quarta-feira, 20 de maio de 2020

Chuang Tzu e a inutilidade do sábio



上德無為  - "A suprema retidão é a não-ação"

TAO TE CHING, 38

"A 'não-ação' não é, de forma alguma, a inércia, mas, ao contrário, a plenitude da ação da atividade, embora seja uma atividade transcendente  e completamente interior, imanifestada, em união com o Princípio, para além de todas as distinções e de todas as aparências que o vulgo toma erroneamente como a própria realidade, enquanto que não são mais que o seu reflexo mais ou menos distante."

RENÉ GUÉNON, Aperçus sur l'Ésotérisme Islamique et le Taoïsme, p.114 (tradução minha direto do francês)

Chuang Tzu (século IV A.C.) é considerado como um dos três sábios do Taoísmo junto com Lao Tzu (VI A.C.) e Lieh Tzu (V A.C.). A ele são atribuídos diversos escritos nos quais os princípios taoístas são apresentados em histórias exemplares. Em uma dessas histórias, Chuang Tzu trata da aparente inutilidade de uma árvore.

Um carpinteiro e seu aprendiz passavam em frente ao santuário de uma vila onde se encontrava um carvalho tão grande, em altura e largura, que milhares de bois poderiam repousar sob sua sombra. As pessoas da vila visitavam o santuário para contemplar a grande árvore. O aprendiz disse a seu mestre que nunca vira uma árvore tão cheia de potencial e que não entendia por qual razão o carpinteiro não parou a sua caminhada sequer para observar a árvore.

O carpinteiro respondeu que a madeira daquele carvalho era inútil e que os barcos feitos com ela afundariam, os caixões apodreceriam rapidamente, as ferramentas estragariam e os pilares encheriam de cupim. A árvore era totalmente inútil, afirmava o carpinteiro. À noite, contudo, o carvalho do santuário apareceu em sonho ao carpinteiro e perguntou-lhe a quais árvores ele o comparava. As árvores belas e úteis são logo colhidas, cortadas, desmembradas, destruídas e utilizadas para  os mais diversos fins.

O carvalho disse haver praticado a inutilidade até alcançar a perfeição naqueles tempos, pouco antes de sua morte. Se não houvesse feito isso, não teria durado tanto. E quem era o carpinteiro, afinal, para criticar o carvalho do santuário? O homem acordou de seu sonho e seu aprendiz perguntou-lhe por qual razão a grande árvore estava no santuário, dado que queria ser inútil. O carpinteiro respondeu que ela estava ali para continuar inútil, pois se estivesse em qualquer outro lugar, seria imediatamente cortada e utilizada pra os fins dos homens.

Como o historiador das religiões romeno Mircea Eliade mostrou em inúmeros de seus livros, a árvore é símbolo tradicional do "eixo do mundo", Axis Mundi. Isto é, o eixo vertical que liga e sustenta os diversos níveis horizontais da realidade. Por isso, a árvore está geralmente situada em um jardim ou terreno sagrado. O carvalho da história Chuang Tzu está em um santuário, local sagrado para onde todos convergem a fim de contemplar a grandeza da árvore. As suas dimensões magníficas representam simbolicamente a abundância da Realidade sem medida.

O carpinteiro e seu aprendiz caminhavam em uma via (Tao, 道) e, diante da árvore, têm reações distintas. O aprendiz, inexperiente e com a mente livre de conhecimentos, encanta-se com as possibilidades infinitas contidas na madeira do carvalho do santuário. Nas artes marciais japonesas, o iniciante é chamado de shoshinsha (初心者), algo como "pessoa que está iniciando". Quem inicia tem a mente ou o espírito (心) aberto e sem resistências, pois não sabe nada ou quase nada sobre a Via. É por isso que o aprendiz só enxerga riquezas e potencialidades indefinidas no carvalho.

O carpinteiro, por seu turno, é experiente e saturado de conhecimento. Ele conhece bem as possibilidades que os diversos tipos de madeiras oferecem e olha para a árvore do santuário com desdém. Ela não serve para nada, sua madeira é ruim, e tudo o que for produzido a partir dela será insatisfatório. Em suma, a árvore do santuário é inútil para os propósitos da carpintaria.

Ocorre que ambos, o aprendiz e o carpinteiro, não conhecem outra utilidade para a madeira que a carpintaria. O aprendiz enxerga inúmeras possibilidades porque não sabe nada ou quase nada de carpintaria e o carpinteiro enxerga só inutilidade porque sabe bem o que a madeira pode oferecer. Um tem a mente vazia e ignorante e o outro tem a mente cheia com conhecimentos. Mas tudo o que vêm é utilidade, possuem uma mentalidade utilitária e dual.

O aprendiz só enxerga o que pode ser feito da árvore e o carpinteiro só enxerga o que não pode ser feito da árvore. Nenhum dos dois enxerga a árvore enquanto ela mesma. Seus interesses obnubilam a visão do que realmente é aquela árvore. Em outra história atribuída a Chuang Tzu, é dito que quando as preferências aparecem, a Via (Tao) é manchada.

Lieh-Tzu, outro dos três sábios do Taoísmo, ensinava que Confúcio dizia que se um homem estiver em um jogo valendo pedaços de vidro, ele jogará habilmente. Se o prêmio for sua valiosa e cara fivela de cinto, começará a jogar mal. Se o prêmio for dinheiro, ele desmoronará. Não significa que o homem tenha perdido seu talento. Significa que ele está tão perturbado com coisas acontecendo fora do jogo que acabou perdendo a calma interior. Aquele que perde a sua quietude fracassará em tudo o que faz justamente porque não consegue enxergar o que está fazendo.

O carpinteiro e o aprendiz representam os pólos da negação e da afirmação, respectivamente. Todavia, há um plano mais alto que transcende e funda essas oposições. O sonho do carpinteiro com a árvore do santuário revela essa dimensão fundamental. O carvalho repreende o carpinteiro por seu julgamento baseado na utilidade prática, na preferência fundada na perspectiva dos desejos e anseios humanos.

A árvore praticara durante toda a sua vida a inutilidade e agora, ao final de sua existência, alcançara a perfeição. Se o carvalho não fosse inútil, teria sido vítima dos interesses práticos dos homens. O que é visto sob o prisma somente do uso e das preferências humanas é destruído, não chega a seu termo natural. Sendo inútil, a árvore realizou sua natureza verdadeira. O santuário era o único lugar próprio para ser inútil, pois o sagrado não se encontra na esfera das preferências e dos juízos humanos. No "eixo do mundo" não há preferências ou inclinações, mas a perfeita equanimidade e não-ação.

A árvore do santuário simboliza também o sábio que segue diligentemente o Tao. A ação do Tao (道) é "wu wei" (無為), "não-ação". Sua presença basta para tornar as dez mil coisas o que elas são. O sábio não age por interesse próprio, por isso ele age realmente. A sua ação nasce do Tao, ontologicamente anterior à divisão do Céu (天) e da Terra (地), a dualidade primordial. Aos olhos dos outros homens, imersos no pensamento discriminativo das preferências, o sábio é inútil como a árvore do santuário.

Equânime, o sábio enxerga todas as coisas a partir do "eixo do Tao", ponto onde cessam as oposições e as preferências. Ele deixa as coisas serem como elas são, não intervém nos fenômenos com pensamentos de utilidade ou de preferência. Se a presença dos entes é ocasião somente de desejo de posse ou de uso, nada satisfará o homem, pois os entes são fugidios, sucedendo-se uns aos outros incessantemente. Ver todas as coisas a partir de sua comunidade mais fundamental é ver as coisas em absoluta equanimidade.

A não-ação do sábio, entretanto, não significa inação. Como ensinou o pensador Zen japonês Kitaro Nishida, em seu Ensaio sobre o Bem, que "é apenas quando alcançamos a única atividade do céu e da terra extinguindo o sujeito e o objeto e esquecendo o eu e as coisas que podemos chegar ao ponto supremo da ação boa."
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