terça-feira, 9 de junho de 2020

Chuang Tzu, Confúcio e a equanimidade absoluta do sábio



道常無名
"O Tao constante é inominável."

TAO TE CHING, 32

"Transcender o nascimento e a morte é entrar no ilimitado, é ser um com a origem do Céu e da Terra."

LIEH-TZU

No livro de Chuang Tzu, um dos três sábios fundadores do Taoísmo, é relatada a história de um homem chamado Wang T'ai que teve o pé cortado como punição por uma infração, mas que possuía seguidores numerosos. Ch'ang Chi indagou o mestre Kong Fu Tzu (Confúcio) acerca da razão pela qual Wang T'ai tinha tantos discípulos quanto o próprio Confúcio. Wang T'ai não ensinava quando estava em pé e nem discutia quando estava sentado e, apesar disso, os que a ele acorriam chegavam vazios e retornavam plenos. Que tipo de homem era Wang T'ai, afinal?

Confúcio responde que Wang T'ai era um sábio e que, se ele mesmo fosse ter com Wang T'ai, tornar-se-ia seu discípulo, bem como todo o distrito de Lu e, no futuro, todo o mundo. Ch'ang Chi responde que se ele, mesmo havendo perdido seu pé como castigo por uma infração, era superior até a Confúcio, o que dirá o homem  comum? E, em seguida, pergunta a Confúcio como aquele sábio, Wang T'ai, usava sua mente.

Confúcio responde que a vida e a morte são preocupações sérias, mas para o o sábio não representam motivo de mudança. Mesmo se o Céu (天) e a Terra (地) fossem abalados e caíssem, isso não seria para o sábio algo perturbador, pois ele tem os olhos voltados àquilo que não tem falsidade e não muda como as coisas. As transformações do mundo, ele bem o sabe, são inevitáveis, e o sábio mantém-se firme na fonte.

Ch'ang Chi pergunta o que Confúcio quer dizer com aquele discurso e o mestre assevera que se alguém enxerga as coisas em termos de suas diferenças, há fígado e há vesícula, há as terras de Ch'u e há as terras de Yueh, mas se alguém enxerga tudo em termos de igualdade, então todas as dez mil coisas são uma só realidade. Um homem assim não conhece aquilo que os olhos ou os ouvidos devem aprovar ou não, e seu espírito (心) se move em harmonia com a retidão (德). Como o sábio enxerga as coisas em unidade, não considera sequer a falta de um pé uma perda.

Ch'ang Chi insiste e pergunta por qual razão as coisas reúnem ao redor de Wang T'ai. Confúcio responde que os homens não espelham a eles mesmos em água corrente, mas tão somente em água serena e quieta. Somente a quietude pode aquietar a quietude das coisas. Entre as coisas que recebem a vida da Terra, somente o pinheiro e o cipreste são os melhores, pois mantém-se verdes seja verão ou inverno. E entre as coisas que recebem sua vida do Céu, somente os imperadores Yao e Shun são os melhores, pois mantiveram-se acima das dez mil coisas. Ordenaram suas próprias vidas e, por isso, ordenaram as outras coisas.

Preservar as sutilezas da origem é um ato de bravura. Um bravo guerreiro, em busca de fama e de glória, pode atacar sozinho exércitos poderosos, disse Confúcio a Ch'ang Chi. Se isso é verdade para alguém guiado somente pela ambição, o que dizer daquele cujo reino é o Céu e a Terra e que possui as dez mil coisas, cujos olhos e ouvidos são janelas vazias e seu corpo um mero alojamento, e para quem tudo é unidade e cujo espírito é imortal? Tal homem escolhe um dia e ascende ao Céu. Os homens o seguem, mas como ele poderia importar-se com as coisas?

A história relatada no livro de Chuang Tzu ilustra a figura do sábio taoísta, aquele que vive na absoluta equanimidade do Tao (道). Enxergar todas as coisas a partir de sua comunidade fundamental, ou seja, a partir de sua fonte última para além de todas as diferenças é ser absolutamente equânime, pois, desse modo, nada resta para ser classificado como agradável ou desagradável, bom ou mau, segundo as avaliações e preferências do ego.

Lieh Tzu, outro dos três sábios fundadores do Taoísmo, ensina que o sábio transcende o nascimento e a morte, isto é, os opostos e todas as diferenças entre os entes, e habita em Wu-Chi (無極), o "sem pólo" ou o "sem extremidade", traduzido também como "infinito". É a realidade imanifestada que transcende a toda a dualidade manifestada ou possível, inclusive a polaridade primordial entre o Céu e a Terra. O sábio enxerga a realidade para além do pensamento discriminativo do homem comum.

O filósofo francês Louis Lavelle, em sua obra La Présence Totale, afirma que é somente quando os entes deixam de ser objeto de apego que eles manifestam ao homem seu valor real. Se um ente qualquer, por mais humilde que ele seja, torna-se para nós um meio de fruir da presença absoluta do Ser, então ele nos apresenta a realidade do Todo. Ao contrário, se encaramos os entes somente do ponto de vista da posse, nada jamais satisfará os nossos desejos, pois os entes são cambiantes. Segundo Lavelle, paradoxalmente, "é a indiferença a todo objeto que dá a cada objeto seu valor absoluto" (p. 45, tradução minha).

Wang T'ai não ensina ou discute, mas possui tantos discípulos quanto Confúcio. O sábio age sem agir, "wu wei" (無為), por sua mera presença, como a força interior de um guerreiro faz o adversário desistir da luta antes mesmo que qualquer golpe seja desferido. A ação do sábio está em harmonia com o Tao e não se origina dos desejos e das preferências do ego, o qual alterna entre a aprovação e a desaprovação das coisas.

Chuang Tzu, em outra passagem, ensina que insistir nos opostos, na aprovação e na desaprovação, é como viajar a Yüeh quando já se chegou a Yüeh. O sábio abraça tudo, os outros homens dividem as coisas e usam um ente para revelar o outro. Aqueles que dividem as coisas não enxergam. O ego obscurece a natureza das coisas com suas preferências e a equanimidade do sábio deixa que as coisas sejam o que são, sem interferência ou divisões.

Os homens seguem Wang T'ai porque a quietude da mente do mestre aquieta a mente dos discípulos. Novamente, a ação do sábio é não-ação. Na tradição Zen budista japonesa, a transmissão do mestre ao discípulo acontece de "mente a mente" (以心伝心), isto é, trata-se de um ensino não-verbal, mas não menos real. O homem sábio e virtuoso inspira a muitos por seu exemplo, mesmo que jamais profira uma só palavra. Os imperadores Yao e Shun ordenaram os seus reinos porque ordenaram a si mesmos.

Unido à fonte última e inominável, Wang T'ai compreende plenamente as transformações pelas quais passam todos os entes. A falta de um pé não afeta o sábio, pois, na realidade, nada pode faltar àquele cujo espírito se encontra no nascedouro onde todas as coisas tomam sua origem. Tudo pertence a ele justamente porque não discrimina nada. Chuang Tzu diz que um homem assim já não vive como os homens, pode ascender ao Céu no momento em que desejar.
...

Leia também:

http://oleniski.blogspot.com/search/label/filosofia%20oriental   

3 comentários:

Philo-SciFi disse...

Não sei se há algum ponto de contato, mas a questão do autodomínio, da negação do ego, lembra muito os estoicismo imperial. Eudaimonia é dominar os desejos.

R. Oleniski disse...

Olá, Steve!

Eu creio que não seja coincidência esse contato. A sabedoria realmente tem como traço essencial o autodomínio, a capacidade de distanciar-se de seus desejos e de suas dores e ver as coisas claramente.

Perece ser uma percepção comum entre as grandes religiões e tradições espirituais.

Abraços!

JATeixeira disse...

Bom Dia !
Tem a história daquela anciã,que no ancionato afirma para enfermeira que a conduz, que não reclama da perna que doi, mas é grata pela outra que a ainda a ajuda a locomover-se.Ou ainda, aquele que não pode mais andar,ver ou ouvir por varios problemas de saúde,no entanto não se infelicitou por isso,pelo contrário recolheu-se ao seu próprio santuário interior, fonte pessoal ,que consegue conectar-se a Fonte Primordial e bastar-se a si mesmo, nessa unidade
JATeixeira
Timbó(SC).