferenças hierárquicas entre os entes. Alguns estão mais próximos do centro incondicionado, são superiores àqueles que estão mais afastados, cuja existência é mais circunscrita por limitações e por condições.
"Mas ele, respondendo, disse a um deles: Amigo, não te faço agravo; não ajustaste tu comigo um dinheiro? Toma o que é teu, e retira-te; eu quero dar a este derradeiro tanto como a ti. Ou não me é lícito fazer o que quiser do que é meu? Ou é mau o teu olho porque eu sou bom?". Diante da resposta aparentemente desconcertante do senhor da vinha, é preciso recordar que o pagamento foi definido desde o início. Em nenhum momento o empregador prometeu qualquer vantagem para quem trabalhasse o dia inteiro. Todos receberam exatamente o mesmo que foi combinado na aurora.
A parábola do trabalhador da última hora é um símbolo da inteireza do divino que se manifesta segundo as diferenças entre as coisas. É o mesmo Ser que está em cada ente enquanto ato de existir, mas que difere em cada ente no grau de sua existência. O bem primordial da existência é igualmente concedido a todos os seres sem que isso implique que eles sejam nivelados e deixem de apresentar diferenças específicas e individuais. Como o neoplatonismo afirma, cada ente recebe os dons segundo a sua capacidade, segundo o tipo de ser que ele é.
A medida é a mesma medindo coisas de tamanhos diferentes. Eis o pagamento justo (δίκαιος) do dono da vinha. A identidade e a diferença são inseparáveis na realidade. O diferente só pode existir se houver uma base comum. Isso se repete em todos os nível do real. Os vários seres humanos identificam-se pela mesma natureza que está integralmente presente em todos eles, e se diferenciam uns dos outros pelos acidentes individuais. A mesma água enche vasos de formas e de tamanhos diversos.
No âmbito espiritual, não há outra recompensa senão o próprio Deus. Pouco importa o tempo no qual alguém se converte, se no início de sua vida ou nos seus estertores, o prêmio é idêntico. O homem virtuoso é feliz tenha ele começado a praticar a virtude hoje ou desde a infância. Há um caráter atemporal na felicidade ou na completude. O que veio antes não importa mais. "Considero tudo como perda, comparado com a suprema grandeza do conhecimento de Cristo Jesus." (Filipenses, 3,8)
"Assim os derradeiros serão primeiros, e os primeiros derradeiros". Na ordem do conhecimento, partimos temporalmente sempre daquilo que é primeiro e mais evidente para nós, os fenômenos, e alcançamos por último as suas causas. Porém, o inverso é verdadeiro quando consideramos a ordem do Ser. Percebemos então que o que nos aparece primeiramente no tempo é na verdade a última consequência de princípios que são primordiais. Os primeiros são os derradeiros e os derradeiros são os últimos a depender da ordem sob a qual os encaramos.
Ademais, a realidade é constituída tanto pela descida (catábase, Kατάβασις), que vai do princípio às coisas, quanto da subida (anábase, Ἀνάβασις), que vai das coisas ao princípio. Os primeiros são os derradeiros e os derradeiros são os últimos a depender se subimos ou se descemos na escala da realidade. Encarada sub specie aeternitatis, só há uma escada de Jacó por onde os anjos descem e sobem. Dito de outro modo, segundo o fragmento 69 do Obscuro, "o caminho para cima e o caminho para baixo são um só e o mesmo".
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* No original grego: Ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ Λόγος, καὶ ὁ Λόγος ἦν πρὸς τὸν Θεόν, καὶ Θεὸς ἦν ὁ Λόγος. No princípio
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